Ai, se pudéssemos montávamos tudo num instante”. O desabafo atirado ao ar para quem quiser apanhar é da Dona Fátima, a responsável do Retiro da Coxa. “Mas pró ano, ai, pró ano é que vão ser elas…”, promete. E logo mostra, com gosto, onde é que costuma ficar a banca das sardinhas, e a dos outros grelhados, e ainda a da cerveja e da sangria. Aos 55 anos, Fátima Domingos, nascida e criada em Alfama, assume que passou o ano inteiro a sonhar com estes dias. “E agora é o que se vê.” Ainda por cima, o conhecido arraial é uma herança familiar. “A minha avó já fazia, e espero que, um dia mais tarde, a minha filha também o faça.”
A indisfarçável tristeza da sua voz é comum a praticamente todos os que, por ali, nas ruas de Alfama, não puderam assinalar o santo casamenteiro de Lisboa com a festa de sempre. São nove da noite, da noite de Santo António, e desta vez correu tudo a rigor, mas de acordo com as regras da pandemia. Com os arraiais expressamente proibidos, imposição do Conselho de Ministros, há uma semana que Juntas de Freguesia, Polícia Municipal e Polícia de Segurança Pública se multiplicam em ações de sensibilização. E este início de serão não é muito diferente.
Há uma vigilância da polícia municipal em vários pontos-chave das habituais celebrações. Sem ocorrências a registar. De prevenção, a PSP só encontrou locais abertos e alguns convivas em Alfama – e bem que nos mostrou que estava assim um pouco por todos os bairros populares, da Mouraria à Bica. E até a autarquia fez questão de voltar a passar nos locais da ‘festa que não houve’. “Mostra que há um total respeito pelas orientações oficias. Julgo que é um bom sinal”, sublinha Carlos Castro, vereador com o pelouro da Proteção Civil, à chegada ao Largo do Chafariz de Dentro.
“ E que bem que eu cantava…”
“Mas, ó senhor agente, p’ró ano é que vão ser elas”, promete Tininha, essa mesma, a Tininha de Alfama. A frase, que traz estampada na t-shirt, é o grande pregão do bairro este ano. É que hoje, como acrescenta o vizinho Vítor, a exibir uma camisola igual, “hoje, não há cantoria.” A esplanada em frente à sua porta até está composta à vista, mas…
É que nem cantoria nem muito de tudo o resto. Como quem diz, nem enfeites, nem música, nem manjericos. Desde meio da tarde que as mercearias fecharam as portas. Cafés e pastelarias encerraram às 19 horas, e restaurantes só podem receber clientes até às onze da noite, para à meia-noite dizerem “adeus, até amanhã”.
“E que bem que eu cantava…”, atira a senhora da janela para o chefe Alexandre Oliveira que, acompanhado do agente Rogério Carvalho, percorre connosco as ruas quase desertas de Alfama. Eis que Ângela Boturão, oitenta e tal anos, a espreitar a calçada do alto do seu segundo andar, ata um cordel a um saco e o faz baixar até à rua. “Posso ver?, pergunta o policia, agradado com a surpresa. É que, lá dentro, as fotos comprovam o passado radioso da mulher que por ali também apregoava o peixe fresco pelas manhãs. “Veja ali em baixo, sou eu”, rematou, a apontar para uma das muitas fotografias que enchem as paredes com as figuras emblemáticas do bairro.
“Se fosse como antigamente…”
Neste cenário alternativo, salva-se o ânimo de José Martins, sócio-gerente do Lautasco, onde se serve a sardinha da praxe, no meio de um lindo pátio lisboeta, ali a dois passos do Museu do Fado.
“Em vez de podermos atender 60 clientes, só temos 25, é o que pode ser. E mantemos os enfeites, porque aqui o espírito de festa é todos os dias”, segue o homem, que foi para ali trabalhar aos 16 anos e já soma sessenta. Numa das mesas, um casal que ali é conviva habitual também não quis deixar de marcar presença. “Já nem moramos em Lisboa”, contam Sandra Rodrigues, de 44 anos, e Francisco Jordão, de 43, acompanhados do filho adolescente, e que há uns anos se instalaram no Barreiro. “Mas vimos sempre.”
Agora, “se fosse como antigamente, era ver isto tudo cheio, lá dentro, cá fora, e pela rua dentro, à espera”, há de ainda dizer o senhor do Lautasco, antes de, também ele, nos lançar o pregão da temporada. “P’ró ano é que vão ser elas.”