Fernanda não compra desodorizante há um ano, altura em que optou por um de alúmen de potássio que ainda dura. Hunter aparece com o pedal da bicicleta na mão e está furioso por ter inutilizado o seu meio de transporte por umas horas. Bruno, nascido no Sul do Brasil, ainda suspira pela carne que deixou de comer para não danificar mais o planeta. João compra quase tudo a granel, dispensando embalagens. Teresa veste-se nas feiras de trocas que ajuda a organizar. Pedro realizou um documentário de baixo impacto, que está prestes a estrear-se. João aproveita os fatos de surf que iriam para o lixo para criar outras peças.
Estas pessoas são de carne e osso. Aliás, sentaram-se connosco para falar de consumo consciente, com verdadeiro conhecimento de causa. Mas, em Portugal, há muitas mais que fazem a diferença – as que pegam em guarda-chuvas velhos e lhes dão vida em peças de roupa (R-Coat); as que trabalham no Impact Hub Lisbon, um acelerador de startups com consciência; as que vivem a caminho do desperdício zero, como Catarina Matos, da Mind the Trash, ou Ana Milhazes, que lançou o livro Vida Lixo Zero para nos ensinar a prescindir do acessório.
Estas pessoas são de carne e osso, repetimos, e têm vidas parecidas com as nossas. Só que decidiram não ficar de braços cruzados, a consumir desenfreadamente, assentes na lógica do usa-e-deita-fora. E com as suas ações conscientes, por mais pequenas ou locais que sejam, ajudam a travar o descalabro climático preconizado pelos cientistas. Ninguém acredita que o consumo, “o maior fenómeno da Humanidade”, “a alavanca para o progresso”, vá morrer – José António Rousseau, presidente do Fórum Consumo, nem sequer consegue visualizar a sua redução. O especialista prefere falar em racionalização, em equilíbrio da abundância, de forma a não se prejudicar o ambiente ou a saúde. “É errado analisar o futuro com as soluções do presente. Hoje, a maioria das pessoas viaja nos seus carros movidos a combustíveis fósseis, mas quando eles andarem a hidrogénio ou a baterias, acaba-se o problema da poluição. Alguém imagina que vamos todos viajar de veleiro?”
“É errado analisar o futuro com as soluções do presente. Hoje, a maioria das pessoas viaja nos seus carros movidos a combustíveis fósseis, mas quando eles andarem a hidrogénio ou a baterias, acaba-se o problema da poluição” José António Rousseau, presidente do Fórum Consumo
Se tivermos em conta os resultados do último relatório do Observatório do Consumo Consciente, criado pelo Fórum há quatro anos, nada indica que os portugueses estejam muito motivados para fazerem grandes mudanças. Salvo honrosas exceções, claro.
Um processo de longa duração
Bruno Lisboa, 31 anos, e João Kraeski, 28, não são portugueses, mas há um ano e meio escolheram Lisboa para viver, depois de terem largado tudo no Brasil e andarem de mochila às costas pelo mundo. Assentaram amarras na Penha de França e é a partir desse bairro lisboeta, que quer democratizar a sustentabilidade, que têm marcado posição em relação ao consumo. “Sentimos que esta cidade está pronta para evoluir”, diz Bruno, bebendo o seu cappuccino num café trendy da zona onde mora. Gerem ambos a Livre Para, uma produtora de eventos social good, responsável, entre outras coisas, pela Feira Sentidos. Nestes mercados, juntam uma mão-cheia de projetos com que se identificam e tentam passar a sua mensagem de consciência em workshops, para crianças. “Fazemo-lo sempre de forma didática, natural e orgânica para não causar ansiedades. Somos muito positivos”, expõe João. Mas estão conscientes de que se trata de uma jornada, um processo que pode levar gerações a ser terminado. Não será por isso que vão paralisar e deixar de dar passos nesse sentido. Os próximos começam já em janeiro, serão mensais e estarão relacionados com Lisboa, Capital Verde Europeia 2020 – ao nível da freguesia que tão bem os recebeu e às suas ideias.
