Na vida real, Letícia Lucas mora em Lisboa, numa casa com quintal. É uma sorte ter um espaço ao ar livre onde pode apanhar sol, dirá. Mas a verdade é que, sempre que lhe sobra tempo, a adolescente não resiste a gastá-lo em Solace, a ilha que criou no videojogo New Horizons, a nova versão de Animal Crossing, da Nintendo.
Na sua ilha, esta aluna do 12º ano da área de Ciências e Tecnologia quis um ambiente com ligação ao mundo real, embora fantasiado e mais calmo. Cobriu Solace de florestas densas, a lembrar as paisagens da trilogia O Senhor dos Anéis, rodada na Nova Zelândia. E, por estes dias, sorri ao vê-la cheia de flores, como manda a primavera
Ao fim de quase dois meses, Letícia ainda não conseguiu ter a casa da ilha a seu gosto. Já lá estão as quatro paredes e o telhado, e escolheu a divisão do espaço, mas falta grande parte da decoração porque o dinheiro virtual não abunda. “Um dos meus objetivos a curto prazo é mesmo pagá-la”, conta ao telefone, num intervalo das aulas online, “mas ainda ando a colecionar mobília.”
A sua personagem principal, um avatar com traços físicos semelhantes aos seus mas de cabelo cor-de-rosa, vive, por isso, ocupada a cumprir tarefas para poder comprar coisas e pagar dívidas. Nada de muito complicado. Tanto cultiva legumes como apanha tarântulas inofensivas e ainda lhe sobra tempo para conhecer os vizinhos (uns animais fofinhos, a maioria), visitar outros jogadores nas suas próprias ilhas ou enviar-lhes mensagens e presentes por correio.
Letícia-personagem está sempre entretida, mas nunca tem stresse nem se sente sozinha. Letícia-jogadora diz que, além do enorme gozo que lhe deu a costumização da ilha, atrai-lhe a simplicidade do jogo, a narrativa “e a escapatória”. O verbo inglês “escape” está ligado à ideia de evasão e é mesmo isso que a adolescente procura quando liga a Switch, a consola da Nintendo. “Tenho de ficar em casa, sempre me distraio”, justifica.
Um lado didático
É precisamente por proporcionar uma evasão que New Horizons ganhou rapidamente o epíteto de “o jogo da pandemia” mal foi lançado, a 20 de março. Com meio mundo fechado em casa, o timing foi perfeito. Na Nintendo, anteciparam que este videojogo de simulação é um refúgio de estabilidade e companheirismo, sem que as saídas virtuais do lar provoquem qualquer tipo de stresse
“Durante o tempo em que estão a jogar, as pessoas podem esquecer tudo, a começar pelos problemas que têm”, acredita o japonês Katsuya Eguchi, autor de Animal Crossing. “Isto porque o jogo oferece uma experiência imersiva muito alta.”
Nem sequer a questão económica enerva os jogadores, já lembrou o conhecido designer de videojogos Ian Bogost, à revista The Atlantic. “Segundo Tom Nook [o guaxinim muito fofo que gere as questões financeiras e de engenharia civil], uma pessoa pode pescar pargos valiosos e vendê-los para comprar alpargatas para a sua personagem ou móveis dos anos 50 para a sua casa. Ou pode pescar espécimes nunca antes vistos e doá-los ao museu. Ou, ainda, pode lançar a linha apenas para apreciar a lua a dançar na água. E o Animal Crossing não vê maior ou menor virtude em nenhuma destas atividades.
Logo nos primeiros três dias após o lançamento de New Horizons, foram vendidas quase dois milhões de edições físicas no Japão. Durante a primeira semana, as vendas foram superiores às de todas as versões anteriores combinadas. E, ao fim de um mês e meio, tinham sido vendidas 13,41 milhões de cópias. Correu tão bem que, no dia 7 de maio, a Nintendo anunciou um aumento de 41% de lucros em relação ao ano anterior, em grande parte graças a este novo videojogo e à Switch.
Letícia, que já era uma apaixonada pela série Animal Crossing, teve de se contentar com uma versão digital. Com 17 anos, é um pedaço mais nova do que o perfil-tipo que a Nintendo já fez dos jogadores do New Horizons – mais de 40% são do sexo feminino e muitos estão nas faixas dos 20 ou mesmo dos 30 anos. Independentemente da idade, é o confinamento que os une.
Uma das características deste jogo é seguir o tempo real, incluindo as estações do ano. De início, Letícia jogava quatro a cinco horas por dia; agora, as aulas não lhe deixam muito tempo livre. Quem já não se aborrece ao vê-la agarrada à consola é a mãe. “Um dia, viu-me a pescar para tentar completar a enciclopédia de peixes e achou graça ao facto de haver tantas espécies, percebeu que também há um lado didático”, conta a adolescente
Esse seria o trunfo a usar pela sua amiga Mariana “Mars” Silva, de 18 anos, com os seus próprios pais, caso não concordasse que a Switch ainda está cara. “Tenho a Wii e a 3DS, não dá para comprar já uma nova consola”, concede. “Mas vi pessoas a jogarem New Horizons online e é realmente um jogo muito bom.”
Aluna do 12º ano do curso de Design de Comunicação da Escola Secundária Artística António Arroio, em Lisboa, “Mars” é fã assumida da série Animal Crossing, muito pelo grafismo. De vez em quando, ainda joga a versão anterior, New Leaf, que não permite tanta liberdade de criação. É “para descontrair”, diz, e para não perder o hábito, dizemos nós, uma vez que o seu futuro profissional poderá passar pelo design de videojogos. “Alguns são peças de arte”, nota. E não é exagero.
Realidades alternativas
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VENDAS
A Steam, a maior plataforma de venda e distribuição de jogos online para PC, bateu recordes em março. E, agora, tem habitualmente mais de 20 milhões de utilizadores
E-SPORTS
Os videojogos para competição entre humanos vieram substituir desportos reais. Por exemplo, foi lançado um novo F1 Esports Virtual Grand Prix Series, protagonizado por condutores de Fórmula 1 atuais, mas apenas com fins de entretenimento
GRÁTIS
Várias editoras e plataformas estão a disponibilizar jogos durante este período, sem cobrar nada. É o caso do Play at Home da PlayStation
EVENTOS
Um videojogo também pode ser uma sala de concertos online. Em abril, o rapper norte–americano Travis Scott teve 12,3 milhões de pessoas a assistir em simultâneo a um concerto que deu dentro do próprio Fortnite