Imaginemo-nos daqui a dez, 20 ou 30 anos. Entramos num museu mais ou menos conhecido, mais ou menos conhecedores das exposições em exibição. À entrada de uma delas, lê-se: “2020”. Essa sala terá as respostas a todas as perguntas que queremos saber agora. E já se pode ter a certeza de que essa sala vai existir.
Desde o início da pandemia, 90% dos museus de todo o mundo fecharam portas. Rapidamente abriram janelas para o público, traduzindo coleções para o digital com atividades à distância. Nunca tantos museus estiveram fechados durante tanto tempo, o que levantou a questão: qual o papel dos museus, os colecionadores do passado, num presente que certamente ficará para a História?
Para João Neto, diretor do Museu da Farmácia e historiador da Saúde, o trabalho dos museus é “guardar o presente”. Foi por isso que, logo no início de março, chegou ao Museu da Farmácia uma zaragatoa. Doada pelo Hospital de São João, no Porto, o primeiro a realizar estes testes, seria a peça inicial de uma autêntica cápsula do tempo da chegada da pandemia a Portugal.
O protótipo do primeiro ventilador português, a radiografia do primeiro farmacêutico internado nos cuidados intensivos e a fotografia do novo coronavírus feita por um laboratório português são alguns dos “marcos da Ciência”, descreve João Neto. Além de equipamentos hospitalares, como testes portáteis e viseiras, a coleção conta com o discurso do anúncio do estado de emergência por Marcelo Rebelo de Sousa, a 18 de março, e uma máscara caseira doada por Bento Rodrigues – o pivô contou, em pleno Jornal da Noite, ter sido uma vizinha a fazê-la e a deixá-la à sua porta.
A coleção, como a própria história da Covid-19, não há de ser fechada tão cedo e o Museu da Farmácia não está sozinho na recolha. A do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, já tem nome: “Coleção Resposta ao SARS-CoV-2”. Começou em maio a reunir-se uma “compilação das respostas e soluções, formais e informais, encontradas para mitigar esta ameaça sanitária”, explica fonte oficial. Viseiras, testes e máscaras – incluindo uma de cortiça – fazem parte da coleção, em permanente construção.

Também o Museu da Saúde do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge tem uma exposição nos planos, mas a maioria da coleção está apenas pensada. Há material médico atualmente necessário que, depois da pandemia (quando, ninguém sabe), poderá fazer parte do espólio. Até lá, o Museu da Saúde aceita “de bom grado tudo o que se relacione com a pandemia”, desde que “devidamente higienizado e esterilizado”.
Lidar com objetos que já entraram em contacto com o coronavírus exige um trabalho de conservação e segurança desafiante pelos museus. Nas palavras de João Neto, “preservar um objeto da Ciência é muito mais difícil do que preservar uma obra de arte”.
Olhar a pandemia além da Saúde
Os objetos que caracterizam os últimos meses vão muito além da Saúde. Para a antropóloga Mónica Saavedra, cujo trabalho se debruça sobre a história da Saúde, uma coleção que olhe exclusivamente para a parte científica da pandemia “arrisca-se a ser uma história parcial”. A investigadora considera que, por vezes, os museus de ciência e da saúde “caem numa narrativa laudatória” ao mostrar apenas os marcos técnicos, ainda que vitais, de um acontecimento com mais efeitos negativos do que positivos em várias camadas da sociedade.
Alguns museus internacionais estão a contar com doações da população (tão diversas como chamadas da plataforma Zoom ou desenhos de arco-íris) para eternizar a memória coletiva da pandemia. Segundo o alemão Deutsche Welle, um dos novos artefactos do Museu da Cidade de Colónia é uma representação do coronavírus em crochê.
