“Quem tem cu tem medo.” O medo, convidado especial da quarentena, infiltra-se nas casas, nas cabeças e nas entranhas. Os efeitos são imediatos: encher o frigorífico e rechear a despensa com bens alimentares para ficar em casa sem que nada falte. A procura de bebidas alcoólicas e de tabaco também tende a aumentar, até por se deixar de comer fora e de sair à noite para locais de diversão, mas é o esvaziamento das prateleiras das pequenas e grandes superfícies destinadas ao papel higiénico que salta à vista.
A expressão “coronanxiety”, a ansiedade associada ao novo coronavírus, pode ser exagerada mas foi à boleia dela que a revista TIME lançou o repto a investigadores: a que se deve o açambarcamento deste produto e sucedâneos (toalhitas humedecidas, por exemplo)? “Dá conforto saber que está lá (na despensa)”, assegurou a psicóloga americana Mary Alvord, docente em Ciências do Comportamento na Escola de Medicina da Universidade George Washington. Uma reação normal, portanto: “Todos comemos, dormimos e fazemos cocó; cuidarmos de nós é uma necessidade básica.” Apresentar-se limpo e sem exalar mau cheiro define enquanto espécie e negligenciar estes cuidados pode sair caro: exclusão do grupo e sobrevivência comprometida. No mesmo artigo, a acumulação de um bem para o qual não há substituto explica-se também pela ausência de garantias por parte dos líderes políticos quanto à reposição atempada dos stocks e com a pandemia a alastrar. A ansiedade gerada pela ameaça é condição suficiente, segundo Alvord, para desencadear este consumo excessivo induzido pelo pânico, que confere a sensação de ter algum controlo em momentos de grande incerteza”. Por outras palavras, ter rolos de papel macio na “prisão domiciliária” pode trazer algum consolo, da mesma forma que a chamada comida de conforto: ingerir o que estiver à mão para compensar vazios e angústias.
O efeito de contágio
Por esta altura começa a ser evidente que o combate à Covid-19 vai prolongar-se durante algum tempo e ninguém se atreve a dizer quanto. Distância social, máscara, luvas, desinfetante, lavar as mãos com frequência, evitar distrações como tocar na face… tudo isto é dose para o comum dos mortais. Mesmo fazendo tudo isto, quem garante que estamos a salvo? Pelo sim pelo não, “o melhor é estar preparado”, precaver-se, como fez saber Thea Gallagher, diretora do Centro de Tratamento e Ansiedade da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia, ao site de notícias TODAY. Naturalmente, quem tende a ver o copo meio vazio tudo fará para que tal prognóstico nunca chegue a concretizar-se. Num cenário imprevisível, em que os apelos à calma costumam produzir o efeito oposto e colocar os visados em alerta, basta meia dúzia de pessoas adotarem o mesmo comportamento para que outros os imitem e se chegue ao indesejado efeito dominó e converter-se, até, numa espécie de moeda de troca. Ou de chamariz. Aconteceu na América: ser dos primeiros clientes de restaurantes e ter direito a um rolo grátis.
Dar toques na “bola cilíndrica”: outra das excentricidades que inundou os feeds de muitos que, confinados em casa, se diferenciavam assim do grupo dos adeptos do sofá e dando um ar da sua graça no “bunker”. Neste cenário, há quem faça questão de arrumar o papel a um canto: evita-se o desperdício e diz-se adeus ao medo da escassez. O que está a dar é o bidé.
Não um bidé qualquer, mas um daqueles que se instalam na sanita e vêm com um comando para gerir a distância e a pressão dos jatos de água: quem estiver disposto a investir algumas dezenas de euros parece não querer outra coisa, mas a funcionalidade e a sofisticação destes equipamentos não derrubam a aura do rolo. Não sendo 100% necessário, continuamos a vê-lo como indispensável em casa, no carro e na mochila. Qual é o segredo?
Se isto é um homem…
Basta lembrar os anúncios publicitários e ternurentos das marcas do papel para uso pessoal – um cão a desenrolar as faixas pelo corredor da casa ou uma criança a sorrir enquanto o manuseia – para fazer uma dissertação sobre este objeto. A razão é simples: o papel higiénico dignifica a existência, distanciando-nos simbolicamente dos horrores da sobrevivência descritos em clássicos como os do italiano Primo Levi, sobre a vida num campo nazi e de medos ancestrais.
“Tanto era o medo que molhou as calças.” Ou, pior ainda, “borrou-se todo.” As perdas involuntárias de urina e fezes (enurese e encoprese, na gíria clínica) põem a nu o stresse e sofrimento infantis e trazem embaraço e vergonha ao próprio – por não se conter, controlar – e aos que estão com ele. Talvez haja mais para além do que os olhos vêem na mística desse objeto cultural e recheado de singularidades: reciclado, de folha simples, dupla e tripla, com relevos, cores e motivos gráficos e em pacotes que vão das duas às dezenas de unidades.
Se
é certo que “estamos condenados a comer e a evacuar desde que nascemos”, afirma o psicanalista António Alvim, também o é viver em grupo sem ficar entregue aos bichos (predadores, um vírus que não se vê). Só que a vida em comunidade pressupõe algumas condições
e é neste ponto que entra o controlo dos esfíncteres, etapa fundamental no desenvolvimento: “Ao mudar a fralda os pais elogiam o cocó do bebé, que faz quando quer; depois, passa a ir ao bacio e abdica desse controlo, deixa de o fazer quando quer e onde quer”,
esclarece Alvim. Esta mudança representa “uma quebra narcísica, uma castração por parte do grupo, em cujas casas não pode faltar asseio”. Assim se garante, simbolicamente, que o grupo permanece junto no mesmo espaço. “O papel higiénico é um conforto e um luxo
que fala da dignidade do humano e do que o distingue do hominídeo.” E dá um exemplo: “Podíamos comer carne crua, mas é próprio do humano pensar no molho das três pimentas, são supérfluas mas sabem bem.”
Indivíduos somos todos nós
No reino animal, marcar território faz-se através de excrementos. A prática era também incluída dos rituais primitivos, com a finalidade de afastar maus espíritos. Não surpreende, pois, a abundância de metáforas e gestos que remetem para os esfíncteres, com uma função catártica e empoderadora. “Caga nisso.” “Estou a borrifar-me.” E por aí fora. Mas o que é que isto tem a ver com a corrida ao papel?
António Alvim esclarece que em tempos de crise e escassez, aumentam os apelos de grupo e “acumular coisas que sabem bem mantém o indivíduo à tona sem ser engolfado pela mentalidade grupal”. Depois, mensagens como “fique em casa” e “tudo vai ficar bem” podem ter um efeito paradoxal e despertar a parte infantil que há em nós, que leva ao açambarcamento. “As pessoas obedecem, ficam em casa e levam tudo o que puderem lá para dentro que lhes dê conforto e preserve a sua individualidade”, reflete o psicoterapeuta e psicodramatista.
Em tempos de pandemia, o desafio é permanecermos humanos, conclui António Alvim. A explosão de mecanismos primitivos – “a lógica tribal do ‘juntos vamos vencer’, a vacina que nos vai salvar’, etc” – tende a coexistir com outros, “pessoas que se voluntarizam, tocam para outros e se organizam em grupos de trabalho”. Neste caso, ‘repõem’ sentimentos de segurança numa altura em que não se vislumbram descargas de autoclismo mágicas capazes de deitar o impacto do vírus na economia pelo cano abaixo.