Quantas vezes é que já ouviu esta canção “premonitória” de Sérgio Godinho? Quantas vezes já lhe disseram isto? Quantas vezes já leu isto? Provavelmente tantas quanto eu. E foram tantas que não sei quantas foram. Só sei que foram muitas.
Mas lembro-me de uma vez em particular em que ouvi o Sérgio Godinho a cantar esta canção. Foi na rádio. No “tijolo” que tinha no meu quarto no dia em que fiz 18 anos. Já não sei se foi antes de me deitar já no dia dos meus anos, se foi assim que acordei no dia dos meus anos. Mas sei que estava no meu quarto, em casa dos meus pais, que estava a fazer 18 anos, e que ouvi o Sérgio Godinho a cantar esta canção. E, claro, como todas as pessoas que fazem 18 anos, achei que ser aquele o primeiro dia do resto da minha vida era uma coisa muito importante. Sim, porque tudo o resto estava igual. Não havia diferença nenhuma entre o eu do dia 9 e o eu do dia 10. A não ser poder tirar a carta de condução. Coisa que comecei a fazer logo no dia 11!
A viagem entre Lancaster e aterrar em Lisboa foi a confirmação de que hoje é mesmo o primeiro dia do resto da minha vida. O mundo já mudou
E hoje, enquanto acabava de empacotar o meu gabinete na Universidade de Lancaster, esta canção não me saía da cabeça. Entre centenas ping, ping, ping, ping de e-mails, mensagens, notícias, o Sérgio Godinho cantava para mim “a princípio é simples, anda-se sozinho… dá-se a volta ao medo e dá-se a volta ao mundo”. E a última coisa que eu precisava era de ter de empacotar o gabinete, mas temos um edifício novo à nossa espera, e a mudança tem que ser feita na data marcada porque já está paga. E enquanto os meus amigos e a minha família me perguntavam “a que horas é que vens?”, “já estás na estação?”, “já estás no comboio?”, “já estás no aeroporto?”’, eu empacotava o gabinete e ouvia o Sérgio Godinho na minha cabeça.
Fui para casa e tive que deixar tudo arrumado para uma longa ausência. Arrumei a casa para ausências prolongadas muitas vezes durante os últimos cinco anos, geralmente na altura do Natal e no verão. Sei qual é a rotina. Sei quanto tempo me leva. Mas hoje, por ter estado a empacotar o gabinete, foi tudo em versão condensada.
E enquanto arrumava tudo sentia que arrumava a minha vida dos últimos cinco anos e que hoje era, de novo, o primeiro dia do resto da minha vida. De uma vida que não sei como vai ser. Fui feliz em Lancaster. Mesmo muito feliz. Sem me ter acontecido nada de especial. Gostei de viver em Lancaster. Uma cidade universitária perdida no meio do nada. Gostei dos dias em que saía de casa e via as montanhas do Lake District ao fundo da minha rua. Do ar gelado da manhã com um céu azul e um sol amarelo clarinho. Gostei de viver numa cidade que me ajudou a perceber as cores de Turner. Que existem mesmo. Assim como o azul do céu de Lisboa existe para quem vive em Lisboa.
E a viagem entre Lancaster e aterrar em Lisboa foi a confirmação de que hoje é mesmo o primeiro dia do resto da minha vida. O mundo já mudou. Os cafés, os restaurantes, as lojas fechadas nas estações de comboio. Os cafés, os restaurantes, as lojas fechadas no aeroporto. Só pessoas com ar de estarem a partir. O tamanho das malas. As despedidas. A expressão da cara das pessoas. Os telefonemas. O comboio quase vazio. O aeroporto quase vazio. O avião menos de meio e só com portugueses. A quantidade de pessoas com máscara. O cheiro a álcool. Deixou de haver cheiro a pessoas (uma bênção em muitas circunstâncias, eu sei). Só cheira a álcool. Só cheira a desinfetante.
Estou quase a aterrar em Lisboa. O comandante está a falar. Na minha cabeça só oiço: Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida!