Ao ouvir o telefone tocar, às onze e meia da noite, João Silva, 44 anos, soube instintivamente que do outro lado o esperavam más notícias. Hesitou. Finalmente, pegou no telemóvel. Uma voz perguntou-lhe se era o senhor José Silva. Não, o seu nome é João, só podiam ter-se enganado. “Percebi logo que era comigo que queriam falar, mas sabia o que iam dizer e eu não queria ouvir. Por isso, disse que era engano”, confessa. “Eu sabia, eu sabia…”, repete, desalentado.
Minutos depois, era a cunhada quem lhe ligava para dar a pior das notícias: aos 40 anos, a sua mulher não tinha resistido à Covid-19. João Silva via-se, incompreensivelmente, no papel de viúvo. Desde o dia 6 de abril que procura ocupar esse estranho lugar de perda e de sofrimento. Apesar da dor evidente, admite que há um lado seu que ainda quer acreditar que a companheira, professora, foi dar aulas para um lugar longínquo e não tarda a regressar.
“É como se eu ainda não tivesse entrado na realidade. Acho que só vou entrar quando for ao cemitério”, acredita. Tal como a mulher, também João Silva foi infetado pelo Sars-CoV-2 mas, no seu caso, não desenvolveu uma pneumonia grave. No entanto, ao fim de mais de 50 dias, continua a testar positivo.
“Tem um grande simbolismo prestar homenagem a um corpo que já foi pessoa, pode ser importante para integrar a realidade da perda”, começa por dizer o presidente da Delegação Regional do Norte da Ordem dos Psicólogos, Eduardo Carqueja. O também diretor do Serviço de Psicologia do Hospital de São João, no Porto, alerta para o perigo de generalizar: “Os rituais são fundamentais, mas não podemos concluir que, por exemplo, por não ter havido velório, o luto vai ser sempre mais complicado. Há pessoas que até preferem eliminar esse passo.”
Porém, o especialista não afasta a possibilidade de surgirem situações de luto mais prolongado, devido ao contexto da pandemia: “Preocupa-me quem teve de ficar encerrado em casa e não participou em nada.” É esse o caso de João Silva.
Na sua cabeça, já reviu inúmeras vezes o filme da derradeira conversa, por videochamada, ao fim de dois dias de internamento. Ao vê-la no ecrã, João Silva confrontou-se com a sua fragilidade. “Já lhe custava falar… Mas ela pediu-me para rezar muito por ela e por mim…”, lembra, reencenando todo o diálogo. “Cuida de ti”, são as palavras da mulher que lhe ficaram gravadas na memória. Sem suspeitar que seriam as últimas.
A frieza do telefone
Independentemente de estar ou não infetado com a Covid-19, João Silva nunca poderia ter-se deslocado ao hospital. Todas as visitas aos doentes internados no São João estavam suspensas para prevenir a disseminação do vírus – um cenário que se repetia na maioria dos hospitais do País que, entretanto, já começaram a regularizar o seu funcionamento. As famílias e os doentes, assim como os profissionais de saúde, viam-se integralmente dependentes da frieza do telefone para manterem algum contacto.
“Dar a mais terrível das notícias também é uma tremenda violência para os médicos”, assume António Pais Martins, coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Cirúrgicos I e II do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa. “Comunicar a morte de um familiar implica treino, maturidade, empatia e talvez alguns cabelos brancos”, ilustra o especialista em cuidados intensivos, antes de acrescentar: “É essencial olhar nos olhos, segurar na mão ou fazer silêncio; limitar tudo isto a uma ligação telefónica amputa algo de muito íntimo do ser humano, que é a possibilidade de sofrer em conjunto.”
António Pais Martins já chorou a dar más notícias. “Às vezes, essas conversas telefónicas com os familiares dos doentes demoram mais de meia hora e fala-se sobre tudo, ultrapassa-se o simples boletim clínico informativo. Fica aquém de substituir a falta do toque, mas é o melhor que conseguimos”, afirma, sem esconder a frustração.
É habitual as famílias pedirem-lhe para ver o falecido uma última vez: “O processo de despedida envolve, muitas vezes, a visualização do defunto, o toque no cadáver já frio ou mesmo uma última palavra para o corpo sem vida.” Algo que também deixou de ser possível devido à pandemia.
