Já se deparou com notificações no seu móvel a dar conta de que esteve mais tempo online do que na semana anterior? Se sim, é caso para preocupar-se? Depende. Se à inquietude de estar a par das mensagens e mails que recebe em teletrabalho somar as vezes que consulta a meteorologia, a lotação das praias e as redes sociais e a isso acrescentar as vezes que consulta o GPS durante a condução e aquelas em que paga o combustível, o estacionamento e os serviços de take away sem usar dinheiro, pode estar na altura de avaliar se esse registo está efetivamente a ter um impacto negativo no seu quotidiano e na saúde. Afinal, temos uma relação com a tecnologia e qualquer relacionamento passa por crises: se as chutar para canto, pode ter surpresas e sofrer com isso. Se viver sem ela é impossível no cenário pandémico, viver com ela pode ser problemático também, na medida em que a tecnologia é uma amiga e, ao mesmo tempo, uma inimiga. Ou seja, é uma “aminimiga”. O dilema está a merecer o interesse dos investigadores.
O grande paradoxo
Os primeiros sinais de mal-estar são evidentes: a sensação de ansiedade e angústia na hora em que a bateria do telefone está prestes a chegar ao fim, por exemplo. É provável que o coração dispare, surja falta de ar, desconforto e um medo irracional de ficar sem o telemóvel ou outro equipamento tecnológico, conhecido por nomofobia. O termo foi criado pela organização inglesa YouGov, sediada no Reino Unido, e deu a conhecer um estudo, no final da década passada, onde se verificou que 53% dos utilizadores apresentavam os sintomas atrás descritos quando se viam privados de aceder aos seus equipamentos móveis. Agora, que o consumo tecnológico disparou, com níveis de stresse a condizer, a comunidade científica, que até aqui não considerava a questão no manual de classificação das perturbações mentais, está a repensar o assunto. Devemos arrumá-lo na categoria das perturbações ansiosas? Nas dependências? Ou considerar que se trata de uma patologia moderna? Esta última hipótese parece a mais plausível, sugere um artigo da Psychiatry Advisor: Gail Kinman, docente da Universidade de Bedfordshire, no Reino Unido, nota que as pessoas ansiosas são mais propensas a procurar conforto nestes dispositivos se estiverem a sentir-se deprimidas e solitárias e, por arrasto, correm riscos acrescidos de ficarem dependentes deles.
Num outro artigo divulgado este ano sobre o impacto do aumento da presença digital durante a pandemia – devido às normas de distanciamento social e medidas adotadas na quarentena – o stresse tecnológico, ou tecnostresse, é apontado como certo. Porém, a adesão ao digital também será maior pelas mesmas razões (note-se que segundo os resultados do barómetro da Pitagórica para o Jornal de Notícias, mais de 60% dos portugueses apoiam o uso dos telemóveis para identificar contactos com infetados face a uma segunda vaga de Covid-19). Esse é o grande paradoxo. Qual destas duas tendências seguir: as recomendações da Organização Mundial de Saúde e apostar no uso parcimonioso da tecnologia ou, tendo em conta o panorama atual, estar sempre ligado e suportar os efeitos secundários, negativos portanto, para a saúde física (sedentarismo, obesidade, problemas de sono e afins) e mental (perturbações ansiosas e tecnostresse)?
Entre o oito e o oitenta
Pedro J. Rosa, psicólogo e investigador no HEI-lab Human Environment Interaction-lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, está a realizar um estudo com a colaboração de Patrícia Pascoal, presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, no sentido de esclarecer até que ponto o stresse emocional está associado ao uso das novas tecnologias, no caso, à sua sobreutilização. “Se entendermos a relação com a tecnologia num continuum, temos num extremo o medo extremo de mexer nela e a evitá-la, ou tecnofobia, e no outro a tecnofilia, ou hiper identificação com a tecnologia”, esclarece. “Qualquer destas situações é disfuncional e tem efeitos negativos na saúde.”
Com a pandemia, assistimos com frequência a outro fenómeno que na gíria científica dá pelo nome de “technostrain” e se manifesta pela combinação de ansiedade, fadiga, ceticismo e ineficácia relacionados com o uso das TIC, sendo a ansiedade e a fadiga as experiências afetivas mais comuns. “Muitos utilizadores foram obrigados, por imposição do confinamento, a usar software que desconheciam (e.g. ZOOM, TEAMS)”, afirma o psicólogo. Pensar que não se vai conseguir usar capazmente as novas tecnologias pode gerar resistência em usá-las por receio de cometer erros e causar danos no programa ou perder informação. “Basta lembrar o que aconteceu quando a Microsoft, passou do sistema Windows 7 para o Windows 8”, exemplifica. “Mesmo os utilizadores mais experientes sentiram-se ansiosos por terem que lidar com uma interface nova.”
