Este texto é para ser lido com música. Pedimos-lhe que sintonize no som que mais lhe agrada e que se agarre a ele como um elixir. Se dançasse, então, seria o ideal. Garantimos que, pelo menos durante o tempo em que estiver a ler estas linhas vai abrir um parêntesis nesta realidade paralela em que estamos a viver há quase um mês. A nós aconteceu-nos – e a todos os que têm a sorte de participar nestas iniciativas entre vizinhos.
Encontramos Henrique Pires de blusão vestido e gorro para lhe aconchegar a cabeça do frio que se tem colado às noites da primavera mais estranha das nossas vidas. Só tem 17 anos, mas uma vontade muito maior do que a idade de fazer os outros felizes. E, neste momento, como para quase todo o mundo, os outros resumem-se aos seus vizinhos do condomínio do Parque das Nações, em Lisboa, onde vive com os pais e o irmão mais velho. Está frio, repetimos, mas só para confrontá-lo com o calor que vai sair do seu microfone e se prolongará durante cerca de um quarto de hora, o tempo de que necessita para passar três músicas, no seu sofisticado equipamento de DJ.
“Senhoras e senhores, faltam apenas dez minutos para a nossa sessão”, avisa, como se as janelas já não estivessem cheias de cabeças à espreita, de cotovelos cruzados sobre os parapeitos, de bandeiras penduradas e enfeites de luzes a lembrar o Natal. Aqui, tudo começou com o vigésimo aniversário do filho de uma vizinha e a necessidade de celebrarem de forma original. Nessa noite, há coisa de três semanas, Henrique equilibrou a sua coluna na janela, tocou os parabéns e todos os vizinhos se uniram na canção. “Como correu tão bem, pensei que poderia fazer isto todos os dias”, lembra o jovem. Depois de um primeiro teste e de uma reação excelente, Henrique foi acometido de uma sensação “mesmo boa”. Quando as pessoas dos prédios mais distantes – são sete, com oito andares, que formam um U, rodeando um jardim – reclamaram porque nas suas casas o som chegava abafado, passou a dirigir as sessões cá em baixo. Nem por isso deixou de, todas as noites, às nove, descer o material que se torna pesado com as duas colunas enormes, o computador, o iPad, o foco de luz vermelha e um milhar de cabos, para estar a levá-lo outra vez para casa um quarto de hora depois.
A sequência das músicas que passam – sempre três, um pouco mais ao fim de semana – não é aleatória e exige algum planeamento. “A última é sempre de esperança, para transmitir a mensagem de que juntos, mas separados, vamos conseguir.” Nesta noite, ouvimos, em primeiro lugar, a voz de Mariza a sair, vibrante, das colunas e a espalhar-se pelas varandas e janelas. Logo a seguir, dá-se a vez às Doce, com o animado Amanhã de Manhã, provocando um abanão geral, que se vislumbra do recato de cada uma das casas, transformadas, por breves momentos, em pistas de dança. “Todos! Mais alto!”, pede Henrique, a puxar pela vizinhança, que está agora a dar tudo: ouvem-se palmas, assobios, ligam-se luzes psicadélicas e abanam-se braços para dar movimento às lanternas do telemóvel, à semelhança do que antes se fazia com os isqueiros nas músicas mais intimistas dos concertos ao vivo. E agarram-se copos de vinho, que também acompanham o movimento, de um lado para o outro.
Antes de recolherem ao mundo distópico, os vizinhos entoam o Juntos Somos mais Fortes, dos Amor Electro
Antes de recolherem ao mundo distópico, os vizinhos de Henrique entoam a música Juntos Somos Mais Fortes, dos Amor Electro, unidos num hino de esperança e secundados pela voz do DJ. “Pessoal, quero ouvir todos!” Segue-se a ovação final, “palmas para os enfermeiros que estão a trabalhar 24 horas por dia”, e o burburinho que se vai finando aos poucos, à medida que as pessoas regressam ao confinamento das quatro paredes. “Vemo-nos amanhã”, fica a promessa, inevitável por estes dias.