“A forma como ritualizamos a morte é o reflexo da nossa cultura e de quem somos. Os rituais permitem que nos adaptemos ao luto de forma mais natural”, afirma a especialista em cuidados paliativos Bárbara Gomes. A investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra sublinha que não são apenas os familiares e as vítimas da Covid-19 que são afetados pelas restrições. Socorrendo-se do cálculo mental, procura traçar um retrato da dimensão do problema: “Estima-se que, por cada indivíduo que morre, entre duas a cinco pessoas fiquem enlutadas. No caso do coronavírus, que fez cerca de 1 200 mortos [até ao final de maio], estamos a falar entre 2 400 e seis mil pessoas. Se pensarmos no cancro, que terá provocado mais de quatro mil óbitos nos últimos dois meses, já serão entre oito a 20 mil enlutados.” Em cada dez, é expetável que uma ou duas pessoas sofram um luto prolongado – que se estende por seis a 12 meses, pelo menos –, impedindo a vivência do quotidiano com normalidade, o que se traduz numa redução significativa da vida social e profissional.
Bárbara Gomes aponta alguns fatores de risco que podem complicar o luto e que se aplicam, também, à Covid-19: “Morrer nos cuidados intensivos é mais agressivo e intrusivo; muitas vezes, as pessoas estão entubadas, o que impede a despedida, ainda que à distância. A falta de ar severa causa grande ansiedade nos doentes e nas famílias porque é difícil de controlar, essas são imagens fortes que ficam. Além disso, em alguns casos, pode haver sentimento de culpa por parte de um familiar por ter contagiado a vítima ou, simplesmente, por ter sobrevivido e a outra pessoa não”.
As novas tecnologias, acredita, podem ser um instrumento útil para oferecer uma oportunidade de despedida. Bárbara Gomes é também assessora científica do Programa Humaniza – Apoio Integral a Pessoas com Doenças Avançadas, promovido pela Fundação la Caixa, e tem acompanhado a doação de tablets às unidades de cuidados paliativos e continuados do País. “Estes equipamentos possibilitam que os doentes conscientes mantenham contacto com a família e que se possam despedir através de videochamadas. Às vezes, dizem coisas simples como ‘gosto muito de ti’, mas também há quem grave vídeos e deixe mensagens de legado”, conta.
O peso da culpa
João Silva carrega a mágoa de sentir que não se despediu da mulher. “Depois de fazermos o teste de diagnóstico no hospital, fomos cada um para seu lado e eu não lhe dei um abraço, mas não fazia ideia de que era a última vez que a ia ver”, exaspera-se. “Gostava de lhe ter dito que a amava muito. Gostava de lhe ter dito mais vezes que a amava muito.”
Essa é uma sensação habitual, explica Eduardo Carqueja: “As pessoas focam-se muito na despedida final mas ao longo da vida já terão dito o que queriam, só que na altura não o valorizaram”.
No mês passado, o Serviço de Psicologia do Hospital de São João acompanhava mais de 300 doentes infetados ou já recuperados da Covid-19. Não estar presente nos momentos finais da vida de quem se ama é um dos aspetos mais complicados para as famílias enlutadas. “A imagem de alguém morrer sozinho é insuportável”, constata Eduardo Carqueja. “Quando os doentes ficam nos hospitais, sem direito a visitas, as famílias sentem que há um certo abandono, mas não é verdade. As pessoas estão a receber os melhores cuidados de saúde possíveis e continuam presentes na memória de quem os estima.”
Existem outras limitações, especialmente dolorosas, no caso das vítimas da Covid-19. “Se ao menos pudesse ir vestido…”, é um dos lamentos que o diretor do Serviço de Psicologia do São João está habituado a ouvir. “Algumas pessoas ficam muito tristes, e até ofendidas, por o corpo ir despido. Consideram-no sinónimo de desprezo, porque existe o simbolismo de escolher a roupa do falecido, é uma última oportunidade de agradar a quem morreu”, afirma. “Curiosamente, nós também nascemos nus”, costuma dizer numa tentativa de tranquilizar as famílias.
