Como as regras têm mudado de estado de emergência para estado de emergência, como as capitanias podem definir as suas próprias medidas de combate à pandemia e como as autarquias também têm alguma liberdade para definir o que é fechado ou o que é aberto às populações, o mais provável é que muita gente que passe à beira-mar na zona da Grande Lisboa fique confuso: afinal é ou não proibido aceder às praias? Para fazer desporto pode ou não furar-se as vedações? É permitido caminhar pela areia se não se estiver com mais de cinco pessoas? E é proibido ir ao mar das praias de Oeiras mas é possível caminhar pelo Passeio Marítimo?
Na verdade, algumas questões não têm uma resposta simples e óbvia, nem mesmo para alguns autarcas ou para as forças de segurança. Outras perguntas há em que a resposta muda de concelho para concelho.
Almada: umas fechadas, outras abertas
Em Almada, por exemplo, a Câmara Municipal, em articulação com a Proteção Civil, decidiu fechar o paredão da Costa da Caparica e todas as praias que se situam em frente ao mesmo. “Percebemos que sobretudo ao fim de semana, nesta altura em que o tempo fica agradável mas ainda não está muito calor, havia muitas pessoas a passear no paredão, o que criava naquela zona uma grande concentração de gente”, explica à VISÃO Inês de Medeiros, presidente da Câmara. Por essa razão, e porque as praias daquela zona também são as mais pequenas, a autarquia também decidiu, por arrasto, interditar aquelas praias urbanas.
Por outro lado, por entender que os habitantes do concelho de Almada devem continuar a poder passear, desde que fazendo passeios curtos e evitando aglomerados, e por outras praias do município terem características muito diferentes das urbanas – areais mais extensos, por exemplo -, a Câmara Municipal optou por uma solução de meio termo, deixando abertas as praias do lado sul do concelho, como as da zona da Fonte da Telha.
“Fechámos as praias mais pequenas e onde havia mais gente a passear. Não fechámos aquelas mais a sul porque nessas não tem havido concentração de pessoas e porque todos precisamos de apanhar ar, pelo que é possível fazê-lo, desde que mantendo as distâncias”, acrescenta Inês de Medeiros.
Naquele município, as interdições irão continuar “enquanto durar o estado de emergência”, adianta António Godinho, coordenador municipal da Proteção Civil de Almada. Manter-se-á a proibição de acesso ao paredão e das praias de frente urbana, entre a Praia do Norte e a Nova Praia. Nas restantes o acesso permanecerá livre, pelo menos enquanto não houver aglomerados. E, já se sabe, desde que se cumpram as normas gerais impostas pelo estado de emergência.
Oeiras: paredão aberto, praias “condicionadas”
Um pouco mais a norte, nas praias de Oeiras, o cenário já é outro. O acesso ao Passeio Marítimo, entre a Praia da Torre e Paço de Arcos, só foi interditado no fim de semana da Páscoa. Desde então, é possível passear livremente por lá. Só que se, por um lado, existem fitas e grades a vedar os principais acessos às praias do concelho, e é muito raro encontrar-se alguém a pisar o areal, por outro, junto a estas mesmas grades está afixado um edital da Capitania do Porto de Lisboa que dita que, de modo “a minimizar a probabilidade de disseminação” do novo coronavírus, nas praias na área de jurisdição daquele porto, entre as quais se incluem as de Oeiras, estão interditas “todas as atividades desportivas ou de lazer que impliquem aglomerados de pessoas”.
Esse documento, datado de 14 de março, uns dias antes de ser decretado o primeiro período de estado de emergência em Portugal (18 de março), destapa assim uma aparente contradição: assim, quem estiver num grupo de menos de cinco pessoas, a fazer um “passeio higiénico” ou a passear o seu animal doméstico, pode andar ou correr pela areia em praias como a de Santo Amaro de Oeiras, ainda que o acesso à mesma esteja ligeiramente vedado?
Isaltino Morais começou por dizer à VISÃO que “todas as praias de Oeiras estão interditas”. Mas quando confrontado com aquele edital e com perguntas sobre se o município criou algumas regras suplementares de interdição, o presidente da Câmara de Oeiras acabou por dizer: “Não proibimos, apenas condicionámos.” “Enquanto município, recomendámos que as pessoas não deviam ir às praias, mas poderiam circular pelo Passeio Marítimo, desde que mantendo as distâncias. E os cidadãos de Oeiras têm tido um comportamento fantástico e têm respeitado”, explicou o autarca. Ou seja, na verdade, as praias daquele concelho da Grande Lisboa estão condicionadas – a algumas pessoas e circunstâncias -, mas não interditas. Cada caso é um caso.
