Todos os dias, pelas 7 da manhã, há um pequeno batalhão de tratadores que entram na antiga Quinta das Laranjeiras, prontos a trabalhar. Vão fazer aquilo que sempre fizeram, mas agora apresentam-se de máscara e luvas, e sabem que o item “desinfeção” lhes vai aparecer várias vezes repetido no rol de tarefas que o novo plano de contingência tornou obrigatórias.
É assim desde segunda-feira, 16 de março, data em que o portão principal do Zoo de Lisboa, em Sete Rios, deixou de se abrir aos visitantes, contam-nos enquanto passamos os sapatos pelo primeiro pedilúvio do dia. Estas caixas de plástico, com um tapete e um líquido desinfetante, agora espalhadas em maior número pelo jardim, são cruciais para evitar uma eventual contaminação.
Em causa estão as pessoas e também os animais. No Jardim Zoológico do Bronx, em Nova Iorque, já há cinco tigres e três leões com Covid-19. A primeira infeção foi reportada no início deste mês, numa fêmea tigre malaia, que começou com uma tosse seca e persistente.
“Estamos a apostar tudo na prevenção”, sublinha José Dias Ferreira, o curador dos mamíferos, por detrás de uma daquelas máscaras ditas sociais ou comunitárias, costuradas em pano, com um filtro de TNT (tecido não tecido) no interior.
É ele quem nos vai guiar numa visita muito especial.
Como combinado, tínhamos entrado pela zona da administração, na Estrada das Laranjeiras, onde começámos por ser recebidos por um segurança protegido com máscara, viseira e luvas.
As máscaras serão uma constante ao longo de toda a manhã.
Daqui para a frente, andamos quase sozinhos pelas avenidas e pelas ruas do jardim. Apenas nos cruzamos com tratadores, que seguem a pé, de trator ou em pequenos carros elétricos.
Como é de manhã cedo, muitos acartam caixas e baldes de comida que irão distribuir pelas diferentes instalações dos animais. E, logo na primeira avenida, ouvimos o ruído de motores antes de vermos jardineiros, incansáveis a trabalhar com máquinas de soprar folhas ou de cortar relva.
“Tem de ser”, comenta o nosso guia. “Continuamos a limpar o jardim, até por uma questão de brio. Queremos ter tudo impecável quando voltarmos a abrir. Basicamente estamos a manter tudo o melhor possível. O pior que se pode fazer num cenário destes é deixar as coisas ao abandono, até para nós que aqui andamos a trabalhar.”
O Zoo de Lisboa não recebe visitantes há mais de um mês. As escolas fecharam na sexta, 13, o fim de semana que se seguiu serviu para limar arestas e a nova semana começou logo nos novos moldes.
O plano de contingência começara a ser preparado em meados de fevereiro – e foi essa antecipação que permitiu que fosse implementado rapidamente, observa o nosso guia. Agora, os funcionários estão divididos em dois turnos. São catorze dias a trabalhar e catorze em casa, em isolamento mas à distância de um telefonema. Cada turno tem cerca de meia centena de pessoas que nunca se cruzam (30 são tratadores).
“Fizemos a transição em dois dias e ninguém ficou espantado. Dizer a alguém ‘Vai passar a trabalhar duas semanas seguidas’ não é fácil, mas as pessoas que estão aqui gostam do que fazem, o que facilita”, nota o engenheiro zootécnico que está há quase vinte anos nas Laranjeiras.
Só não há ninguém nas bilheteiras, claro. “O resto mantém-se inalterado”, diz, mas o que ele quer mesmo dizer é que nada se alterou em relação ao dia a dia dos quase dois mil animais, de cerca de 300 espécies, entre mamíferos, aves, répteis e anfíbios.
De vez em quando, o nosso guia usa a expressão “animais da nossa coleção” (é, aliás, a expressão correta), mas há de avisar: “Aqui, não dá para fazer como num museu, em que se fecha a porta, mantendo-se apenas o controlo da humidade e a segurança. O nosso trabalho continua como sempre.”
A verdade é que muito teve de mudar para que a vida dos animais se mantivesse na mesma. Eles são alimentados e limpos o mesmo número de vezes, e continuam com a equipa de tratadores que já conheciam. Os cuidados de desinfeção é que foram redobrados – e muito.
“Já a fazíamos com regularidade, mas agora todos os espaços comuns são desinfetados diariamente e apertámos ainda mais a desinfeção na zona zoológica”, conta o curador.
Do plano de contingência fazem também parte alterações como aquelas que sofreu o refeitório usado pelos trabalhadores. Além de ter passado a haver uma zona de takeway, as refeições são agora numa área dez vezes maior, em mesas singulares e a dois metros e meio de distância umas das outras. “Assim, podemos conversar ao almoço, mas em segurança.”
Está bom tempo e a manhã já começou a aquecer. Chegámos ao Vale dos Tigres, onde os animais ainda não saíram para a zona exterior e são os pavões macho que dão mais nas vistas com o seu ritual de acasalamento. “Pagau! Pagau!”, gritam.
“Sendo um Zoo do Sul da Europa, podemos dar acesso ao exterior a qualquer espécie durante o ano todo”, nota o nosso guia. Todos os dias, os animais têm de ser fechados mais ou menos uma hora para se proceder à limpeza das suas instalações cá fora e depois podem novamente sair para o ar livre.
De um lado, há tigres da Sibéria e do outro tigres de Sumatra. Mal os tratadores abrem as portas, aparece um macho, muito bonito e tranquilo, com as suas várias fêmeas e crias. É um privilégio vê-los a brincarem com os sacos de serapilheira pendurados nos troncos, aparentemente indiferentes à nossa presença.