Menina que estás à janela
Uma hora depois, e 300 quilómetros mais acima no mapa do litoral do País, há um largo que se reúne, todas as noites, para uma canção. Quem não vive por lá, como é o nosso caso, pode acompanhar à distância, e em direto, através da página de Instagram @asdeznolargo, que já tem três dezenas de publicações e mais de dez mil seguidores em todo o País.
Leonor Cabral, 31 anos, é a porta-voz de um movimento que nasceu no Largo Curso Silva Monteiro, para onde confluem quatro prédios, perto da Boavista, no Porto, depois daquela sessão de palmas aos profissionais de saúde e do hino à janela. “Pensámos que havia muito potencial, porque os edifícios estão virados uns para os outros. E depois foi muito espontâneo. Deixámos papéis debaixo das portas dos vizinhos, desafiando-os para um grupo de WhatsApp. Caso quisessem fazer parte, deveriam mandar uma mensagem com a palavra ‘largo’.” Responderam logo 50 pessoas. Esta foi a génese de uma iniciativa em que já participaram músicos como António Zambujo, José Cid ou Pedro Abrunhosa. Sim, porque sempre que conseguem, transmitem uma mensagem gravada dos autores da música ou de alguma personalidade inspiradora. Antes das dez, os que fazem parte da lista, que entretanto aumentou muito, recebem a informação de qual a canção portuguesa que irão ouvir e, preferencialmente, entoar. “A escolha vai ao encontro do que nos pedem e ao flow do largo”, explica Leonor, que vive ali há um ano e meio e, até agora, conhecia apenas dois ou três vizinhos.
O som sai alto de sua casa, pois ela e o namorado têm boas colunas e melhor aparelhagem – dirigem-se ao público com uma voz poderosa, saída do micro. Ouvimos o direto de uma destas noites e até arrepia o timbre de Vitorino, no seu Menina que estás à janela, entoado a tantas vozes, quase como se fosse ao vivo. A polícia já lá passou e fez a sua parte, ligando as sirenes, em sinal de aprovação. Haja momentos como este, um pouco por toda a cidade, coisa que tem acontecido.
Mas cá no prédio somos 20
Pedro Melim, 40 anos, socializou com os vizinhos numa tarde de domingo, mas a história ficou imortalizada no Youtube e já conta com 23 mil visualizações só nesta plataforma. Se ainda não ouviu o rap que este fotógrafo escreveu para desanuviar da sua quarentena, pesquise por Covid-19 vs Prédio-20 e vai passar dois minutos e meio divertido a ouvir uma música com o seguinte refrão: “COVIDizer 19, mas cá no prédio somos 20.” Também verá os moradores deste edifício de Caxias, perto de Lisboa, a aderirem à música, com esfregonas, máscaras, luvas, desinfetante e outros artefactos que agora fazem parte das rotinas.
Farto do silêncio que tomou conta das redondezas, e desafiado por uma vizinha que o ouve tocar guitarra e lhe pediu para dar um concerto, Pedro Melim decidiu ir mais longe. Criou um grupo de WhatsApp, mandou as letras que escreveu àqueles que aderiram à ideia, pediu-lhes que cantassem o refrão e que viessem para as varandas com os adereços alusivos ao tema. A brincar, e com batida característica deste estilo musical, vai passando mensagens importantes: “Fica em casa, desinfeta as mãos, não pegues este vírus aos teus irmãos.”
Não muito longe dali, o catalão Iñigo Hurtado, 49 anos, optou por ocupar os seus longos dias de confinamento animando a praceta onde agora tem de passar a maior parte do tempo e inspirado pelas coisas que tem visto acontecer em Espanha – de onde é natural – e em Itália. Ao contrário de Pedro Melim, aqui dá-se gás diariamente, às duas da tarde e às nove da noite, desde há três semanas. Isso implica um enorme empenho por parte de Iñigo, que criou um grupo de WhatsApp e uma página de Facebook, a que chamou Vizinhos à Janela. É através destes canais que comunica com as pessoas dos prédios das redondezas (que já ultrapassaram a praceta do Jardim dos Arcos) e lhes vai dizendo qual o programa das festas. “Ao princípio, ninguém ligava muito a isto, mas a coisa foi crescendo e agora somos muitos”, garante o catalão, que já domina a nossa língua, à custa de viver em Portugal há dezenas de anos.