Em França, foi criado o Instituto Covid-19 Ad Memoriam, “uma plataforma de investigação e reflexão coletiva” que está a recolher depoimentos orais da população. A pandemia é descrita pelos investigadores como uma “grande rutura antropológica”. O Museu Autry do Oeste Americano, nos EUA, tem já uma coleção de 160 itens, entre os quais, conta o New York Times, o diário de uma criança de 6 anos que, em março, desenhou uma cara tristonha por não poder sair de casa.
Além da recolha de dados da pandemia, museus como o norte-americano Smithsonian também estão a arrecadar cartazes dos protestos do movimento Black Lives Matter, que ressurgiram com o assassinato de George Floyd no final de maio. “O grande desafio na inclusão passa por [os museus] serem capazes de dar conta das experiências pessoais” vividas de forma a que se reinterprete o papel do museu “como uma produção da sociedade em conjunto”, refere a antropóloga Mónica Saavedra.
O diretor do Museu da Farmácia, João Neto, não põe de lado uma futura contribuição comunitária para o espólio da pandemia, mas assume que, “neste momento, o que nos impele são marcos que fizeram a diferença na resposta ao vírus”, como equipamentos médicos e acontecimentos oficiais.
Guardar a História é mais fácil
“Construir uma coleção não é o mesmo do que reunir objetos”, garante o diretor do Museu Nacional de Etnologia, sob pena de serem “meramente ilustrativos” de uma realidade superficial. Têm de ter “uma dimensão tal” por detrás – as experiências das pessoas que os usaram – para nos “permitir reconstituir a pandemia”, descreve Paulo Costa.
Para o museólogo, o acesso do futuro a 2020 não será exclusivamente o objeto. As imagens que nos ficaram na cabeça, como as capturas de drone das cidades desertas ou as filmagens das janelas recheadas de palmas para os profissionais de saúde, serão “a chave”, diz Paulo Costa, para se contar esta história: “Os museus com objetos não vão conseguir contar mais do que os arquivos de imagens.”
A diversidade de recursos tecnológicos permite que a gravação da memória seja muito fiel à realidade, quando esta se torna passado. Da última pandemia, há 100 anos, não restam nem perto das memórias que podemos eternizar hoje em dia. Mas tem de haver critério. Por essa mesma razão, João Neto afirma que “a perceção de que aquilo que recolhemos é importante ou não só é possível no futuro” – o que vale tanto para quem ainda não é nascido em 2020 como por quem viveu estes meses.
Alguns museus internacionais estão a contar com doações da população ou a recolher depoimentos orais
De um período de investigação em York, no Reino Unido, em 2017, nasceu um livro coassinado pela antropóloga Mónica Saavedra. Tuberculose – Uma Breve História contou com tantos registos fotográficos que os investigadores decidiram organizar uma exposição. “Para nossa surpresa, a maior parte dos visitantes eram pessoas mais velhas que tinham tido contacto direto com a doença, ou por terem eles próprios contraído tuberculose ou por familiares.” Mónica Saavedra diz que “houve até quem fizesse questão de falar com os investigadores e partilhar histórias pessoais”.
“Há probabilidade de acontecer o mesmo com os sobreviventes da Covid-19”, admite Mónica Saavedra, mas talvez não num futuro próximo. Pode ser ainda muito cedo para quem perdeu entes queridos. Por isso, João Neto considera que tem de haver um “distanciamento” emocional na estruturação das exposições – porque “as pessoas não vão à procura de más memórias nos museus”. Mas, por outro lado, as pessoas têm “memória curta”, reflete Mónica Saavedra, e, com base na experiência da investigadora em York, o contacto posterior dos sobreviventes com a História que protagonizaram pode ajudar a sarar as feridas em vez de as reabrir.
O certo é que a memória é vital, especialmente em momentos de crise. Porque aprender é tão humano quanto errar, ou, nas palavras do escritor e sobrevivente do Holocausto Elie Wiesel, “viver uma experiência e não a transmitir é traí-la”. Os museus, como guardiões da memória e já de portas abertas, têm um longo trabalho pela frente com a pandemia. Como João Neto atira prontamente: “De que vale um museu fechado?”