Páscoa 2.0: missa celebrada com rigor na paróquia da Penha de França

Páscoa 2.0: missa celebrada com rigor na paróquia da Penha de França

A primeira coisa que salta à vista, assim que saio do meu carro, estacionado junto à igreja de Nossa Senhora da Penha de França, em Lisboa, é um cadeado amarelo, aparentemente a unir os imponentes portões de ferro verde. Ligo para o José Carlos, que imagino lá dentro, de máquina fotográfica na mão. “Podes entrar”, diz-me meio a sussurrar, porque dentro das igrejas se sussurra, ninguém sabe bem por quê, “o cadeado não está a prender o portão”.

Olha, pois não, admiro-me enquanto subo a escadaria de mármore até à porta de entrada. Presos, mas nem tanto. Religião adiada, mas nem por isso. Deve ser essa a metáfora contraditória destes cadeados (há mais, à medida que passo mais portões, todos amarelos e igualmente grossos): nada prendem, mas tudo proíbem. As ordens de Roma são clara, desde meados de março – não se celebram missas. Não se celebrarem missas, vírgula, porque a maioria dos padres tem-nas celebrado, sem assistência.

E a Páscoa, o ponto alto das celebrações dos católicos em todo o mundo, como se vive em confinamento, sem as habituais idas à igreja? Por estes dias, haveria procissões, compassos, cânticos, missas mais demoradas, compaixão.

É isso que vamos descobrir, depois de esfregarmos os dedos com o gel à disposição de quem entra na igreja, para se poder acudir ao pedido, de acordo com as normas da DGS, escrito num papel e colado à frente dos nossos olhos. “Desinfete as mãos”, é mais ou menos isso.

NUMA IGREJA VAZIA, FAZ FRIO

A igreja é grande e o vazio ecoa pelas paredes de mármore, as talhas douradas e as figuras religiosas que ornamentam a sala. Há um computador portátil em cima de uma coluna, mesmo em frente ao altar, junto à primeira fila, onde já tantas vezes ficaram os convidados de honra dos casamentos e batizados, no tempo em que eles eram celebrados em comunhão.

O padre Edgar Clara, 44 anos, encontra-se de volta do aparelho eletrónico que domina a igreja, algo tenso. “Com todas as limitações, houve uma invasão da Igreja a um espaço que estava praticamente livre. É que liturgia e Internet têm linguagens muito diferentes. E ainda estamos todos a adaptar-nos….” Adaptar, neste caso, era conseguir que o som chegasse mais alto a casa dos paroquianos, pois eles têm reclamado durante as transmissões via Facebook.

Só que, mesmo depois de quase uma hora de testes – liga cabo, desliga cabo, testa o micro, mexe nas definições do sistema -, volta tudo à versão anterior. O computador sai do seu lugar de destaque, é atirado para cima do banco corrido de madeira, e encaixa-se um telemóvel no pequeno tripé encarnado, de pernas escanchadas para se equilibrar. E liga-se o carregador a uma ficha múltipla pendurada na coluna, não vá a bateria finar-se.

O aparelho pertence a Cátia Valente, 37 anos, responsável pela catequese. Será dela a responsabilidade deste direto, coisa que tem vindo a fazer desde que o público ficou em casa. Também gere, com outras pessoas, a página do Facebook da paróquia, que já existia antes do vírus, embora com muito menos atividade.

Num canto, do lado direito da igreja, se estivermos virados para o altar, reparamos em Marta Domingos, 37 anos, esperando pacientemente que a cerimónia comece, junto a um microfone. De vez em quando, levanta-se, com os seus cadernos pautados na mão, e ensaia com a organista Cristina Brissos, 51 anos, as músicas desta missa vespertina da ceia do Senhor.. A sua voz ressoa de forma especial, sem gente para absorver a melodia. E arrepia.

