Os morcegos tornaram-se recentemente famosos como reservatórios de vírus perigosos para humanos e por possuírem parentes muito próximos daqueles que causaram o surto de SARS em 2003 e a pandemia de Covid-19 de hoje. Um relatório publicado na Knowable Magazine tenta descodificar as razões por detrás da tolerância que estes mamíferos têm.
Antes do surgimento do Covid-19, os cientistas já estavam a reunir evidências sobre a relação entre os vírus e o morcego. Mas essa pesquisa assumiu agora uma nova urgência: se entendermos melhor como os morcegos toleram os seus passageiros virais, poderemos entender melhor como é que as infeções virais ocorrem nas pessoas. E isso pode ajudar na criação de tratamentos que tornem as infeções menos graves nos humanos.
“Em vez de tentarmos reinventar a roda, poderíamos aprender com a evolução do morcego, onde o resultado não é doença, mas algo que permite a sobrevivência após a infeção por um vírus específico”, revela a imunologista celular Judith Mandl, da Universidade McGill, em Montreal. “Se descobrirmos isso, talvez possamos aplicar os mesmos princípios e modular a resposta imune em humanos”.
Pesquisas sugerem que o sistema imunológico dos morcegos lida com invasores virais de duas maneiras principais: primeiro, os morcegos montam uma ofensiva veloz, mas subtil, que impede o vírus de se multiplicar. Segundo, eles diminuem a atividade das células que, de outra forma, poderia causar uma resposta inflamatória maciça que causaria mais danos do que o próprio vírus.
“Os morcegos têm muito dessa boa resposta imune – suprimindo a replicação de vírus – que os protege”, afirma Arinjay Banerjee, virologista na Universidade de McMaster, em Hamilton. “E eles têm muito pouco da resposta imune não tão boa, que é a inflamação”. A inflamação fora de controlo é um tema comum em doenças graves causadas por vírus que saltaram de outras espécies e está comprovado que pode ser mortal.
No caso dos morcegos, ter muitas cópias de um gene apresenta oportunidades, diz Thomas Kepler, imunologista da Universidade de Boston. Alguns dos genes podem aumentar ou diminuir sua atividade, enquanto outros mantêm as funções normais. “Em vez de todos os interferons [proteínas produzidas para interferirem com um vírus] soarem o alarme de guerra, outros podem dizer às células para segurar o fogo e ficarem firmes”.
Entender estas respostas imunes bem-sucedidas pode um dia levar a estratégias para mitigar a gravidade da doença nas pessoas. Se souberem quais as partes ou moléculas do sistema imunológico que precisam de ser compactadas para evitar inflamação quando um vírus infecta, os cientistas podem vir a “desenvolver uma terapia ou medicamento que possa atrapalhar esse caminho para impedir que a resposta inflamatória ocorra”, sugere Schountz, imunologista viral na Universidade do Colorado.
O estudo dos morcegos tem objetivos mais imediatos e urgentes. “É realmente importante estudar morcegos na natureza, entender onde estão os vírus, para que possamos tentar entender porque é que eles vêm dessas populações e matam pessoas”, diz o epidemiologista David Hayman, da Universidade Massey, na Nova Zelândia.
Tendo em conta os surtos que têm sido associados a morcegos nos últimos anos – vários coronavírus, Hendra, Nipah, Ebola, Marburg e muitos mais – vários investigadores de doenças infeciosas dizem que é de máxima importância entender a probabilidade de futuros eventos de propagação.
Stresses sobre as espécies animais, como a escassez de alimentos ou a perda de habitat, podem levar a períodos de propagação viral. Hayman e colegas descobriram que as mudanças no uso da terra na África Ocidental resultaram na fragmentação das florestas em que os morcegos vivem e que isso coincidiu com os surtos de Ébola.
Tentar acabar os encontros entre humanos e morcegos não pode passar por eliminar a última espécie, enfatizam os especialistas. “Isso seria um desastre”, diz Plowright, Raina Plowright, uma ecologista de doenças infeciosas e veterinária da vida selvagem na Universidade Estadual de Montana. “Eles fornecem serviços ecossistémicos enormes.” Os morcegos são polinizadores cruciais de centenas de plantas, ajudam na dispersão de sementes, e muitos alimentam-se de insetos, o que os torna importantes para controlar pragas.
Há ainda muito trabalho a ser feito ainda neste campo, asseguram, e pode ser muito difícil. Com a pandemia do Covid-19, os cientistas expressaram consternação e espanto com a recente cessação do financiamento para pesquisas com morcegos e coronavírus pelo National Institutes of Health dos EUA. Mas o seu trabalho continua mesmo assim.