“A rua está repleta de gente que compra colares de pérolas do Sri Lanka, ornamentos esculpidos em marfim africano, perfumes preservados com estabilizadores oriundos do Tibete e da Somália, frascos fabricados em âmbar do Báltico e móveis de todas as madeiras aromáticas imagináveis. O perfume de incenso estrangeiro impregna o ar. Ao virar da esquina, uma loja vende produtos caros e de alta tecnologia, lado a lado com versões modificadas para os consumidores locais. Conforme os feriados, devotos hindus, muçulmanos ou budistas juntam-se à multidão.”
Esta podia ser a descrição de uma qualquer grande metrópole moderna, mas Quanzhou era assim há mais de mil anos, acredita Valerie Hansen, especialista em História Mundial e professora da Universidade de Yale (EUA). Tudo o que na época estava à venda naquela cidade chinesa portuária, situada a meio caminho entre as atuais Xangai e Hong Kong, eram bens comuns no ano 1000. Bens importados que os chineses financiavam com um vigoroso comércio exportador, em que o produto tecnologicamente mais sofisticado era a cerâmica de alta temperatura.
É com esta descrição algo cinematográfica que a historiadora arranca no seu novo livro, Ano 1000 – O Verdadeiro Início da Globalização (Porto Editora, 336 págs., €18,80). Uma obra de divulgação científica dirigida ao grande público que o mundo académico recebeu com alguma cautela.
Valerie Hansen parece apostada em surpreender os leitores logo no prólogo. Depois de apresentar a sua versão de “Quanzhou Ano 1000”, defende que foi nessa altura que os exploradores vikings deixaram para trás a Escandinávia, atravessaram o Atlântico Norte e chegaram à ilha da Terra Nova, na costa nordeste do Canadá, uma região por onde nenhum europeu antes viajara. A “história da globalização” terá começado com esse “momento de contacto indubitável” entre a Europa e as Américas – quase cinco séculos antes de Cristóvão Colombo, note-se.
E a historiadora vai mais longe: considera “plausível” que os nórdicos tenham desembarcado na Península do Iucatão, no México, também por volta do ano 1000. Uma teoria provocadora, reconhece a própria, que obriga a repensar a História do mundo moderno.
Foi quando se encontrava em plena escrita do seu livro anterior, sobre a rota da seda (The Silk Road: A New History), que se apercebeu de que diferentes regiões do mundo já estavam a entrar em contacto umas com as outras no ano 1000. “E se a globalização tivesse, afinal, começado muito antes da travessia para as Américas de Colombo, em 1492?”, equacionou, entre pesquisas.
“Hoje, a definição corrente de globalização significa que podemos comprar qualquer coisa em qualquer lado do mundo, e que nos enfiamos num avião e vamos a qualquer sítio onde queremos ir”, lembra. “Mas a um nível mais fundamental, ela existe quando as pessoas de um local são afetadas por pessoas de outro local e não têm nenhum controlo com o que lhes acontece”, defendeu recentemente, numa entrevista à rede de podcasts New Books Network.
Para esta especialista em História da China e em História Mundial, que dá aulas há mais de três décadas em Yale, foi exatamente esse o processo que começou no ano 1000. Uma das explicações que encontra está na “cerealização” na Europa Ocidental e no crescimento das plantações de arroz no mundo islâmico e na China. “Um aumento imenso na produção agrícola fez com que a população mundial alcançasse quase as 250 milhões de pessoas, permitindo que algumas delas deixassem de trabalhar a terra a tempo inteiro, passando a produzir outros bens e tornando-se mercadores”, afirmou no mesmo podcast.
Atravessar o Atlântico
No caso dos vikings, a estrutura social, sobretudo a dinâmica dos bandos de guerra, desempenhou um papel crucial no ano 1000, porque os chefes, ambiciosos, procuravam novos territórios, ensina. As suas embarcações eram famosas pela construção flexível e leve, velocidade e capacidade de desembarcar em águas pouco profundas. E, segundo reza a história narrada pelas sagas islandesas, os vikings fizeram três viagens distintas às Américas.
A primeira ocorreu precisamente no ano 1000, quando Leif Erikson, apelidado de “o Sortudo” pelo pai, Erik, “o Vermelho”, zarpou da Gronelândia e alcançou a ilha de Baffin, entre o Nordeste do Canadá e a Gronelândia. Dali, foi com os seus homens até um local situado provavelmente na costa do Labrador, já mesmo no Canadá.
