É certo que o Serviço Nacional de Saúde enfrentará uma prova de fogo este inverno, quando, à Covid-19, se juntarem a gripe, a pneumonia e outras infeções respiratórias. No entanto, se forem evitados alguns erros cometidos no início do ano e mantidas práticas que se revelaram um sucesso, a missão parece ser mais possível que impossível.
O elogio às práticas adotadas em Portugal, no que respeita a mitigação da pandemia, chegou sob a forma de uma reportagem do jornal francês Libération. Após apontar a eficácia da resposta hospitalar demonstrada, tendo em conta o escassos meios que o Serviço Nacional de Saúde Português dispõe, o jornal destaca ainda o facto de, em comparação com a vizinha Espanha, o nosso país ter registado 10 vezes menos contágios e 16 vezes menos vítimas mortais (1 977 contra 31 973) desde o início da pandemia.
Em declarações à VISÃO, Luís Pinheiro, Diretor Clínico do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), que foi entrevistado pelo Libération, revela que a primeira fase de combate à pandemia beneficiou do fator antecipação. “Termos visto o que se passava em Itália e Espanha permitiu-nos ter uma perceção, tanto conceptual como prática, do cenário que não queríamos ver reproduzido em Portugal.” Mas, segundo o médico, o elemento determinante foi a capacidade de mobilização, flexibilidade, espírito de sacrifício e entrega dos profissionais de saúde. “No caso de Santa Maria, para que pudéssemos dar uma resposta adequada, tivemos de implementar mudanças profundas no dia a dia, que implicaram uma política de grande flexibilidade e disponibilidade, perante a evolução da situação”, acrescenta Luis Pinheiro.
Além dos profissionais de saúde, o mérito da resposta dada à pandemia é atribuído também às medidas de confinamento impostas pelo Governo, imediatamente a meio de março, e ao cumprimento das mesmas por parte dos portugueses. Em declarações ao Libération, o politólogo António Pinto Costa confirma que “Governo, Presidente da República, unidades de gestão de crise e Sistema Nacional de Saúde uniram-se ao serviço de uma vontade política comum”.
Também o presidente do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, falou com a publicação francesa, afirmando que a velocidade com que o País respondeu à pandemia era algo inevitável. “Se não tivéssemos reagido tão depressa, isto teria sido um verdadeiro massacre”, comenta o médico. Apesar de tudo, o jornal não deixa passar incólumes as mortes ocorridas em lares de idosos, os surtos concentrados no Algarve ou a realização da Festa do Avante.
Rigor governamental e contenção exemplar
Não só com elogios se desenha o sucesso, mas, neste caso, também os números parecem apontar para um resultado positivo. Se o futuro é incerto, o passado, inscrito nas estatísticas do site ourworldinata.org, mostra como, num Índice de Rigor Governamental (de zero a 100), entre 19 de março e 26 de julho, a resposta do governo português foi considerada muito rigorosa, com valores em torno de 80.
Este índice é um importante indicador, uma vez que é calculado de acordo com nove medidas governamentais de mitigação à pandemia, que vão do fecho das escolas e locais de trabalho ao cancelamento de eventos públicos, proibição de ajuntamentos, interrupção da circulação de transportes públicos, medidas de confinamento em casa, promoção de campanhas de informação, restrições de movimentações internas e externas e ainda controlos nas viagens internacionais.
Outro importante indicador, no qual Portugal se posiciona francamente acima de outros países mediterrânicos como França, Espanha, Itália ou Grécia, é o Índice de Contenção e Saúde. Além de recorrer às nove medidas elencadas anteriormente, o cálculo deste índice considera ainda a política de testes e a extensão de rastreamento de contactos. Também aqui falamos de uma escala de zero a 100, na qual Portugal verifica valores em torno de 70, até ao final de julho, enquanto França, Espanha, Itália ou Grécia apresentam valores, a partir de junho, na ordem dos 40 a 50.
Os hospitais estão preparados
Resta perceber como estão a preparar-se os hospitais para que o inverno não arraste consigo as conquistas conseguidas até ao momento. No Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em consonância com o plano de Saúde para o outono-inverno 2020-21 da Direção Geral de Saúde (DGS), todos os casos de pacientes com sintomas respiratórios suspeitos estão a ser encaminhados para uma Área Dedicada à Doença Respiratória, separada das restantes. “Era algo que já fazíamos antes da indicação específica da DGS e que nunca abandonamos completamente, pelo contrário, reforçamos a estrutura”, explica Luís Pinheiro.
Também o Hospital de São João, no Porto já tem uma área respiratória, de acordo com as indicações da DGS. Margarida Tavares, infecciologista no mesmo hospital, explica que, por agora, a prioridade é perceber se o doente tem Covid e, quando chegar a época gripal, serão então testadas ambas as doenças. “Não gostaríamos de internar doentes com Covid e gripe junto de doentes que têm apenas Covid, levando a gripe para dentro dessa enfermaria ou Unidade de Cuidados Intensivos. O ideal será separar esses doentes uns dos outros”, revela a médica.
Quanto aos próximos meses, Luís Pinheiro aponta a aprendizagem feita no passado, o maior conhecimento em relação à Covid-19 daí resultante e a reserva de equipamentos e materiais, como os elementos que permitem encarar a incerteza “sem excessiva angústia, com um olhar realista e informado”.
O que não pode voltar a falhar
O rastreio das cadeias de contactos pode ser um dos calcanhares de Aquiles do nosso país, a não descurar no período invernal que se avizinha. Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, alerta para o facto de, no início da pandemia, além de a linha SNS24 ter colapsado, ter havido dificuldade em dar resposta no rastreamento de cadeias de contacto na periferia de Lisboa. “São duas situações que eventualmente podem vir a repetir-se e tal não seria desejável”, alerta.
No Hospital de Santa Maria há ainda a preocupação em não descurar os doentes não Covid. O retomar das consultas, rastreios e cirurgias programadas, bem como uma maior afluência às urgências, constituem o novo grande desafio de organização e gestão hospitalar.
“Temos de conseguir dar resposta, sobretudo a nível dos internamentos não-Covid não programados. Se antes combatíamos a Covid com uma série de atividade adiada, isso agora não vai nem pode acontecer “, afirma o Diretor Clínico do CHLN. O médico refere ainda que, apesar do reforço que tem vindo a ser feito nas equipas de médicos e enfermeiros, será a disponibilidade, flexibilidade e entrega dos profissionais, demonstrada até ao momento, a determinar o resultado final da resposta dada.
A pouco mais de um mês do inverno e do pico da época gripal, é importante perceber se a ação governamental, a resposta da saúde pública e o estilo de vida dos portugueses permitirão perpetuar aquilo que o virologista Pedro Simas apelidou de “um desconfinamento exemplarmente controlado”.