Que fazer quando o quotidiano se torna, de um dia para o outro, avassalador e pesa cada vez mais à medida que o tempo passa? “Quero a minha vida de volta”, pensam uns, irados, privados das suas rotinas e inconformados com o fardo do confinamento. Outros, confrontados com a infeção de próximos, cogitam “não está a acontecer; aliás, não me/nos vai acontecer”. Ver alguém com luvas e máscaras, na rua ou no ecrã, pode bastar para ser tomado de assalto por um medo sem fundo e só querer meter-se na cama.
É normal, por este dias, experimentar repulsa, ou nojo, por alguém que passa demasiado próximo, ou espirra, ou tosse, mesmo que cumpra a etiqueta e as normas das autoridades de saúde. As perceções do real alteram-se de forma dramática quando o mundo fica de pernas para o ar. E nem depois de mais um dia no bunker-estaleiro em que a casa se transformou, a coisa abranda: o cenário caleidoscópico, e distópico, irrompe nos sonhos, sem moderação.
A fisiologia explica
“As pessoas sonham com o quotidiano e se dormirem mais durante a manhã a produção de sonhos é mais abundante porque há mais fases REM (movimentos oculares rápidos)”, avança a médica e investigadora Teresa Paiva, especialista na área do sono. Ter insónias e acordar várias vezes pode igualmente contribuir para isso. Os pesadelos são mais comuns se a pessoa andar deprimida ou tiver discussões em casa mas o impacto da pandemia é incontornável: “Vai haver mais casos de stresse pós traumático, ou porque se é mais sensível, ou porque não se despediu de alguém que morreu, ou por estar fechado há muito tempo.”
Sob stress, a tendência é fugir, atacar ou ficar paralisado. Durante o sono, as áreas frontais do córtex deixam de estar ativas e o que acontece na atividade onírica assume formas e conteúdos bizarros. Curiosamente, “o ataque é menos comum do que a fuga e, quando acontece, é a defender-se de terceiros ou de uma ameaça que compromete a sobrevivência”, remata Teresa Paiva.
À luz da neurociência, os sonhos têm uma função reguladora no processamento de emoções e de memórias (teoria da ativação-síntese). E vão até além disso. Num artigo que publicou juntamente com Karl Friston, o psiquiatra e investigador americano Allan Hobson destacou a importância do significado emocional dos sonhos para a nossa sobrevivência. A razão é simples: o cérebro sonhador tem a capacidade de simular mecanismos de defesa em situações potencialmente ameaçadoras. A pandemia é claramente uma delas.
Na noite passada…
Na Internet, multiplicam-se os relatos confessionais de experiências subjetivas e sonhos durante a quarentena global
Sob stress, o cérebro primitivo sobrepõe-se ao cérebro pensante e entra em ação. Uma vez ativado o sistema límbico, a corrente sanguínea fica inundada de hormonas como o cortisol e a adrenalina. Se esteve a fazer scroll sobre notícias da Covid-19 após um dia stressante, a probabilidade de ter um sonho menos reparador é maior, servindo de combustível ou matéria prima para a fábrica dos sonhos (a estrada para o nosso inconsciente, dizia Freud).
Uma sondagem recente da líder internacional de pesquisa de mercado YouGov, que envolveu mais de 2 400 americanos e citada no jornal Huffington Post, mostrou que quase 30% dos inquiridos reportaram ter mais sonhos vívidos. No mesmo artigo, refere-se um estudo sobre a qualidade do sono, levada a cabo pelo site educacional SleepHelp, em que se verificou que um em cada cinco adultos afirmava dormir menos devido às preocupações geradas pela Covid-19.
Na Internet, como refere um artigo da Wired, multiplicam-se os relatos confessionais de experiências subjetivas e sonhos durante a quarentena global, que refletem medos, ansiedades e perdas, reais ou imaginadas. Desde abrir a porta do apartamento e no lugar do corredor encontrar um vazio. Ver-se a falhar a data limite para entrar na universidade e continuar com um medo irracional depois de acordar, com desabafos do tipo “acho que o meu cérebro só quer voltar atrás”. A realidade, imprevisível e esmagadora, a ultrapassar a ficção. E o cérebro a fazer o que pode enquanto os olhos se fecham ao mundo. Como o rapaz que sonhou estar retido no aeroporto enquanto fazia escala para o destino de férias e, com fronteiras fechadas, voos e outros meios de transporte cancelados, não podia ir para casa. Viu-se então numa quinta com jardim e galinhas, e lá ficou até que o vírus desaparecesse.
Que fazer com este tsunami emocional?
O homem que se apresentou como um “Psicoterapeuta Inseguro em Tempo de Pandemia” trouxe a vulnerabilidade e a insegurança para a discussão o Diálogo “Psicoterapeutas no Tempo do Medo”, através da plataforma Zoom, que teve lugar no passado dia 15. Hélder Chambel acredita que ”em situações traumáticas o melhor que podemos fazer é estar juntos e partilhar experiências”. À VISÃO, faz saber que quando somos expostos a muita informação com potencial desorganizador – confinamento, privação dos rituais que conhecemos, ameaça de contágio e risco de morte – num curto espaço de tempo, uma de duas coisas pode acontecer: dissociar ou integrar. “Quando a realidade se afigura demasiado devastadora e difícil de suportar, uma tendência é negar, dissociar-se do que está a acontecer.” E aconteceu, por exemplo, no Turquemenistão, situado na Ásia Central. “Neste país foram proibidas as palavras Covid-19 e Coronavírus e as pessoas podem ser presas se usarem máscaras.” É uma mecanismo primário de lidar com uma situação traumática, “as experiências não são formuladas”. Integrar é diferente, “há uma reação face ao que está a acontecer na realidade, de que são exemplo os movimentos de solidariedade”.
Nas consultas, vêm os sentimentos de insegurança e, mais uma vez, o sonho é um veículo. “Uma pessoa com uma relação estável sonhou que era alvo de traição pelo cônjuge; outra, que perdeu a mãe recentemente e via nela uma fonte de segurança simbólica, como na situação anterior, sonhou que estava a passar novamente pela perda.”
Outro exemplo do efeito da nova nas nossas vidas é a qualidade paradoxal da experiência: “A nossa ordem interna é para sair, ter movimento e ação mas o isolamento rompe a organização social e temporal.” Os dias da semana e do fim de semana são iguais, seja o Dia do Pai, a Páscoa ou a entrada na Primavera, “as datas e rituais perdem significado”.
Hélder Chambel considera que “o vírus trouxe para o centro o que estava presente mas em pano de fundo, a nossa insegurança e vulnerabilidade”. O clínico da PsiRelacional acrescenta que a pandemia criou um “tsunami emocional” do qual é possível sair e seguir em frente, com uma nova visão do mundo, ou seja, abdicando da omnipotência humana a favor da interdependência.