“Ambos os locais eram demasiado frios e áridos para serem habitados por humanos”, lemos em Ano 1000… Já o último lugar onde desembarcaram, a que chamaram Vinland (“Terra das Vinhas”), era muito mais convidativo. Encontraram uma terra fértil com erva e peixe em abundância, construíram barracas e regressaram a casa sem se terem cruzado com quaisquer indígenas.
Alguns anos depois, um irmão de Leif, Thorvald, decidiu liderar uma segunda expedição rumo a Vinland e avistou “três barcos revestidos em couro”, com nove nativos a bordo. Esse encontro revelou-se fatal, com os homens de Thorvald a matarem oito dos nativos. O nono voltou para terra e trouxe reforços que, por sua vez, atingiram mortalmente o líder islandês com uma flecha.
Numa terceira expedição, comandada por um parente de Leif, já houve troca de bens entre os dois grupos: por peles de animais, os escandinavos ofereceram pedaços de tecidos feitos com lã de ovelha e tingidos de vermelho. Os nativos tinham um interesse tão grande pelo tecido que aceitavam pedaços minúsculos em troca de peles inteiras.
Há boas razões para pensar que Vinland ficava onde é hoje L’Anse aux Meadows, na ponta norte da ilha da Terra Nova, no Nordeste do Canadá, escreve Valerie Hansen. “A prova mais reveladora da presença dos nórdicos é uma oficina que continha uma bigorna e fragmentos de ferro, indícios da atividade de um ferreiro”, lê-se na sua obra. “No ano 1000 não havia mais ninguém, em parte alguma do continente, que trabalhasse o ferro” – a fundição tinha de ser de forasteiros.
Sabe-se que L’Anse aux Meadows era um povoado escandinavo também por causa de um alfinete de bronze ali encontrado. Em 1960, o diplomata norueguês Helge Ingstad e a sua mulher, a arqueóloga Anne-Stine Ingstad, velejaram pela primeira vez ao longo da costa leste do Canadá para ver se conseguiam localizar os sítios por onde Leif Erikson tinha viajado. Mas seria apenas oito anos mais tarde, no último dia da última temporada de escavações, que o casal fez “a” descoberta.
“Soltámos um grito ao percebermos que ali estava uma prova que ninguém podia refutar – um alfinete com a cabeça em forma de anel indiscutivelmente idêntico aos alfinetes do período dos vikings”, descreveria Anne-Stine, nas suas memórias.
Os vikings abandonariam as suas colónias na América do Norte ao fim de apenas dez anos. A inexistência de bens comerciais verdadeiramente valiosos, além da madeira, levou-os a regressarem a casa; mas mantiveram as rotas abertas, lembra Valerie Hansen, precisamente por causa da madeira, em permanente falta na Islândia
“As suas viagens não inauguraram o comércio nas Américas”, nota a historiadora, mas “foram extremamente importantes porque ligaram redes de comércio preexistentes em ambos os lados do Atlântico, dando assim início à globalização”.
Chuva de críticas
Nas Américas, a maior cidade era provavelmente a povoação maia de Chichén Itzá. Localizada perto da costa norte da Península do Iucatão, no México, estima-se que tivesse 40 mil habitantes no ano 1000. É no seu Templo dos Guerreiros, assim batizado pelos arqueólogos, entre 1925 e 1934, que Valerie Hansen situa o “indício” de que os vikings possam ali ter estado há mais de mil anos.
Algumas das pinturas que revestiam parte das paredes interiores do templo retratam pessoas com cabelos loiros, olhos claros e pele branca. Uma determinada cena de batalha mostra mesmo uma vítima loira junto a dois barcos cor de madeira, um deles com uma proa esculpida, semelhante às das embarcações escandinavas. Sabendo que os nórdicos alcançaram a Terra Nova e que as tempestades e as correntes do Giro do Atlântico Norte os impediam muitas vezes de chegarem aos seus destinos, a historiadora de Yale põe a hipótese de eles também terem, por essa altura, desembarcado na Península do Iucatão.
Foram várias as vozes críticas do mundo académico que se fizeram ouvir por causa desta sua teoria, acusando-a de se deixar levar pela “história alternativa”, por definição especulativa e ficcional.
Entre as mais corrosivas estão as dos três professores universitários que assinam o artigo Como Escrever Uma História do Mundo Falsa, publicado na revista online Le Grand Continent (do Grupo de Estudos Geopolíticos, da Escola Superior Normal, de Paris), para quem Hansen revelou “um descaramento que lembra o do próprio Cristóvão Colombo”.
