Seria um sinal positivo olhar para os números e, sem mais, verificar que os “adiantamentos de indemnizações”, como a lei lhes chama, pagos às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica cresceram, de 2018 para 2019, cerca de 16 por cento – de €645 mil para €748 659,87. Mas esse sinal é enganoso, se lermos com atenção o último relatório, referente ao ano passado, da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes (CPVC), organismo administrativo essencialmente financiado pelo Orçamento do Estado, que funciona na dependência do Ministério da Justiça, e que decide a atribuição daquelas compensações. Estão aqui sobretudo em causa situações em que o Estado compensa as vítimas quando, na sequência de um crime, estas não conseguem ser indemnizadas pelo agressor.
Em 2019, a CPVC foi inundada com 331 pedidos de adiantamentos de indemnizações, igualando o recorde registado em 2015. Apenas com duas funcionárias e dois membros a tempo inteiro (o presidente, Carlos Anjos, inspetor-chefe da Polícia Judiciária, em comissão de serviço no cargo desde 2011, e a jurista Paula Silva, indicada pela ministra da Justiça), a CPVC encontra-se à beira do afogamento. Embora tenha, a tempo parcial, mais três vogais (o juiz Artur Cordeiro, a procuradora Maria Fernanda Alves e, em representação do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, Pedro Cabeça), as grandes dificuldades de funcionamento da comissão estão à vista no seu último relatório.
“Desde 2012 que a comissão executa a 100% o seu orçamento, sendo que anualmente têm ficado processos por pagar”, lê-se no documento. Com o atual nível de financiamento, acrescentam os membros da CPVC, “não será nunca possível à comissão liquidar todos os adiantamentos de indemnização que anualmente são deliberados e que vão transitando nos processos pendentes de ano para ano”. A título de exemplo, o valor total de adiantamentos de indemnização a pagar, em 2019, a vítimas de crimes violentos era de €662 830,01, mas apenas lhes foram desembolsados €565 479,87, “transitando o remanescente (€97 350,14) para ser liquidado em 2020”. A comissão assume: “Não existem fundos necessários para pagar as compensações.”
Outro estrangulamento prende-se com o quadro do pessoal administrativo da comissão. “Se não for reforçado, a instrução dos processos será sempre muito mais demorada e, pelas mesmas razões, a decisão será dilatada no tempo”, avisa-se no documento. “É muito difícil explicar às vítimas que existem pedidos apresentados em 2013 e que estão ainda à espera de decisão final”, lê-se no relatório que a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, viu e homologou recentemente.
Escrutínio apertado
“É muito difícil explicar às vítimas que existem pedidos apresentados em 2013 e que estão ainda à espera de decisão final”, lê-se no relatório, enviado à ministra Francisca Van Dunem
Pelo dados disponibilizados, verifica-se que a “ponderação” e a “equidade” com que a CPVC assegura deliberar sobre os pedidos de compensação têm um crivo apertado, sobressaindo a “grave carência económica” com nexo de causalidade no crime cometido. Veja-se: nos processos findos em 2019, dos 116 casos decididos quanto a pedidos de adiantamento de indemnizações apresentados por vítimas de crimes violentos, 71 foram chumbados. Viram aprovadas as indemnizações 45 requerentes.
Já em relação às vítimas de violência doméstica, os números invertem-se. Dos 133 processos concluídos no ano passado, 81 tiveram indemnizações aprovadas, e 52 requerentes viram o pedido de compensação chumbado.
Quanto aos valores efetivamente executados em 2019, foi pago um total de €565 479,87 relativo a 40 processos com indemnização a vítimas de crimes violentos. Essa verba, no entanto, apoiou 47 pessoas, o que se explica por em alguns processos existirem mais do que um requerente. Um exemplo frequente ocorre nos casos de homicídio, em que um dos progenitores foi morto (normalmente a mãe) e em que o outro se suicidou ou acabou preso. É recorrente que nessas situações o casal tenha mais do que um filho, pelo que no mesmo processo existem apoios a mais do que um requerente/vítima.
Os assassínios, diga-se, são os casos que suscitam o maior número de requerimentos, seguindo-se-lhes os de homicídio tentado, os de abuso sexual de criança/adolescente/menor dependente, os de violação e os de ofensa à integridade física grave.
Ainda nos valores efetivamente executados em 2019, foi pago um outro total de €183 180 relativo a 120 processos com indemnização a vítimas de violência doméstica, para apoio a um mesmo número de pessoas. Em médias aritméticas simples por vítima, temos €12 031,49 nos crimes violentos e €1 526,50 na violência doméstica.
No relatório que agora enviou à ministra da Justiça, a CPVC sugere soluções para a asfixia financeira em que se encontra. Diz que existem países europeus, como França e Espanha, “em que o financiamento é misto”. Ali, o “Estado assegura uma parcela importante desse financiamento”, enquanto a outra advém de “todos os cidadãos ativos, inseridos no mercado trabalho”, que “pagam anualmente uma pequena verba, numa única prestação, destinada em exclusivo ao fundo de apoio a vítimas de crimes”. Em França, cada cidadão paga por ano cerca de cinco euros, enquanto em Espanha desembolsa cerca de €2,50.
No Norte da Europa, em países como a Dinamarca ou a Noruega, há também sistemas mistos, mas com outras características. “O Estado assume uma parte desse fundo, enquanto uma outra advém dos prémios de jogo (cerca de 0,01% do valor desses prémios) ou dos prémios dos seguros (cerca de 0,01% do valor desses prémios)”, lê-se no documento.
“É inegável a quase impossibilidade de ser o Orçamento do Estado a assumir por inteiro esta responsabilidade social”, diz o relatório. “Uma vez que todos nós somos potenciais vítimas de crime, reitera-se que existem várias soluções, já testadas em países da União Europeia, que poderão ser também adotadas em Portugal – numa escolha que tem de ser estudada, fundamentada e assente em critérios objetivos, que permita uma decisão política esclarecida”, acrescenta. Aguardemos, pois.