Antes, Marta dirigia o coro, mas já se habituou a isto de cantar sozinha e sem público. Desde o primeiro momento que se disponibilizou para participar nestas celebrações virtuais, por viver perto e não ser grupo de risco. “Quando estou de frente para o padre nem sinto grande diferença, mas quando subo ao altar para ler e me viro para os bancos vazios é muito estranho, especialmente quando canto o salmo. Tento dirigir o meu olhar para o telemóvel, mas é difícil.”

Sabemos de antemão que nesta quinta-feira santa pouco será como dantes, pois cancelou-se a cerimónia de Lava-Pés e a Trasladação, que é quando se leva o sacrário, em procissão, para uma capela ao lado da igreja onde agora estamos. E, claro, a comunhão dá-se, exclusivamente, às duas músicas e aos três paroquianos que estão na sala, a assistir, várias vezes ajoelhados – mas só depois do direto acabar.

EM NOME DO PAI, DO FILHO…

São sete em ponto. Quatro homens, de paramentos brancos, aguardam a sua entrada em cena, mantendo as devidas distâncias no corredor do lado esquerdo. Assim que o direto começa, dirigem-se ao altar. “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” E afinal Marta não canta sozinha, há oito vozes que se juntam a ela, entoando os cânticos religiosos. Poderiam ser cerca de 300, estivesse a igreja cheia de fiéis. Em vez disso, os casacos estão vestidos para combater o vazio.

Em direto no Facebook, estão mais de 80 ligações, mas isso significa mais pessoas, pois normalmente há mais do que uma a seguir a missa virtual. Contas feitas, no final registaram-se 816 visualizações. Cada um a rezar em suas casas, respondendo com virtual “ouvimos Senhor”, sempre que Marta pede que “oremos ao Senhor”. “Amén” é o que mais se lê nos comentários escritos durante a transmissão, mesmo que alguns sejam para se queixar do som.

Esta paróquia, como a maioria das outras, está unida neste regresso forçado aos primórdios do cristianismo. “Voltámos à liturgia doméstica, que era o que faziam os primeiros cristãos, partilhando o pão. Só existe este encontro em igrejas desde que começámos a construí-las, no século II”, lembra Edgar.

Nem o padre Edgar Clara, nem o seminarista Manuel Almeida, 23 anos, que o acompanha, pertencem a esta paróquia. É Bartolomeu dos Mártires, 37 anos, quem costuma celebrar missa nesta igreja, junto do diácono Gonzalo Girona, 38 anos. Mas uniram-se nesta Semana Santa tão fora da normalidade. “Nas minhas paróquias da Mouraria e do Castelo, a maioria das pessoas não tem internet, por isso achei melhor vir para aqui, partilhar o altar. E também partilho a cerimónia nas minhas páginas”, esclarece.

No domingo de manhã, dia 12, o padre Edgar irá levar a comunhão a duas ou três pessoas das suas paróquias, as mais velhas e as demasiado acostumadas a ir à igreja diariamente para ficarem sem o sacramento no dia da ressurreição. “Levo um relicário, chego-me à porta deles, faço uma oração e dou a comunhão, com todos os cuidados, até porque são os mais velhinhos.”

Os ritos pascais vão manter-se, com as devidas diferenças, já se sabe, a assembleia é que passou a ser virtual. Aqui, nem as flores falham. Há gerberas grená, a condizer com os tons do tapete persa estendido em frente ao altar, num arranjo delicado que daqui sairá no sábado, quando se substituir toda a decoração, de acordo com o que manda a tradição.

“Pai Nosso que Estais no Céu”, ouve-se em uníssono. Mas, sem paz de Cristo, nem beijinhos, por favor, embora a música acompanhe o momento que normalmente faz com que os fiéis se cumprimentem. Esta Páscoa, a afastamento social dita que este ritual seja suspenso, até novas diretrizes. “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.”

Desliga-se o telemóvel, solta-se o carregador da ficha, apanham-se os cabos e guarda-se o computador. Saímos da igreja, já de luzes apagadas. E o cadeado amarelo continua pendurado, com a mesma função -de prender, com alguma liberdade. De proibir a permanência numa igreja, sem permitir que a devoção religiosa se afrouxe.

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