O filme da Disney Os 101 Dálmatas tem dos inícios mais engraçados de sempre. Farto de estar em casa e apenas na companhia do dono, o cão Pongo põe-se à janela, a observar as mulheres que andam a passear as suas cadelas. Nem ele nem Roger podem ficar solteiros para sempre, mas todas as duplas vão sendo descartadas por serem demasiado estranhas ou demasiado elegantes, demasiado velhas, demasiado novas. A piada é que os bichos são fisicamente muito parecidos com as suas donas – facto, aliás, comentado por Pongo.
A animação é de 1961. Várias décadas mais tarde, em 2017, o fotógrafo britânico Gerrard Gethings deu início ao projeto Do You Look Like Your Dog?, em que destaca a semelhança entre uma série de cães e os seus proprietários. As fotografias, algumas delas bastante cómicas, foram reproduzidas num jogo de memória e, sobretudo, deixaram muita gente a pensar por que razão há tantas pessoas tão parecidas com os animais de estimação.
Será apenas uma tendência narcisista partilhada? “Porque somos naturalmente atraídos pelo que se parece connosco”, lembra Gerrard Gethings, notando que também ele tem semelhanças com Baxter, o seu Border Terrier barbudo.
Foi motivada por essa dúvida que Claúdia Varejão (no escuro do cinema descalço os sapatos e ama-san, entre outros) avançou com o seu novo filme, Amor Fati, que chega às salas de cinema a 12 de novembro e tem antestreia marcada para a véspera, no Doclisboa.
Num dos trailers, a realizadora explica que partiu em viagem por Portugal para recolher retratos daqueles que se amam depois de ter conhecido o projeto Family Portraits, de Thomas Struth. Estava na ressaca de ama-san, quando a namorada e alguns amigos lhe ofereceram o livro com os retratos de família feitos, nos anos 80, por aquele fotógrafo alemão. E ficou fascinada.
“Atravessei todo o País, do Continente às ilhas, e procurei pares ou grupos de pessoas que, para lá da ligação afetiva ou familiar, tivessem também traços físicos semelhantes”, conta. “Como se fossem duplos, eles mesmos.”
A verdade é que desde miúda que Cláudia Varejão reparava nas semelhanças entre os casais. “Olhava para os amigos dos meus pais e achava-os iguais entre eles”, recorda à VISÃO. “E, ao longo da vida, fui sempre reparando nisso, numa obsessão quase infantil. Estava convencida de que, com o tempo, as pessoas ficavam parecidas.”
Mas, pouco depois de começar a filmar o Amor Fati, embateu numa impossibilidade. “Afinal, o que começa primeiro? O ovo ou a galinha? Aproximamo-nos dos outros pela proximidade que sentimos ou é o amor e os afetos que nos tornam próximos dos outros, exteriorizando-se isto no rosto e no corpo?”
Amor Fati é uma expressão latina “que significa ‘aceitação do real’ ou, se quisermos, ‘amor ao destino’”, lembra a realizadora. E este filme “vai ao encontro de partes que se completam”, lê-se no seu site. “São retratos de casais, amigos, famílias e animais com os seus donos. Partilham a intimidade dos dias, os hábitos, as crenças, os gostos e alguns traços físicos. A partir dos seus rostos e da coreografia dos gestos, descobrimos a história que os enlaça.”
Porque não estamos a falar só de pares românticos. Cláudia Varejão quis integrar outro tipo de relações e pessoas com os seus animais de estimação. “E até podíamos ir mais longe”, ri-se. “Pessoas e os seus instrumentos de trabalho, por exemplo. Abri uma Caixa de Pandora e ela não tem fim. Descobri que as ligações podem ser de afetos, que há muitas semelhanças emocionais.”
Certo é que terminou o seu filme sem evidências nenhumas. “Claro que nada disto é científico”, sublinha. “Parti da curiosidade das semelhanças fisionómicas e o mistério é a beleza disto tudo. Até o facto de a Ciência não responder é belo. Há coisas na vida que não têm resposta.”
Vem tudo isto a propósito de uma nova investigação, publicada na revista Scientific Report, que questiona a ideia de que as caras das pessoas em relacionamentos de longo prazo começam a parecer iguais com o passar do tempo. Uma ideia com mais de três décadas.
Em 1987, o psicólogo social Robert Zajonc, da Universidade de Michigan, pediu a voluntários que classificassem as fotografias de uma dúzia de casais ao fim de um ano de vida em comum e após 25 anos. Com base nas suas observações, concluiu que as caras desses doze casais tinham-se tornado mais semelhantes ao longo do casamento, sendo a semelhança maior quanto mais felizes eram.
A explicação, avançou Robert Zajonc, é que partilhar a vida molda as feições das pessoas, por causa de uma série de fatores, como a dieta alimentar comum, o estilo de vida e o tempo passado ao ar livre em conjunto. Até o facto de sorrirem nas mesmas ocasiões alteraria as rugas de expressão, deixando-as iguais em ambas as caras.
A “convergência na aparência física dos cônjuges” explicava-se pela “sincronização dos amantes ao longo da vida, que termina com a imitação inconsciente e, com o tempo, altera as suas caras”.
Esta tese foi tomada por boa e ensinada nos cursos de psicologia, sem nunca ter sido cientificamente confirmada ou refutada, vêm agora chamar a atenção investigadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, que recorreram à tecnologia para tirar teimas. “É algo em que as pessoas acreditam e ficámos curiosos”, justifica a doutoranda Pin Pin Tea-makorn, citada pelo Guardian, que realizou o novo estudo com o seu colega Michal Kosinski.
Os dois investigadores recorreram ao Google, a anúncios de aniversários em jornais e a sites de genealogia para encontrar fotografias de casais feitas no início dos seus casamentos e após vários anos. Juntaram milhares de fotografias de 517 casais, tiradas dois anos após o “sim” e entre vinte a 69 anos depois, e começaram por apresentá-las a mais de 153 voluntários.
Uma e outra vez, mostraram-lhes uma fotografia de uma pessoa “alvo” acompanhada por seis outras caras, sendo uma delas do seu cônjuge e as restantes cinco selecionados aleatoriamente. E pediram-lhes para classificarem a semelhança de cada uma das seis caras com o “alvo”.
A mesma tarefa foi depois realizada por um software de reconhecimento facial de última geração, o VGGFace2, com demonstrada capacidade superior à humana para julgar semelhanças.
Juntando os resultados das observações feitas pelos voluntários e os dados do software, Pin Pin Tea-makorn e Michal Kosinski não encontraram nenhuma evidência de casais parecendo mais semelhantes com o passar do tempo. No entanto, sublinham os investigadores, no início do seu relacionamento, os membros de um casal assemelhavam-se mais um com o outro do que os pares aleatórios de pessoas.
“Encontrámos apenas evidência de homogamia [tendência para escolher um cônjuge ou parceiro com características semelhantes, como etnicidade, nível social, idade, religião)”, conta Pin Pin Tea-makorn. “As pessoas podem procurar parceiros parecidos, da mesma forma que procuram parceiros com valores e personalidades correspondentes.”
Note-se, por fim, que, tanto Robert Zajonc como Pin Pin Tea-makorn e Michal Kosinski apenas estudaram casais de heterossexuais brancos. Os resultados poderão ser diferentes noutro tipo de casais, lembra a dupla da Universidade de Stanford.