A imersão no universo do teletrabalho e das aulas à distância surgiu pouco depois de os telemóveis já terem superado os equipamentos fixos no acesso à Internet. Pedro “Podemos estar a resvalar para o pólo da sobreutilização e a ter uma preocupação constante em que a bateria não falte, nem a powerbank, nem o pacote de dados móveis, por exemplo”.
Em 2025, a Internet e os dispositivos de computação serão a nova eletricidade e vão fazer parte de todas as áreas das nossas vidas
Estimativas do Pew Research Center e da Elon University, nos Estados Unidos
O também coordenador do Laboratório de Psicologia Experimental do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, em Portimão, acrescenta outras situações que passaram a fazer parte do nosso dia a dia, desde ir às compras e não poder usar o cupão de desconto porque não levaram o móvel a precisar de encontrar uma forma de estacionar sem ser multado por não ter espaço no equipamento para descarregar uma aplicação criada com esse nem moedas à mão. Estamos, pois, na presença de fatores de stresse que podem estar envolvidos nos processos de ruminação, preocupação e desregulação das emoções. O tecnostresse a que não podemos fugir e com o qual teremos que aprender a lidar, procurando um meio termo, um ponto de equilíbrio, que nos permita viver com o “aminimigo” digital: não se pode viver sem ele, mas com ele é uma luta constante que desgasta, comprometendo a forma como comemos, respiramos e nos comportamos de um modo geral.
Investigar e encontrar o meio termo
O estudo, conduzido pelos investigadores Pedro J. Rosa e Patrícia Pascoal, vai permitir “expandir os modelos explicativos do stresse emocional à área do tecnostresse e dar pistas sobre o uso disfuncional das tecnologias, e sua ligação à ansiedade e depressão”. Para participar nesta investigação, aberta a cidadãos de língua portuguesa com 18 e mais anos, pode aceder aqui. Trata-se de um questionário onde consta, com 19 itens que avalia as cinco dimensões do tecnostresse: ceticismo, fadiga, ansiedade, ineficácia e adição. “A escala apresentou boas qualidades psicométricas e o seu estudo será submetido, ainda este ano, para publicação”, adianta o investigador. Os participantes contam com o anonimato e a possibilidade de aceder à análise final dos dados da amostra.
“A tecnologia é neutra, a forma como a usamos é que não”, lembra o investigador. Ainda que as suas vantagens sejam inegáveis, as novas questões que trazem em anexo não podem ser ignoradas. A questão é encontrar o meio termo e balancear custos e benefícios: “O multitasking permite aperfeiçoar competências ao nível da atenção distribuída, mas compromete a capacidade analítica”, refere. Do mesmo modo, “ficar sem abraçar e tocar aqueles de quem estamos próximos durante meses pode gerar stresse crónico, mas passar horas no zoom e outras plataformas também gera sobrecarga e há pistas na comunicação com o outro que se perdem”, remata.
Aceitar sim, limitar também
Adaptarmo-nos à presença dos nossos equipamentos digitais de forma saudável é uma inevitabilidade e um imperativo: segundo as estimativas do Pew Research Center e da Elon University, nos Estados Unidos, em 2025, a Internet e os dispositivos de computação serão a nova eletricidade e vão fazer parte de todas as áreas das nossas vidas. O desafio é não sucumbir à chamada invasão tecnológica nem à aversão e resistência a ela, mas sim criar fronteiras que permitam gerir os registos “on” e “off” nos planos pessoal, social e profissional. Não fazê-lo pode conduzir ao que os clínicos chamam “doenças da adaptação”.
Agora que estamos familiarizados com termos como “cerca sanitária”, é aplicar a “cerca” quando a perceção de mal-estar e desconforto atingir patamares insustentáveis. Integrar estes dois mundos pode implicar ajustes na relação com os nossos “aminimigos digitais”, através da adoção de medidas tão simples como estas, internacionalmente recomendadas:
- Instalar apps para definir limites de uso diário (personalizar em função das suas necessidades)
- Minimalizar: remover apps desnecessárias, estabelecer hora a partir da qual não consulta ou envia mails
- Desativar a opção de notificações em redes sociais e afins, incluindo as sonoras
- Regra 20-20-6: pausas de 20 segundos longe do ecrã a cada 20 minutos e dirigir o olhar para algo à distância de seis metros
- Desligar ecrãs cerca de uma a duas horas antes de dormir (talvez a mais “impraticável” de todas), fazer um pequeno passeio, ouvir música ou ler um livro