“Não é demasiado cedo?” Confiar e abrir-se ao mundo fora de casa sem resistir é preciso, mas levanta questões novas pode abalar certezas e convicções. A primeira ida à esplanada ou a um encontro entre amigos num jardim já não são como antes e podem mesmo soar artificiais. Sair à rua gera desconforto e faz soar a campainha de alarme no cérebro. Desinfetar tudo, antes e depois, pode reduzir o grau, legítimo, de preocupação, mas parecer um tanto ou quanto paranóide se uma pessoa ficar exclusivamente centrada nisso.
Com a abertura dos ginásios, estabelecimentos comerciais e unidades de lazer, vêm também as listas de normas e recomendações que tendem a desmotivar muitos, seja por obrigarem a mudar hábitos, algo que implica esforço, ou por concluir que é preferível manter-se resguardado. Um mecanismo de defesa comum, mas não necessariamente a melhor solução nesta fase transitória. Deixamos-lhe cinco pistas para aprimorar a arte de desconfinar
Gerir a ansiedade
Confinar parecia difícil até se tornar uma coisa familiar. Dar a volta outra vez, num movimento contrário, é difícil, mas faz parte. Evitar fazê-lo é que pode ser preocupante. Regressar ao trabalho ou à escola e passar a usar máscara será incómodo e sentido como contranatura, havendo mesmo quem se sinta à beira de um ataque de pânico, com falta de ar. A psicóloga Isabel Cardoso, da Associação Portuguesa das Perturbações da Ansiedade (APPA), confirma a existência de casos que apresentam esta queixa e chama a atenção para a necessidade de mudar o registo mental: “Antes de usar a máscara, estar atento aos sinais do corpo e relaxar, colocá-la e pensar nela como um amigo protetor, em vez de uma ameaça.” Desta forma, o estado ansioso não se torna galopante e pode ser monitorizado e ficar dentro da esfera de controlo. “Se precisar, pode fazer uma pausa e retirar a máscara num local que lhe pareça seguro”, refere a clínica. Isto permite ambientar-se gradualmente ao uso do novo acessório. Com o treino, ganha-se o hábito e a perceção de que não é, afinal, tão assustador como parecia. Chegar a casa com a sensação de mais uma etapa ganha facilita o processo e contribuir para ganhar mais robustez psicológica.
Aceitar em vez de resistir
Ser livre e não sair da zona de conforto é um contrassenso, mas acontece e não é muito diferente da experiência de um animal em cativeiro que teme sair da caixa transportadora ou da jaula para uma reserva natural: encolhe-se, resiste a sair.
Após meses de isolamento voluntário e de uma quarentena imposta pela pandemia, sair do ninho – da casa, do teletrabalho e de uma forma de estar que se entranhou nos hábitos – e expor-se à nova normalidade é o desafio que todos temos pela frente. Há algumas décadas, os psicólogos sociais estudaram o síndrome do ninho vazio, uma condição aplicável aos pais quando os filhos, outrora enfiados no quarto (a idade do armário), davam mostras de autonomia e, com avanços e recuos e uma boa dose de contestação, tomavam as rédeas das suas vidas e saíam de casa, deixando os progenitores com uma sensação de vazio, por vezes insuportável. Ajustar-se a esta nova etapa de vida deixava, e ainda deixa, muitos pais desorientados e, mais ainda, se ocorrer em simultâneo com surpresas não desejadas (confrontar-se com um relacionamento que era mais parental do que conjugal, ficar sem emprego). Os estudos sobre o tema confirmaram que as famílias sãs eram as que tinham a capacidade aceitar as mudanças como naturais, sem resistirem ao processo, apostando nas capacidades de adaptação de cada um dos membros. Em suma, persistir no “antes é que era bom, assim não quero” é limitativo e cria mais problemas do que resolve.
Expressar e negociar
Estar à vontade ou “à vontadinha” é um pomo de discórdia nesta fase. Se uns tomam cuidados e ainda não abraçam os mais velhos quando os visitam, porque hão-de estar com outros, seus amigos, se estes não respeitarem a distância social ou se recusarem a usar máscara?
“As pessoas não têm as mesmas preocupações e exigência; é fundamental falarem sobre isso e ajustarem pontos de vista”, afirma Isabel Cardoso, até porque “estar num modo informal não deverá ser sentido como algo inseguro”. A psicóloga clínica acrescenta que é normal estarmos sedentos de contacto social, mas também o é – ou torna-se agora mais evidente – a perceção de como as nossas ações afetam os outros: “Mesmo em ambiente de festa, cada um tem a responsabilidade de fazer a sua parte, tendo em conta o bem-estar comum.”
Quando já se vai tornando claro que a as dinâmicas sociais não vão voltar a ser como eram tão cedo, ou nos moldes descontraídos do antes de aparecer o novo coronavírus, “o desconfinamento está a exigir um salto na consciência das pessoas” que se manifesta nos rituais sociais.
Na prática, as interações conhecidas começam a ser postas à prova: perante um conflito de valores, algumas amizades terão de passar por ajustes para se manterem e, até, fortalecerem: “A pandemia fez-nos pensar em ser mais cívicos.”
Vencer o medo
Não ter nenhum ou ter em excesso é patológico. O medo é adaptativo até ao ponto em que inibe e paralisa a ação. “As medidas de segurança para prevenir o contágio podem ser exemplares, mas se não as vemos como amigas e agudizam receios em vez de tranquilizar, algo não está bem.” O desconfinamento traz à superfície um conflito interno que já estava lá.
O medo irracional, o foco persistente na ameaça e o desfecho comum “é preciso tanta coisa que eu prefiro não ir” são sintomas de um conflito interno. “Criam uma barreira dentro de si, uma certa rigidez que as distancia dos outros, mesmo se reunidas todas as condições para sentir-se protegido”, esclarece Isabel Cardoso.
Independentemente dos fatores de personalidade – ser mais ou menos introvertido – e dos mecanismos de defesa de cada um – passar de um extremo ao outro ou adotar a mesma resposta em situações distintas, por exemplo – furtar-se à interação e ao que não controla a 100% tem um custo elevado: sofrimento e perda de competências sociais. O que fazer: dessensibilizar o medo e exercitar a flexibilidade, em doses toleráveis e, se necessário, com acompanhamento profissional.
Confiar no processo
Depois de tanto se questionar o uso da tecnologia e assistir à nossa imersão nela durante o confinamento, não deixou de surpreender a rapidez com que muitos se habituaram a ver nela uma vantagem e um conforto.
Desconfinar pode ser como andar de bicicleta: está lá a capacidade, só falta o treino. Voltar às filas de trânsito, aos transportes públicos, ao escritório, ao restaurante, ao ginásio equipado com máscara, álcool gel, viseira e distanciamento nos locais familiares com as pessoas que conhecemos pode ser uma aventura.
Para que corra bem, “é necessário criar uma nova confiança a nível social”, sintetiza Isabel Cardoso. Aprendemos a confiar pela observação e obtenção de respostas claras face aos receios esperados em situações novas e geradoras de insegurança.
Perguntar, esclarecer dúvidas, dar informações, partilhar e avaliar maneiras de fazer e de comportar-se numa atitude colaborativa, é o caminho para construir essa confiança e deixar-se surpreender pelas formas de proximidade social que estamos, individual e coletivamente, a reinventar.