Que oportunidades de vida tinha uma rapariga como Antonieta Rosendo, nascida e criada na aldeia de Paderne, à entrada do barrocal algarvio, na década de 1960? Completada a 4ª classe, restava-lhe acompanhar o pai num modesto negócio de peixe ou ajudar a mãe a gerir uma casa com cinco filhos. Não seria assim. Em 1965, o padre Reis conseguiu instalar um posto da telescola no salão paroquial da aldeia – logo no primeiro ano do projeto de ensino à distância através da RTP.
Deu-se uma reviravolta na vida de Antonieta. “A telescola foi uma bênção”, diz ela hoje, aos 70 anos. A sala montada pelo padre Reis nas instalações da igreja de Paderne, para receber num televisor a preto-e-branco as aulas emitidas em direto a partir dos estúdios da RTP no Monte da Virgem, em Vila Nova de Gaia, permitiu à rapariga algarvia, antes sem futuro, fazer o 5º e o 6º anos de escolaridade. Antonieta começou a frequentar a telescola tarde, aos 16 anos, mas nunca mais parou. De tal forma que, nos seus últimos nove anos de vida ativa, os quais culminaram uma carreira de docente e de responsável educativa, dirigiu o Centro de Formação dos Estabelecimentos de Ensino do concelho algarvio de Albufeira.
A telescola decorria de segunda a sexta-feira, das 14 às 19 horas, com meia hora de intervalo, e cada uma das disciplinas iniciava-se com uma aula televisionada de cerca de 20 minutos. Antonieta e as mais de duas dezenas de colegas de turma seguiam “atentamente” a lição vinda do televisor. Depois, o padre Reis, nas disciplinas de Letras, e a professora Alexandrina, nas de Ciências (docentes do 1º ciclo do Ensino Básico, e por isso denominados “monitores”), complementavam as aulas com esclarecimentos de dúvidas.
Mas foi de Maria Anunciação Magalhães, uma professora que dava aulas de Ciências a partir dos estúdios do Monte da Virgem, que Antonieta se tornou “devota”. Escreveu uma carta à docente, a dizer-lhe o quanto gostava das lições dela. “Era muito calma e serena a explicar a matéria”, recorda. “Aprendíamos mesmo com aquela professora”, acrescenta. Começaram a corresponder-se num “canal afetivo que durou muitos anos”. Do ecrã da TV, a docente Maria Anunciação Magalhães passou a “membro virtual da minha família”, diz Antonieta.
O rótulo de “produto do salazarismo” que desde cedo se colou à telescola esfumou-se com o tempo. Na verdade, o projeto prolongou-se muito para lá do golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime ditatorial anterior: a última emissão da telescola foi para o ar em 1987, mas as aulas televisionadas via RTP continuaram até ao ano 2000, através de vídeos enviados para os estabelecimentos de ensino.
“LANÇARAM-ME AOS LEÕES”
Antonieta Rosendo, mais do que ter gostado da telescola, vê-a hoje como um “polo de desenvolvimento, um trampolim para muitos alunos prosseguirem os seus estudos académicos e não ficarem pelo caminho”, logo na 4ª classe, em resultado das limitações financeiras e da dificuldade das deslocações, face a uma deficiente rede de transportes. Os livros eram adaptados às emissões e entregues gratuitamente aos estudantes, nos primeiros dias de aulas. E as lições também eram vistas por pessoas que depois se propunham para exame externo, de modo a completar graus de ensino.
A telescola surgiu “quando houve a expansão da escolaridade obrigatória para seis anos, em meados da década de 1960, e não existiam professores suficientes, formados, para assegurar esses dois anos a toda a gente”, explica Maria Emília Brederode Santos, atual presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE). “O mais visível para as pessoas eram as aulas na televisão, mas na realidade tratava-se de um sistema mais completo e complexo do que isso”, diz a presidente do CNE. O projeto, reconhece, “foi um sistema montado com tempo e bem organizado”, e teve o “papel positivo” de ajudar a “resolver o problema da falta de professores para o 2º ciclo, numa perspetiva de expansão”.
Por isso, sobre a nova versão da telescola, condicionada pela Covid-19, com emissões de segunda a sexta-feira na RTP Memória, apetece dizer que quaisquer semelhanças com o projeto original são pura coincidência. Mas o empenho dos agentes educativos intervenientes há de ser equiparável ao da professora de Ciências Maria Manuel Montes, que iniciou funções na telescola em 1976. Então com 35 anos, e um tom pálido de pele, recebeu logo um reparo no final da primeira aula que deu em direto num estúdio do Monte da Virgem: “Tem de se pintar mais, para realçar o rosto”, disse-lhe alguém, a destempo. O cuidado com a indumentária “da cinta para cima” era outro item.
“Lançaram-me aos leões – ‘Vais e safas-te’”, recorda Maria Manuel Montes, que não teve qualquer preparação para enfrentar as câmaras de TV e esteve na telescola durante 12 anos, até 1988. A professora, hoje com 78 anos, lembra-se bem dos nervos que, ao princípio, a consumiam. “Às vezes, dava comigo a andar pela casa e a dizer a aula toda.” Havia dois testes por período, e do centro da telescola, no Monte da Virgem, seguiam para cerca de mil escolas, em pacotes selados, as perguntas destinadas aos alunos e as respostas para a correção pelos monitores. Já no exame nacional do 6º ano, não se facilitava: as respostas corretas só eram mandadas aos monitores a posteriori.
É claro que houve desilusões, como a que Rodrigo Sá, hoje um professor de 41 anos, teve ao entrar para a telescola da Maia, no concelho açoriano da Ribeira Grande (S. Miguel). A excitação resvalou para a tristeza, quando se apercebeu de que não ia ter o mesmo professor de Francês da irmã Sara, mais velha. Antes, aguardava as aulas daquele professor, em frente ao televisor doméstico, “como quem esperava pela nova temporada da Casa de Papel”, diz Rodrigo, que nunca mais se esqueceu do docente “já com uns 60 anos, de cabelo branco farto e encaracolado”. Teve de se conformar.