Começa sempre por pedir “barulho… muito”. E os moradores respondem com gritos, tampas de panelas a bater umas contra as outras, apitos, palmas. O momento já está assinalado com panos brancos pendurados nas janelas. Depois, pode seguir-se uma música, daquelas que toda a gente sabe cantar (Maria Albertina, Viva la Vida, O Balão do João…), aproveitando os dotes de DJ de outro vizinho.
Na tarde em que aqui viemos, tivemos a sorte de ouvir um miniconcerto de violino, dado a partir de uma janela alta, quase no topo de um dos prédios. Gera-se silêncio na praceta e o som deste instrumento de cordas domina, mas a artista não se vê, apenas um vai-e-vem do arco que faz soar a música. Ana assoma ao parapeito e agradece, depois de chamarem o seu nome com insistência. E toca mais duas músicas, ampliando o som com um altifalante. No final, os moradores juntam-se num “grito de luta”: “Fique em casa, oié!” Com mais palmas, despedem-se com um “até logo”, quando o escurecer voltar a trazê-los às janelas para mais uma sessão animada, a pensar especialmente nas crianças e nos mais velhos.
“Because I’m Happy…”
Lourenço Gonçalves completou 17 anos no último sábado e teve direito a ovação por parte dos vizinhos – a muitos deles nem lhes reconhecerá a cara quando isto acabar. Não admira que se tenham unido para lhe proporcionar uma noite diferente. É que ele e o irmão Lourenço, 22 anos, andam a dar-lhes música desde que foram obrigados a ficarem fechados em suas casas, na Avenida Infante Santo, em Lisboa. Fazem-no sem uma regularidade estipulada, mas normalmente acontece uma vez a meio da semana e outra ao sábado, mais alargada e mesmo a lembrar as noites em discotecas. Usam a página do Instagram @infantsaint_quarantine para se fazerem anunciar e arregimentar as pessoas.
A sessão começa depois das notícias da noite, pelas 21h45. Pode acabar perto das onze, se contarmos com o bruaá que fica no ar, mesmo depois de eles já terem arrumado as duas grandes colunas que transportam para a porta de casa, na varanda comum. Não dá para os ver bem cá de baixo, do grande jardim que serve estes prédios, porque há como que umas ripas de cimento que só deixam vislumbrar mãos que se escapam por lá. Mas topam-se logo as luzes, coloridas, que se apagam e acendem assim que Portugal. The Man se deixam ouvir até ao outro lado da Infante Santo, com Feel It Still. Impossível não fechar os olhos e dançar como se o cenário fosse outro. Ainda por cima, há um coro de gritinhos que puxam por nós, apitos, braços no ar, luzes de telemóvel que se arrastam ao ritmo animado desta canção. E álcool, daquele que não desinfeta, dentro dos copos que brindam à distância. De seguida, bem misturado, sai o refrão de Pharrell Williams Because I’m Happy.
Os DJ Gonçalves estão animadíssimos, junto aos pais e à irmã mais nova. A família dança na varanda, bebe-se vinho e minis, confraterniza-se com os vizinhos de galeria, mesmo que os mais novos do piso já andem por aqui de pijama. A música está alta e talvez por isso tenha passado um carro da polícia, devagar, mas sem acabar com a festa. Até porque é a hora da Macarena, dos Los del Río, e há uma coreografia a cumprir por toda a vizinhança.
“Quando isto acabar, queremos organizar uma festa no jardim”, diz Martim Gonçalves, que dá música à Infante Santo
Já se percebeu que a playlist é eclética, para satisfazer o gosto de todos e os pedidos que vão sendo enviados ao longo da semana. Termina-se em alta, com o Hino Nacional. Só que não, as pessoas pedem mais, e até os que passeiam cães nas redondezas vêm ver o que se passa. Os manos, entusiasmados, dão então voz a Lynyrd Skynyrd, embalando-nos com Sweet Home Alabama. “Até amanhã, Infante Santo!”
“Quando isto acabar, queremos organizar uma festa no jardim, pelos Santos Populares.” Fica a intenção, na voz de Martim, para que o convívio entre vizinhos não se resuma ao tempo de reclusão e aos acenos da minha janela para a tua.