Apesar de reconhecer a imprevisibilidade da situação, Ivan Krastev, um dos mais respeitados analistas do cenário europeu e mundial, é um otimista. Em entrevista por Skype à VISÃO, o investigador do Instituto de Ciências Humanas de Viena explica porque entende que a pandemia vulnerabilizou os regimes autoritários.
Na versão portuguesa, o seu livro tem como subtítulo Como a Pandemia Vai Mudar o Nosso Mundo. Acha que a Covid-19 vai mudar o mundo ou, assim que houver uma vacina, este voltará a ser o que era?
Claro que se trata de uma pergunta em aberto, mas, a meu ver, existem três razões que me levam a acreditar nessa mudança. Em primeiro lugar, o mundo já estava a mudar imenso, mesmo que nós não estivéssemos preparados para ver essas mudanças. Por exemplo, já havia um certo nível de desglobalização e de enfraquecimento das cadeiras logísticas globais, bem como uma ascensão do protecionismo económico e do nacionalismo político em diferentes regiões. Portanto, esta crise tornou mais visível tudo aquilo que nós não víamos. Em segundo lugar, foi uma crise que nos forçou a pensar sobre a forma como estávamos a viver, que expectativas tínhamos. Como resultado, julgo que há muitas coisas que não voltaram atrás, nomeadamente o facto de as pessoas terem estado a trabalhar a partir de casa. Tenho a certeza de que algumas empresas vão gostar desta nova normalidade, porque isso lhes permite cortar custos. Por fim, parece-me que muitos destes medos, sobre o mundo e o modo como vivemos, vão ser aguçados por esta crise.
Como imagina o “fim” da crise?
Eis outro dos aspetos interessantes desta crise: quando é que isto acaba? O que significa “fim”? Mesmo que venhamos a ter uma vacina, é preciso equacionar, por exemplo, a questão de metade de os norte-americanos não quererem ser vacinados. Vejo mudanças irreversíveis, e muitas pessoas, empresas e governos aproveitarão esta crise para ajustarem a sua situação.
Há no ar uma certa nostalgia sobre o mundo pré-pandemia?
Mesmo que não gostássemos muito do mundo pré-Covid-19, todos nós estamos um pouco nostálgicos. Era mais fácil viver. Por outro lado, existem também as pessoas que andavam a sonhar com uma mudança radical e que, agora, estão com uma sensação agradável. Por exemplo, um ativista climático sabe que é possível parar todos os aviões, um nacionalista também ficou a saber que se pode fechar todas as fronteiras. Portanto, por um lado, temos nostalgia, mas, por outro lado, temos um empurrão para uma mudança radical. Vamos assistir a muitas negociações entre uns e outros – e estas negociações terão desfechos diferentes nas várias partes do mundo.
Defende que os governos autoritários foram ameaçados pela pandemia. Devemos estar otimistas quanto aos efeitos políticos da Covid-19?
Um dos meus argumentos é o de que nós não conseguimos compreender o quão bem-sucedida foi a resposta à pandemia dos vários governos dividindo-os entre democracias e autocracias. Estamos sempre a comparar, a ver quem está a ir bem, quem está a ir mal, mas a verdade é que os países que foram elogiados há dois meses estão, agora, a ser muito criticados. Não é fácil, isto é como tentar falar da situação do pós-guerra quando a guerra ainda não terminou.
O que, em seu entender, determinou as respostas dos diferentes governos?
Em primeiro lugar, o nível de confiança social existente nas sociedades. Em crises como estas, é muito importante que as pessoas confiem nos governos e, por muito repressivo que seja um governo, não há forma de obrigar as pessoas a lavar as mãos. Em segundo lugar, também é interessante verificar que a funcionalidade dos Estados foi fundamental. É muito óbvio que Singapura e China tinham a capacidade para implementar políticas, mas este também foi o caso da Coreia do Sul, da Alemanha e da Dinamarca. E, depois, havia ainda a questão dos líderes autoritários, muitos deles eleitos democraticamente, como Trump e Bolsonaro…
… Que revelaram as suas fraquezas?
A questão é que o populismo está enraizado na ansiedade – e não no medo. Quando o perigo real vem (e, neste sentido, a Covid-19 era um perigo real, as pessoas tinham medo de ser infetadas, que os seus familiares e amigos morressem), as pessoas procuraram governos que as protegessem. E não figuras que dessem voz às suas ansiedades. Depois, líderes autoritários, como Trump e Bolsonaro, gostam de crises que consigam controlar. De repente, existe uma crise – e já não é suficiente ir à televisão fazer um discurso, não é possível culpar alguém. Como líder, o Presidente Trump é extremamente ineficaz e fraco. Também vimos este tipo de comportamento na Bielorrússia, com Lukashenko. Além do mais, este tipo de líderes não consegue dividir o poder – não só com outros políticos mas também com os médicos. Uma das razões do êxito de países como a Alemanha residiu no facto de ter permitido que os médicos tivessem um papel preponderante no processo de decisão. Pessoas como Trump não permitem este tipo de processo de decisão, porque, sendo líderes populistas e carismáticos, acreditam que as suas palavras é que produzem a realidade, como que por magia.
Mas com a diminuição do medo em relação em vírus e com o aumento da raiva originada pela situação económico-social, os populismos não são uma ameaça crescente?
Claro que sim. Aquilo que eu descrevi correspondeu a uma primeira fase da pandemia. Depois, o que vai acontecer é que as preocupações económicas prevalecerão sobre as preocupações da saúde pública. E isto vai dividir as sociedades, com base nas profissões, na educação, na idade… Além disso, os governos que inicialmente foram elogiados vão começar a ser responsabilizados pelo impacto económico da crise. Assistiremos a uma competição sobre quem é que liderará a situação, mas penso que o mais importante é os governos explicarem bem às pessoas o que estão a fazer, deixarem claro que compreendem a severidade da situação.
Que opinião tem sobre a resposta da União Europeia?
O compromisso a que se chegou entre governos europeus é muito radical, sobretudo quando o comparamos com a solução encontrada aquando da crise financeira. Desta vez, a Europa reagiu de forma oposta. Podem existir muitas contradições, não vemos, por exemplo, grandes sentimentos federalistas na Europa. No entanto, creio que as pessoas perceberam que, da mesma forma que não podemos ficar sempre presos no nosso apartamento, também não podemos ficar fechados no nosso Estado-nação. Devemos jogar, movermo-nos, abrir as fronteiras. Julgo que até os nacionalistas perceberam que a única hipótese de a Europa manter alguma relevância neste mundo é consolidar-se ao nível continental. Acredito que vamos assistir a um fortalecimento do projeto europeu, descobrir a natureza excecional dos nossos modelos económicos e das nossas instituições políticas.
Escreveu o livro na Bulgária. É onde se encontra, neste momento?
Sim, estive em Viena, durante uns tempos, mas estou de regresso à Bulgária. Bem, na verdade, estou na costa do mar Negro, a aproveitar o verão e o mar. No entanto, na Bulgária, como na maior parte dos países da Europa de Leste, temos um número crescente de pessoas a morrer…
O livro
Escrito por Ivan Krastev, nascido na Bulgária, em 1965, O Futuro por Contar (Objectiva, 104 págs., €12,90) é uma análise incisiva e bem fundamentada, sobretudo porque, sobre o mundo pós-Covid-19, contém tanto de certezas quanto de dúvidas.