“As suas descrições genéricas dos mercados orientais ‘exóticos’ parecem tiradas de uma brochura turística”, escrevem Cornell Fleischer, da Universidade de Chicago, Cemal Kafadar, de Harvard, e Sanjay Subrahmanyam, do Colégio de França. Mas, mais grave ainda, apontam, é o facto de a historiadora afirmar que a globalização foi possível pela primeira vez graças aos vikings que contactaram com o Nordeste da América, bem como com os maias – “hipótese arriscada não sustentada pelos grandes especialistas”.
O historiador Noel Malcolm também já questionara as conclusões “triunfais” de Hansen, numa crítica publicada no jornal The Telegraph. “Mesmo que os arqueólogos encontrem budas de bronze que pertenceram aos vikings na Terra Nova, poderíamos concluir algo de tangível sobre o processo geral? E mesmo que os vikings tivessem ficado mais tempo, não teriam encontrado no Nordeste da América a rede necessária para esse tipo de comércio”, rebate. “A globalização envolve muito mais do que um contacto isolado nos confins de um continente.”
Numa outra resenha, publicada no site The Arts Desk, o conhecido crítico britânico Boyd Tonkin escreve que Hansen faz uma “rara incursão na História alternativa para um professor de Yale” ao avaliar que “não era impossível” um navio viking ser apanhado pelas correntes do Atlântico e puxado em direção à costa mexicana.
Valerie Hansen recebeu esta última crítica com humor e até como um elogio. “Quem é que quer agir como um professor de Yale o tempo todo?”, pergunta, a rir, no podcast já citado acima, insistindo que os murais encontrados no Templo dos Guerreiros, em Chichén Itzá, são “muito sugestivos”.
“No passado outono, ensinei aos meus alunos a diferença entre aquilo que é plausível, possível e absolutamente certo. Este caso, o dos vikings no México, penso que é plausível. Inteiramente. O timing é perfeito e temos vários relatos, vindos da Islândia, de barcos desviados do seu curso.”
Certo é aquilo que a historiadora escreve sobre os escravos utilizados nestas viagens pelo mundo. “Tantos eram os escravos que vinham da Europa de Leste que o significado da palavra grega para ‘eslavo’ (sklabos) se alterou algures no século X, passando o significado original de ‘eslavo’ a assumir a aceção mais ampla de ‘escravo’, quer este fosse eslavo ou de qualquer outra origem.”
O que não tem espaço para polémica é aquilo que Valerie Hansen afirma sobre as trocas comerciais com os chineses no ano 1000. “Importavam incenso, madeiras como o sândalo e fragrâncias em geral”, ouvimo-la dizer no podcast. “Queriam que o mundo tivesse um cheiro diferente.”
Há mil anos, os chineses também importavam cavalos, por razões militares, e âmbar, que adoravam e lhes chegava da Escandinávia. “Não encontrei um objeto que tivesse viajado pelo mundo todo, é pena!”, lamenta a historiadora. “Mas sei que era possível, porque os caminhos estavam abertos.”
O homem mais rico do mundo
Por volta do ano 1000 e nos séculos seguintes, é provável que três ou quatro toneladas de ouro, no valor de cerca de 128 milhões de euros aos preços atuais, viajassem todos os anos para norte, através do Sara. Mansa Musa, rei do Mali durante 25 anos, “levou a bonança do ouro ao seu apogeu”, escreve Valerie Hansen. Quando passou pelo Cairo a caminho de Meca, transportou de camelo cem carregamentos de ouro (hoje, seriam aproximadamente 684 milhões de euros), o que fazia dele o homem mais rico do seu tempo. Mansa Musa e o seu séquito gastavam tão prodigamente que nessa viagem conseguiram provocar a queda do ouro no Cairo. As notícias da sua riqueza propagaram-se até Espanha, onde um fazedor de mapas criou a única imagem que nos chegou sua.
Nórdicos em Chichén Itzá?
Desde as décadas de 20 e 30 do século passado que os académicos questionam se os homens de cabelo loiro e pele clara das pinturas que revestiam as paredes do Templo dos Guerreiros, em Chichén Itzá, no México, são retratos de nórdicos. Houve inclusive quem sugerisse que estariam a usar perucas amarelas, para que o seu cabelo correspondesse ao do deus do Sol a quem seriam sacrificados. Para Valerie Hansen, a descoberta de que os vikings estiveram em L’Anse aux Meadows, na América do Norte, no ano 1000, lançou uma nova luz sobre estes murais da Península do Iucatão. Eles “poderão efetivamente representar os escandinavos e os seus barcos”, escreve, que “poderão ter sido desviados da sua rota e depois capturados” pelos maias.