Condicionado. É aliás essa a palavra usada pelo município de Oeiras num comunicado publicado no site daquela câmara municipal, que informa que, a fim de evitar a propagação do surto da Covid-19 e defender a saúde pública, “o acesso às praias está condicionado, sendo permitida a sua utilização só para passeio e não para permanência prolongada”. O que diz o próprio título é que “não é permitida a permanência nas praias”. À luz da interpretação desta nota, não seria possível estender uma toalha e ficar o dia inteiro a “apanhar banhos de sol”, mas seria possível, por exemplo, fazer caminhadas com os pés dentro de água.
E se é verdade que uns dias depois desta nota foi decretado estado de emergência em Portugal, e as restrições à circulação foram apertadas, também é verdade que as câmaras têm a sua autonomia e não há qualquer comunicado posterior a registar alterações. No fim de semana do 25 de Abril, por exemplo, a autarquia de Oeiras anunciou no seu site que o estacionamento ao longo de todo o Passeio Marítimo estaria interdito, devido à elevada afluência de cidadãos de fora do concelho naquela zona à beira-mar aos sábados e domingos. Mas não acrescentou nenhuma nota sobre o acesso às praias.
Cascais: tudo interdito, mas sem punições
Cascais também começou o combate à Covid-19 por uma abordagem semelhante à de Oeiras. A princípio, ainda a 17 de março, ao mesmo tempo que a câmara municipal publicava no seu site um comunicado com o título “Praias de Cascais interditas pela Capitania do Porto de Cascais”, no mesmo texto o presidente Carlos Carreiras esclarecia: “As pessoas podem continuar a ir à praia, mas não podem fazê-lo em grandes aglomerados.” Eram permitidos ajuntamentos até cinco pessoas. Apesar dessa exceção, os parques de estacionamento junto às praias foram logo encerrados – proibição que se mantém até hoje.
Mas a verdade é que já depois disto Cascais mandou encerrar todo o paredão junto à marginal (bem como todos os parques infantis e parques verdes com vedações (ou seja, os que se conseguiam encerrar). A 25 de março, Carlos Carreiras, na qualidade de presidente da Câmara de Cascais e na de autoridade municipal de proteção civil, assinou um despacho e um edital a declarar que, enquanto durasse o estado de emergência, a circulação no paredão seria interdita “à população em geral” e diversos acessos seriam encerrados, como os do Monte Estoril ou do Tamariz.
Apesar de não haver nenhum despacho ou edital a alargar as restrições e a impedir a circulação especificamente dentro das praias, o entendimento, quer da autarquia, quer da Capitania do Porto de Cascais, é o de que todas as praias do concelho estão fechadas ao público, sem exceção. Aliás, como a atuação daquela capitania abrange uma área de 77 quilómetros que vai da Torre de S. Julião da Barra à ponta da Foz (rio Sisandro), que comporta quatro munícípios – Cascais, Mafra, Sintra e uma parte de Torres Vedras -, a mensagem passada é a de que neste momento as 32 praias destes quatro concelhos “estão todas interditas”.
Quem o diz é o comandante Rui Rodrigues Teixeira, do Porto de Cascais: “Neste momento as pessoas não podem ter acesso às praias.” Joana Balsemão, vereadora da Câmara de Cascais, confirma: “A 17 de março, ainda não havia interdição do paredão. Com essa interdição, limitámos também o usufruto do areal. As regras vão mudando consoante as indicações do Estado central mas também com a nossa perceção. Mantivemos os parques verdes abertos nas primeiras semanas, por exemplo, e depois tivemos de os fechar quando percebemos que em dias de mais calor havia uma adesão muito densificada.”
Nas praias, as atividades de mar, como o SUP, o windurf, o surf ou a pesca desportiva, estão vedadas por orientação da Autoridade Marítima. “E é sobretudo nestes casos que nos temos concentrado, recomendando às pessoas que saiam da água”, diz o comandante Rui Rodrigues Teixeira.
