O jogo acabou, Bill. As pessoas não são cegas.” Isto foi o que Dejan Lovren, futebolista croata de carreira internacional, resolveu escrever nas redes sociais, como comentário a uma imagem que mostrava o criador da Microsoft a segurar um cartaz em que agradecia aos trabalhadores da saúde o extenuante e perigoso tratamento de doentes com Covid-19. Lovren é fã do profissional das teorias da conspiração David Icke e, no seu Instagram, o futebolista partilha acusações tão insólitas como a de o coronavírus estar a ser disseminado através da rede 5G de telemóvel, ou a de que qualquer vacina para cessar o contágio conterá “microchips de nanotecnologia” destinados a controlar o cérebro de quem a tomar. E se Bill Gates, por via da fundação que detém com a mulher, Melinda, é um dos principais financiadores de investigações científicas para desenvolver uma vacina contra o SARS-CoV-2, o tal “jogo” revela-se cristalino na cabeça de Lovren.
Embora estivesse no Porto, integrado na seleção do seu país para a partida da Liga das Nações, no estádio do Dragão, com Portugal (vitória da nossa seleção por 4-1), adivinha-se a enorme satisfação à distância de Lovren perante as notícias que lhe chegavam de Zagreb. Naquele sábado, 5 de setembro, milhares de pessoas concentraram-se na capital croata num protesto contra as medidas impostas pelas autoridades para combater a propagação do novo coronavírus. “A Covid-19 é uma mentira, não somos todos ‘covidotes’”, ou “Tirem a máscara, apaguem a televisão, vivam plenamente a vossa vida”, lia-se em alguns dos cartazes exibidos pelos participantes, apesar de uma segunda vaga da pandemia ser já, na altura, equacionada na Europa.
Os manifestantes antimáscaras, antidistanciamento e, sobretudo, antivacinas que convergiram de toda a Croácia para Zagreb talvez só tenham sido superados, em número, pelos cerca de 20 mil correligionários que, num domingo de agosto, se concentraram para o mesmo protesto em Berlim, organizado pela extrema-direita, que lhe chamou “Dia da Liberdade”, título do filme sobre a Wehrmacht (o exército alemão), de 1935, dirigido por Leni Riefenstahl, a cineasta que trabalhou ao serviço do aparelho de propaganda de Hitler. Ou seja, os manifestantes croatas terão ganho aos “colegas” de Paris, Madrid, Zurique, Londres e Roma. Na concentração na capital italiana, e só na aparência deslocados, alguns participantes empunhavam bandeiras de apoio a Trump. E, por sinal, uma sondagem feita pela Gallup nos EUA, em julho/agosto, assinalou que 35% dos inquiridos responderam que não tomariam a vacina contra o SARS-CoV-2, mesmo que estivesse aprovada pela FDA (Food and Drug Administration) e fosse gratuita. Aquela percentagem corresponde a mais de 100 milhões de habitantes do país…
O médico João Júlio Cerqueira, criador do projeto Scimed-Ciência Baseada na Evidência, considera que estamos a assistir a uma “fusão de paranoias”, em que “os proponentes de terapias alternativas e de bem-estar se juntam aos apoiantes da extrema-direita” na oposição às medidas oficiais para conter a pandemia. Há “dezenas de estudos” que “demonstram que os doentes seguidos por terapeutas alternativos têm muito maior desconfiança relativamente à vacinação”, acrescenta. E a “fusão de paranoias”, deteta o médico, funciona sob a mesma mensagem: “O vírus é uma desculpa para um enredo de proporções totalitárias, projetado para acabar com a liberdade de movimento, reunião, expressão e – para horror de alguns na indústria do bem-estar – impor um programa de vacinação em massa.” Estes grupos, resume João Júlio Cerqueira, “são um poço de desinformação” e vão causar estragos na contenção da pandemia.
DO MEDO À IMUNIDADE
De outra ordem são os receios relativos aos efeitos secundários e à eficácia da vacina para o SARS-CoV-2, que pode vir a estar disponível no final deste ano. E não faltam sondagens recentes a refletir aquelas apreensões. Em agosto, foi divulgada uma pesquisa feita pela Ipsos em 27 países (Portugal não incluído), por encomenda do Fórum Económico Mundial, em que 74% dos inquiridos responderam que tomariam a vacina contra o novo coronavírus, se já existisse, mas em que, entre quem disse que não a inocularia, 54% aludiram a receios sobre os efeitos secundários e 29% a dúvidas acerca da sua eficácia. Quanto a um estudo que incluiu Portugal, publicado em junho no European Journal of Health Economics, 21% dos inquiridos mostraram-se indecisos pelas mesmas razões.
Há quem acredite que a vacina conterá “microchips de nanotecnologia” destinados a controlar o cérebro de quem a toma
“É compreensível o receio face a uma ‘vacina feita à pressa’”, diz João Júlio Cerqueira. “Ao contrário de um medicamento, uma vacina é dada a pessoas sem qualquer doença, pelo que a segurança é, de facto, o fator mais relevante”, acrescenta. E a vacina russa já alardeada por Putin em nada ajuda. “Foram realizados apenas os ensaios mais precoces – fase 1 e fase 2 –, com uma amostra bastante pequena e usando maioritariamente pessoas jovens, pelo que não sabemos qual será o efeito noutros grupos demográficos e numa amostra de maior dimensão”, explica o criador do Scimed. E o grande perigo é o de, caso corra mal, “a experiência russa colocar em causa a credibilidade das restantes vacinas”.
A boa notícia, por outro lado, é que “a criação de uma nova vacina começa a ser cada vez menos difícil, graças ao know-how e à inovação tecnológica”, diz o médico. Significa isto “não só a criação da vacina em tempo menor, como iniciar os testes com relativa rapidez”. É isso que “está a acontecer com as mais de 100 vacinas que competem entre si para chegar ao mercado, e dar resposta à pandemia do SARS-CoV-2”, verifica o clínico.
Mas há que pôr a hipótese de a vacina falhar ou de demorar demasiado a chegar. Aí, “dificilmente teremos outra hipótese que não passe pela imunidade de grupo”, diz João Júlio Cerqueira. E, nesse campo, “começam a existir alguns sinais que podem ser positivos”, embora com características “preliminares”, nota o médico. Por exemplo, “há pessoas que parecem ser imunes ao SARS-CoV-2 graças ao contacto com outros coronavírus”. E mesmo havendo indivíduos que não produzem anticorpos protetores contra o SARS-CoV-2, após exposição ao coronavírus, “essas pessoas podem ser imunes graças à memória das células T”, que atacam congéneres infetadas por vírus, levando à sua destruição e cessando os processos de replicação viral, “algo que não é estudado nos testes serológicos”, diz.
Pensa-se que a imunidade de grupo se estabelece numa baliza percentual situada entre 60% e 85% de uma população. Mas também há quem defenda que aquelas percentagens podem ser mais baixas. E existe aqui um forte caso para apresentar: depois de brutalmente atingida pela pandemia, a cidade brasileira de Manaus regista agora uma redução significativa e “inexplicável” do número de infeções, ao mesmo tempo que atingiu uma “imunidade na ordem dos 20%”, anota João Júlio Cerqueira.
Ao contrário do que diz o futebolista croata Lovren, que acredita em vacinas com “microchips de nanotecnologia” para controlar o nosso comportamento, o “jogo” não acabou. E ainda bem.