“Perigos e consciência”. No início do século XXI, várias figuras públicas escreveram cartas à geração futura sobre os riscos que aí vinham. Luc Montagnier, eminente virologista francês, foi um deles. “Como biólogo considero minha responsabilidade antecipar situações extremas que poderiam ocorrer”. Foi então nesse texto intitulado “Perigos e Consciência” que aludiu, antes de tudo o mais, aos desastres de saúde e de novas epidemias de agentes infecciosos. Havia, então, todas as razões para o levar a sério.
Tratava-se, afinal, do francês ficara para a história pela descoberta do vírus da imunodeficiência humana, em 1983 – um agente infeccioso então completamente novo. Fora observado clinicamente pela primeira vez dois anos antes. Curiosamente, as primeiras descrições também falavam de sintomas semelhantes ao da gripe. E referiam que, à medida que a doença progride, interfere mais e mais no sistema imunitário. A descoberta seria publicada em maio daquele ano na prestigiada Science. Mas o feito também haveria de se ver envolto em polémica por ter sido reclamado em simultâneo pelo investigador norte-americano Robert Gallo. A zanga não durou muito: acabou por se descobrir que o americano estava a trabalhar com uma amostra que tinha sido contaminada no laboratório de Montagnier.
No final das contas, o mérito da descoberta acabou dividido entre o Instituto Nacional de Saúde dos EUA e o Instituto Pasteur. E os dois acabaram por dividir o Nobel da Medicina que consagrou o feito, em 2008. O que leva então alguém com uma carreira destas a dizer que este SARS coV-2 surgiu num laboratório?
“Porquê, doutor?”
Nascido em agosto de 1932, o jovem Luc iniciou a sua carreira de investigador a trabalhar como assistente na Faculdade de Ciências de Paris. Dali seguiu para o Instituto Curie e, em 1972, tornou-se diretor do Instituto Pasteur, instituição francesa sem fins lucrativos dedicada ao estudo da biologia dos micro-organismos, das doenças e vacinas.
Montagnier é ainda membro de várias academias francesas, mas também internacionais: por exemplo, foi o primeiro presidente da World Foundation for AIDS Research and Prevention, que ajudou a fundar. Como reconhecimento do seu trabalho, recebeu ainda outros prémios, como o Rosen Prize, atribuído pela sua contribuição muito significativa para a história da saúde pública. Ou o da Fundação Gairdner, também pelo reconhecimento de realizações notáveis em pesquisa biomédica.
Daí que as suas recentes afirmações a garantir que o novo coronavírus surgiu em laboratório tenham recebido – pelo menos inicialmente – algum crédito. Segundo fez saber Montagnier, que cumprirá este ano 88 anos, a sua convicção tem razão de ser: os chineses tentavam encontrar uma vacina para o VIH quando criaram o SARS co-V-2, causador da Covid-19.
Em entrevista em podcast Pourquoi Docteur? (Porquê, Doutor?, em português), Montagnier começa por afirmar que “a história de que ele surgiu em um mercado é uma lenda”. No seu entender, aquele laboratório da cidade de Wuhan, que se especializou neste tipo de coronavírus no início dos anos 2000, teria tido uma falha de segurança e deixado escapar a nova estirpe.
O especialista, que garante ter analisado a sequência do SARS coV-2 com o seu colega matemático Jean-Claude Perrez, afirma ainda que cientistas indianos também já tinham tentado publicar um outro estudo, a garantir que este novo coronavírus possui sequências do VIH, o agente causador da sida. Questionado então se tal mutação não poderia ser natural, Montagnier foi categórico. “Não. Esse tipo de mutação precisa de ferramentas, não acontece na natureza”. Só não terá sido intencional, como afirma o presidente americano, Donald Trump. “Não estou a dizer que os chineses o criaram para ser uma arma biológica. Mas acredito que procuravam uma vacina contra o VIH e usaram um coronavírus como vetor”, explicou.
“Não acreditem nele”
As reações do resto da comunidade científica não se fizeram esperar. “É uma análise errada”, ripostou, de imediato, Simon Wain Hobson, virologista molecular do mesmo Instituto Pasteur, em entrevista à RFI-Radio France Internationale. “É muito simples. O genoma do novo coronavírus é particularmente rico em duas bases em seu genoma, e o HIV é apenas rico numa delas. Olhando a sequência genética, pode-se chegar à conclusão de que há, apenas, similaridades”, explica Hobson.
Não foi o único. Aliás, o descrédito dado ao trabalho de Montagnier não é de agora. Apesar de ter feito carreiro no instituto Pasteur, em Paris, Montagnier é hoje professor numa universidade na China, a Jiao Tong, em Xangai. E a verdade é que, mais recentemente, Luc Montagnier tem publicado vários artigos muito mal recebidos pelo resto da comunidade científica. Entre eles, um estudo que sugeria a possibilidade de tratar o autismo com antibióticos. Mas não só.
São críticas recorrentes desde que, em 2011, depois da idade de reforma, o francês decidira ir para a China prosseguir o trabalho de investigação. Juan Carlos Gabaldon, atualmente cientista de Parasitologia Médica na London School of Hygiene and Tropical Medicine, também já comentou no twitter: “para quem não sabe, o Dr. Montagnier tem estado em decadência acelerada nos últimos anos: não só já defendeu a homeopatia como se tornou um crítico das vacinas. Seja o que for que diga, não acreditem nele.”