A proibição das atividades náuticas e desportos de mar, aliás, já levou a Federação Portuguesa de Surf, a Associação Nacional de Surfistas e a World Surf League a escreverem uma carta ao Governo e ao Presidente da República pedindo que os surfistas possam regressar ao mar já a partir de 3 de maio, com regras concretas como a proibição de grupos e tempo de permanência na água superior a 90 minutos. Neste momento, e de acordo com os esclarecimentos obtidos pela Federação Portuguesa de Surf junto da Autoridade Marítima Nacional, apenas os atletas de alto rendimento podem deslocar-se às praias para praticar surf. “De acordo com o regulamento geral, só os atletas de alta competição estão autorizados a atividades desportivas em alguns locais”, confirma Joana Balsemão, vereadora com o pelouro do Urbanismo na câmara de Cascais.
E se, em vez de um surfista, estivermos a falar de alguém, sozinho, a correr na praia? Afinal, o que o edital de 14 de março proíbe são práticas desportivas que impliquem aglomerados de pessoas. E uma pessoa sozinha, claro está, não é um aglomerado. Rui Rodrigues Teixeira admite que esses editais “ficaram sem efeito efetivo a partir de 18 de março porque agora temos um estado de emergência”: “Estamos todos obrigados ao dever geral de recolhimento, o que não restringe as pessoas à sua habitação mas implica apenas saídas esporádicas, de curta duração, e em áreas circundantes à residência.”
Então agora a pergunta é outra: e se essa pessoa que corre ali sozinha pela praia de Carcavelos, viver ali mesmo, a uns metros de distância a pé?
O entendimento do comandante do Porto de Cascais é de que também não pode. E isto porque a Câmara Municipal de Cascais e aquela Capitania têm feito uma interpretação muito mais restritiva do decreto que prolongou o estado de emergência, e que atualmente ainda está em vigor, do que, por exemplo, os municípios de Oeiras ou Almada. E interpretam-no assim porque, embora esse decreto mantenha que os cidadãos podem sair à rua para desfrutarem “de momentos ao ar livre”, para “passeio dos animais de companhia” ou para “deslocações de curta duração para efeitos de atividade física” – com a ressalva de que “é proibido o exercício de atividade física coletiva” – , também diz, no anexo sobre as atividades que devem ser encerradas, que devem ser fechados “quaisquer locais destinados a práticas desportivas de lazer”.
Mas mesmo com essa interpretação – que não é unânime de autarquia para autarquia -, a verdade é que não parece haver margem para punir legalmente quem caminhar ou correr pelas praias, se estiver sozinho e viver ali perto. “Se me pergunta – há sanção para isso? – não, não está previsto. Por isso é que temos feito uma abordagem muito mais preventiva e pedagógica”, admite o Comandante do Porto de Cascais.
É, aliás, por esta confusão de regras em pleno estado de emergência que, na maior parte das vezes, PSP, GNR, polícias municipais e Polícia Marítima da Grande Lisboa têm apenas feito campanhas de sensibilização, tentando afastar as pessoas que procuram as praias em vez de lhes imputar um crime de desobediência.
Há uma semana, a Polícia Marítima fez o balanço das suas ações de rua no período de 2 a 18 de abril. Tinha abordado 9 928 pessoas, das quais só 318 eram surfistas e bodyboarders. A grande maioria – 8016 pessoas – estavam em deslocações ou passeios “no domínio público marítimo”. E só oito no total das 9 928 incorreram em crime de desobediência, por não terem acatado as recomendações das autoridades. “A abordagem da Polícia Marítima, à semelhança das restantes forças de segurança, tem sido de prevenção e pedagógica, e em praticamente todas as situações acima contabilizadas as pessoas cumpriram as indicações e terminaram as atividades, regressando às suas casas”, relatava o comunicado.
O surgimento de novas normas e leis a uma velocidade muito superior ao normal, e as diferentes interpretações que são feitas das mesmas, têm suscitado muitas dúvidas. Até porque, diz a vereadora Joana Balsemão, “no contexto Covid há diferentes níveis de regulação: regulamentos/despachos municipais, normativos das capitanias e legislação do Estado Central”. Por essa razão, a Autoridade Marítima Nacional está a elaborar um documento, que deverá ser publicado nos próximos dias, com esclarecimentos sobre o que no contexto da pandemia é permitido e proibido fazer junto à orla marítima, em que circunstâncias e por quem.