O facto de se sugerir a cremação das vítimas do Sars-CoV-2 “também mexe muito com as pessoas”. Por vezes, as famílias aceitam por razões de saúde pública, mas sentem que estão a agir contra a vontade expressa pelo falecido em vida. “Mas será que, se pudesse decidir agora, a pessoa não mudaria de ideias em benefício de toda a sociedade?”, interroga Eduardo Carqueja. Muitas das pessoas que acompanha acabam por concordar que o seu familiar optaria por esse derradeiro gesto altruísta.
A culpa também complica a equação da dor. “Algumas pessoas vieram pelo seu próprio pé para o hospital, mas depois a situação agravou-se muito. Quando chegaram, a morte não parecia uma possibilidade e, por isso, os familiares podem sentir-se culpados por os terem trazido e eles terem piorado no hospital ou transferem essa culpa para os cuidados de saúde”, sintetiza o especialista.
A questão torna-se ainda mais complicada, quando se sente a culpa de ter contagiado alguém que acabou por morrer: “Uma senhora de 75 anos que infetou o marido, falecido no hospital, diz sentir-se humilhada e ter vergonha de sair à rua porque toda a gente vai olhar para ela como se fosse uma criminosa”, revela o psicólogo. “É preciso lembrá-la de que tomou as melhores decisões de acordo com a informação disponível na altura.”
A reinvenção dos funerais
João Silva não teve forças para perguntar como foi o funeral. Sabe que se realizou uma cerimónia restrita, só para a família mais próxima: “Levaram-na no carro funerário e, depois, foi enterrada; não houve velório, nem missa”, afirma, telegraficamente, afastando a dor.
As restrições aplicadas às cerimónias fúnebres foram aliviadas no início de maio. Deixou de haver limitações à presença de familiares nos cemitérios, mas as autarquias podem definir um número máximo de participantes que não sejam da família. À VISÃO, o diretor-geral da Servilusa, Paulo Moniz Carreira, explica que a funerária está a realizar velórios, incluindo já durante a noite, nas capelas dos centros funerários geridos pela empresa. É garantida a presença de um funcionário que controla as entradas e fica responsável pela higienização. Nos espaços onde não é possível assegurar estas condições a tempo inteiro, os velórios têm a duração de duas horas. Em qualquer dos casos, só são admitidas cinco pessoas por cada cem metros quadrados dentro das capelas ou de qualquer outro espaço fechado, e é obrigatória a utilização de máscara de proteção, além da manutenção do distanciamento social. “Às vezes, os familiares têm de decidir quem vai ao velório porque não cabe toda a gente. É uma decisão muito difícil”, reconhece.
A pensar nisso, a funerária começou a transmitir os funerais online, de forma a todos os familiares e amigos poderem assistir. Paulo Moniz Carreira revela que foi “quase uma cobaia” deste novo sistema porque também perdeu um familiar durante a pandemia. “Tinha muitas dúvidas, mas fiquei surpreendido com a experiência. Foi arrepiante”, sublinha. Atualmente, transmitem cerimónias online diariamente, através de um circuito com acesso limitado aos mais próximos. “A adesão tem sido enorme”, garante.
No caso das vítimas da Covid-19, ou de outras doenças respiratórias, a urna tem de estar fechada. “Em Portugal, é habitual tocar e, até, beijar o corpo mas, nestes casos, não é possível”, nota.
O responsável da Servilusa, que realiza uma média de 600 funerais por mês em todo o País, destaca outro constrangimento muito sentido pelas famílias durante o pico da pandemia: a interdição da missa. “Em Portugal, 90% dos funerais são católicos”, justifica. “O acompanhamento sacerdotal nunca esteve proibido, o padre podia ir ao velório e ao cemitério, mas não havia missas nas igrejas”, explica. Os cultos regressaram no final de maio.
Eduardo Carqueja tem conhecimento de vários casos de pessoas que adiaram a deposição das cinzas no cemitério para quando a pandemia passar. “Retoma-se a ritualização de uma forma diferida, seja com uma missa ou com qualquer outro tipo de cerimónia que envolva a presença de familiares e amigos”, descreve.
Assim que se vir livre do vírus, João Silva não tem dúvidas sobre qual será o seu primeiro destino: “Vou ao cemitério onde ela está.” Em vez de um reencontro, será uma despedida. A mais definitiva e imperfeita de todas elas.