O médico João Silva atende o telefone com uma voz nitidamente cansada. Entrou no Centro de Saúde de Ílhavo às 8 da manhã, para cumprir um turno de 12 horas, mas esteve noutro “serviço” das 8 da noite às 3 da manhã: fez voluntariado no grupo que acabava de ser criado no Facebook pelas médicas Renata Aguiar e Sandra Cerdeira, para ajudar a aliviar as linhas da Saúde 24 e esclarecer as muitas dúvidas que os portugueses continuam a manifestar sobre como enfrentar esta pandemia.
O grupo COVID19 dúvidas respondidas por profissionais de saúde junta já 32 profissionais de saúde que, nos raros tempos livres de que dispõem, se disponibilizaram para dar resposta às questões de todos os que precisam de ajuda e/ou informação.
A ideia surgiu depois da reumatologista Renata Aguiar entrar de quarentena, no sábado passado. A sua amiga Sandra Cerdeira, interna de patologia clínica, estava já em isolamento social, com 31 semanas de gravidez, e ambas sentiam que, apesar de todas as condicionantes, teria de haver uma forma de poderem ajudar na “guerra” que se está a travar contra este coronavírus.
Sandra Cerdeira já tinha esclarecido algumas dúvidas nas publicações no Facebook de um grupo cívico de Aveiro e percebeu que fazia falta um grupo de médicos para combater outra guerra: a da desinformação, também ela viral nas redes sociais.
“Há coisas que vemos partilhadas e que não fazem sentido nenhum… Lavar as mãos com lixívia, por exemplo!”, explica ao telefone, fazendo notar que, além de não ser eficaz contra o coronavírus, pode ainda causar graves problemas de saúde a quem use esta “técnica”.
E como vê a Ordem dos Médicos este tipo de “aconselhamento médico”? Sandra Cerdeira explica que a maioria das questões que estes profissionais de saúde estão a esclarecer – além de médicos de várias especialidades há enfermeiros, farmacêuticos, bioquímicos, entre outros – são sobre cuidados básicos, na sua maioria constantes dos folhetos informativos divulgados pela Direção-Geral de Saúde. “As pessoas parecem ter dificuldade em procurar informação”, constata esta médica da Unidade de Saúde Local de Bragança. Além disso, frisa, “a classe médica tem o dever de estar disponível para apoiar a população, e é isso que queremos fazer, o melhor que podemos”.
Já sucedeu passar dos comentários públicos para mensagens privadas, quando entendeu que deveriam ser feitas perguntas mais específicas ou que os casos deveriam ser encaminhados para a Saúde 24.
Mas ao longo da manhã desta segunda-feira milhares de membros foram chegando ao grupo e os médicos voluntários cedo perceberam que muitos não pretendiam obter respostas, mas sim dar respostas… Uma das primeiras questões colocadas foi prontamente respondida por uma “cake designer” e, antes que um médico pudesse publicar o seu esclarecimento, já existiam inúmeros comentários sem qualquer sentido ou credibilidade.
Renata Aguiar tem procurado explicar que só profissionais de saúde devem responder, e que as respostas autorizadas pela administração do grupo partem de perfis com a indicação de uma estrela ou de um visto (quer isso dizer que são fidedignos).
“Este fórum surgiu por voluntariado de vários profissionais de saúde, aos quais muitos se foram juntando com o mesmo espírito de dever cívico e serviço público. Contudo, temos vindo a verificar um total desrespeito pelas regras, em que muitas pessoas de outras áreas tentam responder às questões de forma muitas vezes inadequada, duplicando o nosso trabalho ao ter de rastrear estas falsas informações para as corrigir”, lamenta Renata Aguiar.
Vitor Teixeira, um outro voluntário do grupo, investigador no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, também tenta sensibilizar os que ali chegam para que se abstenham de comentários: “Apenas especialistas DE SAÚDE devem responder, para assegurar que as pessoas que colocam questões sejam profissionalmente atendidas e com base sempre no melhor conhecimento científico e médico. Pf abstenham-se de comentários. Sei que a ideia de ajudar é sempre louvável, mas poderão a estar dar informações erradas ou contra-indicadas dado o historial clínico da pessoa. A ideia é ajudar! Estamos a combater o Covid, esta página não serve para o Co-vidizer!”
João Marques, marido da reumatologista Renata Aguiar, tem experiência na área da comunicação, sendo autor do canal de YouTube Minuto Saúde, e ajudou a criar a página no Facebook para estes profissionais de saúde. Tenta apoiar na gestão dos comentários, mas é uma tarefa hercúlea, que na segunda-feira estava a ser assumida também pela médica Sandra Cerdeira. “É impressionante o tempo que perdemos a excluir pessoas do grupo”, lamenta.
Todos os profissionais que têm estado a responder às centenas de perguntas já publicadas estão a dedicar tempo precioso do seu descanso em nome da causa pública. Bem sabemos que “de médico e de louco todos temos um pouco”, mas num cenário de pandemia como o que vivemos já vai sendo tempo de dar palavra a quem sabe – e deixar os “prognósticos” para o fim do jogo.