Depois de ter regressado a Portugal, em 2002, para fazer ciência no País, Gabriela Gomes, matemática, 54 anos, voltou a emigrar para o Reino Unido há cinco anos, onde se dedica à epidemiologia na Liverpool School of Tropical Medicine. Partiu porque chegou à conclusão de que a área em que trabalhava não era prioritária em Portugal. “O investimento na Biomedicina tem ido para o estudo de doenças crónicas e da longevidade, deixando as doenças infecciosas a descoberto. Surge uma situação como aquela que estamos a viver e o País não tem um grupo forte para lhe dar resposta.”
Parece que Portugal está a lidar bem com a pandemia de Covid-19. É isso que lhe dizem os seus modelos?
Estamos a lidar bem com isto, sim. Por um lado, tivemos sorte porque o vírus entrou cá mais tarde e isso permitiu-nos ver como os outros países estavam a lidar com o problema e conseguimos evitar o que se está a passar em Itália, Espanha ou Reino Unido. Por outro, também houve visão por parte dos nossos governantes, que tomaram as medidas acertadas atempadamente.
Em que se traduzem as medidas de isolamento social?
Com estas medidas queremos reduzir o parâmetro R0, que resulta do produto entre o número de contactos por dia, a duração da infeção e a probabilidade de uma pessoa ficar infetada quando tem contacto com o vírus. Conseguimos fazê-lo ao reduzir o número de contactos, já que os outros dois fatores não conseguimos controlar sem tratamento eficaz. Começámos com R0 de 2,7 e agora em Portugal já estamos abaixo de 1. É claro que isto não está resolvido. Vamos ter de aprender a viver com o vírus durante um ano ou mais.
O que nos espera nos próximos tempos?
Isto agora está a baixar de forma sustentada, naquela que é a primeira onda da epidemia. Se continuarmos com as medidas ao longo deste mês e no início de maio, julgo que os novos casos irão para números muito baixos, equiparados aos do início de março.
Já em maio?
Sim, no final de maio teremos uma incidência semelhante à que se registou no início de março. A partir daí, poderemos aliviar, levantar algumas medidas. Mas com cuidado! Não há necessidade de regressar à normalidade de forma súbita.
Abrandar é diferente de desaparecer…
Se voltarmos todos à vida normal, a epidemia irá regressar. Iremos apertar e abrandar as medidas em resposta ao número de infetados. Ao fim de duas ou três semanas em pico, voltamos a apertar com as medidas. E assim sucessivamente. De cada vez que surge um pico e o interrompemos, estamos a aumentar a imunidade da população.
É como a ondulação do mar?
Exatamente. De cada vez que temos ondas, vamos induzindo imunidade e, ao mesmo tempo, permitimos que o sistema de saúde esteja a prestar o melhor cuidado possível aos doentes. É este o compromisso para que a sociedade possa funcionar.
O modelo que usa nas suas previsões é semelhante ao usado para a gripe espanhola?
Sim. Estes modelos para infeções respiratórias agudas são semelhantes.
Mas têm surgido tantos modelos, que apontam para cenários bastante diferentes…
Em Portugal não é conhecido o modelo usado pelas autoridades de saúde, porque não é público. Mas na verdade só conheço um modelo. A população é compartimentada em: grupo suscetível; grupo de infetados, mas ainda sem sintomas; grupo de infetados infecciosos; e recuperados, imunes. O modelo é este, não pode ser outro. Há pessoas que falam em modelos, mas que na verdade não estão a usar um modelo dinâmico, é estatístico – observam uma tendência e depois, a partir daí, fazem uma projeção. Mas são modelos empíricos que não permitem fazer previsões, só funcionam a muito curto prazo. A dinâmica de transmissão e imunidade tem de ser incluída.
O seu modelo contempla ainda a heterogeneidade entre indivíduos.
Sim, incluir este parâmetro faz muita diferença. Este modelo é nosso, ninguém está a fazer desta forma. Se estivermos certos, será importante para a gestão da pandemia.
Este vírus é novo, como é que consegue avaliar a heterogeneidade?
No início de uma epidemia, toda a população é suscetível. Eu assumo que, num grupo, nem todos os indivíduos têm a mesma suscetibilidade. É impossível contabilizar todos os fatores, então o que fazemos é assumir uma distribuição de suscetibilidades, entre 0 e 10, porque de forma nenhuma as sociedades são uniformes. Testei este modelo em sistemas de produção de peixes em aquacultura, em que ocorrem infeções que dizimam a população. Em moscas, mosquitos… Também estudamos a malária e a tuberculose.
Quais as suas principais conclusões?
Nos modelos homogéneos prevê-se uma epidemia muito grande, como o do Imperial College, em Londres. Para Portugal prevê-se, por exemplo, um número de infetados 25 vezes maior, caso não houvesse medidas de contenção. Nos meus modelos a diferença é de cinco vezes mais infeção, sem medidas de contenção. E isto vai afetar as previsões para a imunidade de grupo. Quando temos uma epidemia a subir, atingimos um pico, e depois começa a descer, porque se atinge a imunidade de grupo. O grupo dos suscetíveis já não é tão grande que alimente a epidemia e, portanto, a partir daí, o número de infetados começa a descer. No modelo homogéneo, isso só acontece quando 70% da população estiver infetada. Nos modelos heterogéneos, o pico é mais baixo, e a imunidade de grupo atinge-se com 10% da população infetada. A partir daí, interrompemos a transmissão.
Como se explica esta disparidade tão grande?
Bem, isto acaba até por ser intuitivo. Num modelo, a população é vista como tendo indivíduos todos iguais, com a mesma suscetibilidade. No modelo que eu uso, uns indivíduos são mais suscetíveis do que outros e, à medida que a epidemia se desenvolve, os primeiros a serem afetados são os mais suscetíveis. A infeção não ocorre de forma aleatória, há uma seleção. Então a suscetibilidade média não é fixa, é dinâmica. O grupo que continua suscetível vai diminuindo. No outro modelo, esta variabilidade não é considerada.
Mas para que haja imunidade de grupo, as taxas de vacinação geralmente têm de estar acima dos 90 por cento.
No caso de imunidade induzida por vacinação, os argumentos só serão pertinentes se adotarmos uma estratégia em que as pessoas mais suscetíveis tenham prioridade no acesso à vacina. Outra nota importante: para que apenas 10% a 15% de imunidade seja suficiente para conferir a imunidade de grupo, essa imunidade tem de ter sido induzida de forma seletiva. Numa situação de imunidade adquirida no curso de uma epidemia, já vimos que essa seleção acontece naturalmente.
Neste momento, que percentagem da população já está imune?
Estimo que atingimos cerca de 2% de imunidade na população.