Se os tigres não quiserem ser vistos, não são. Existe um vidro entre eles e os visitantes, que abafa parcialmente o som, além de bastante vegetação.
“Há animais que, de alguma forma, procuram o estímulo das pessoas que passam, mas só estão próximos de nós se quiserem”, ensina José Dias Ferreira. “Quando formos ao Templo dos Primatas [iremos logo a seguir], é provável que os chimpanzés se aproximem dos vidros à nossa passagem [fazem-no]. Em algumas situações, a presença humana é um estímulo positivo. Depende da espécie.”
Os chimpanzés preguiçam ao sol na ilha, que inveja. Mas, quando passamos, primeiro um, logo depois mais dois, correm a sentar-se junto aos vidros, de olhos nos nossos, enquanto roem cenouras. Parecem observar-nos. Ao fim de um mês sem visitantes, somos obviamente uma novidade assinalável, talvez mesmo uma diversão.
Do Templo dos Primatas, seguimos rumos às suricatas porque o nosso guia é avisado de que vai começar a sua alimentação. Stefany é tratadora de marsupiais, mas também se ocupa destes pequenos mamíferos e anda deliciada com as quatro crias que nasceram já durante o confinamento.
Aos saltinhos e pequenas corridas, as suricatas bebés roubam as atenções de todos. Terão nascido há uns vinte dias. Como o nascimento acontece debaixo de terra e não saem logo para a luz do dia, a data só pode ser a aproximada.
A instalação tem um metro e meio de profundidade. Foram construídos túneis, criando um labirinto subterrâneo com átrios, e as suricatas fizeram, elas próprias, uma série de túneis secundários.
Stefany entra de máscara, luvas e tabuleiros cheios de uvas, pedaços de maçã e de banana e um pouco de ração. Numa milésima de segundo, tem os 17 animais a rodeá-la e um mais afoito pendurado num dos tabuleiros. A dieta é sempre igual e há também sempre uma suricata em pé, de sentinela.
É difícil virar as costas às suricatas, mas tem de ser. O Zoo de Lisboa é grande e há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo.
Deixamos, então, para trás as suas instalações e as obras de ampliação dos espaços reservados aos elefantes e aos hipopótamos. E subimos jardim acima, sempre a ouvir as vocalizações dos gibões-de-mãos-brancas. “Uuuú, uuuuú!”
Esperam-nos dois okapis. Ou melhor, eles estão já à espera dos enormes ramos cheios de folhas que a tratadora prende diariamente numas árvores, ao seu alcance. Primeiro aparece a fêmea, segundos depois o macho.
Os chimpanzés e as suricatas são espécies gregárias. “É como nós na Covid-19”, compara o nosso guia. “Como somos gregários, em casa estamos pior sozinhos do que em família.” Os okapis, pelo contrário, só devem estar juntos para a reprodução, mas estes dois procuram habitualmente a companhia um do outro. Têm duas instalações contíguas e preferem a mais pequena e com menos vegetação.
O okapi só foi descrito cientificamente pelos ocidentais há cerca de cem anos, na floresta do Congo. “Estamos a falar de um bicho com 300 quilos, não é algo que aconteça muito, se fosse um inseto…”, lembra José Dias Ferreira. “Chamam-lhe girafa da floresta – já repararam como até corre como uma girafa?”
Junto às instalações da palanca-negra, cruzamo-nos com o carro do eletricista, sempre atarefado porque o Zoo tem muita coisa elétrica (cercas, portas, máquinas). O teleférico está parado, a sua manutenção pode esperar.
Vemos as Nialas a ser alimentadas, “o nosso homem da água” no lago dos pelicanos e duas tratadoras a preparar a comida dos grous. “São animais tão bonitos”, diz uma delas, enquanto pesa peixe e ração. “Então agora que estamos na altura do acasalamento, é lindo ver o macho a fazer a sua dança [abre muito as asas e movimenta-se frente a fêmea].”
Enquanto o Jardim Zoológico de Lisboa não reabrir – o que acontecerá com uma lotação limitada e definida pelo Estado e pela EAZA – vale a pena assistir às sessões gratuitas no canal oficial de YouTube do parque. Esses e outros programas podem também ser consultados no site do Zoo.
O nosso guia quer terminar a visita junto aos leopardos, mas ainda espreitamos primeiro os koalas. Só os tratadores entram nas suas instalações, que sempre foram muito restritas, mas agora mais ainda. Todos os dias, colocam ramos de seis diferentes espécies de eucalipto, para os animais escolherem o que querem comer.
Quando finalmente chegamos à Encostas dos Felinos, José Dias Ferreira conta que o Jardim Zoológico de Lisboa coordena desde 2012 o programa mundial de reprodução do leopardo da Pérsia (ou do Cáucaso), a convite da Associação Europeia de Zoos e Aquários (EAZA). “Estávamos com uma taxa brutal de reprodução”, justifica.
O zoo lisboeta está também diretamente envolvido no grupo de trabalho que presta aconselhamento técnico à introdução do leopardo no Cáucaso. “E enviamos animais para outros jardins zoológicos e centros de reprodução”, conta. “As nossas instalações foram apresentadas como um bom exemplo e a taxa de reprodução está relacionada com elas.”
A caminho da saída, passamos novamente pela zona exterior do Templo dos Primatas e vemos Nasibu, um gorila macho que veio da Suécia para se reproduzir com as gorilas fêmeas do Zoo de Lisboa. É um silverback – tem o dorso prateado, uma característica sexual que o macho Alfa desenvolve.
Quando subimos pela rua lateral e lhe viramos costas, Nasibu, rapidíssimo para os seus 190 quilos de músculo, bate com força num dos vidros, conseguindo assustar-nos. É uma maneira de mostrar quem manda aqui. Nós estamos apenas de passagem.