Na sua rotina, este casal não compra roupa, só troca (apesar de João ter trabalho em moda no Brasil), prefere abastecer-se em lojas que vendem a granel para fazer menos lixo e desloca-se a pé ou de transportes públicos.
De trocas percebe Teresa Carvalheira, 27 anos, licenciada em Design de Moda, pois organiza várias feiras para intercâmbio de peças de vestuário. Quando começou, com um grupo que despertou para os exageros da indústria da moda, eram cerca de 30 pessoas a transacionar entre si. Hoje, podem ser entre 200 e 300, e estamos a falar apenas da região de Lisboa. Em 2016, a associação Fashion Revolution chegou a Portugal e Teresa aderiu imediatamente a este conceito de moda sustentável, com o objetivo de consciencializar as pessoas para a origem da roupa que vestem, a (má) qualidade dos materiais e também incentivá-las a fazerem reparações ou até a confecionarem algumas peças.
Ao mesmo tempo, tornou-se produtora do documentário É p’ra Amanhã, com uma equipa de mais cinco pessoas: Pedro Serra (realizador), Luís Costa (coordenador), Francesco Rocca (gestão), Edgar Rodrigues (design) e Verónica Silva (comunicação).
Televisão de baixo impacto
Em janeiro, estrear-se-á o episódio-piloto desta série documental produzida de forma sustentável, que quer mostrar as soluções para a crise climática já existentes no País. Depois de ter recebido um financiamento de 50 mil euros da União Europeia e do Instituto Camões, no âmbito do projeto No Panet B, da AMI, a equipa fez-se à estrada durante três meses. “Mapeámos cerca de 800 projetos de sustentabilidade e comprometimento com o futuro e acabámos por falar com cerca de 60, replicáveis no futuro”, lembra Teresa.
A rodagem foi consciente. Deslocaram-se ora de transportes, ora de bicicleta, ora de carro elétrico, quando as distâncias eram maiores, ignorando a logística complicada inerente aos materiais de filmagem. Na verdade, só uma vez tiveram de cancelar uma entrevista porque não conseguiram carregar a bateria do automóvel. Alimentaram-se localmente, procurando que os produtos fossem orgânicos, sem embalagens, e evitaram sempre o desperdício. Nos sítios onde ficavam a dormir – casas de amigos ou pousadas – partilharam recursos, como sabonetes e champôs sólidos. “Na verdade, muitos de nós já viajávamos leves e com este mindset”, esclarece.
O resultado desta peregrinação consciente são cinco episódios, divididos por temáticas como alimentação, energia e mobilidade, economia, política e educação. Os seis profissionais, que entretanto se tornaram amigos, sonham com o dia em que o seu trabalho chegue a um canal generalista, para que a mensagem atinja o maior número de pessoas. Mais tarde, ficará disponível nas redes sociais.
Os números da vergonha
O terceiro relatório do Observatório do Consumo Consciente, desenvolvido pela GFK e por professores da Lusófona e do IADE, não nos coloca muito bem na fotografia
Os números da vergonha
O terceiro relatório do Observatório do Consumo Consciente, desenvolvido pela GFK e por professores da Lusófona e do IADE, não nos coloca muito bem na fotografia
- Em 2018, os portugueses continuam preocupados com o ambiente, mas pioraram em muitos comportamentos
- Apenas 41,5% dos mil inquiridos estão dispostos a pagar mais por um produto com menos impacto ambiental
- Já são mais de 70% as pessoas que reutilizam sacos para ir às compras
- Só 30% olham para a origem dos produtos
- 76% compram fruta e legumes da época
- A bicicleta é o meio de transporte para apenas 12% da população nacional
- Quase 80% revelam preocupações ambientais
- Ainda há 37% de pessoas que bebem água engarrafada
- Os transportes públicos só são opção para 36% dos inquiridos
- Os painéis solares existem em apenas 2% das casas portuguesas
- 40% das pessoas deixam a água aberta enquanto lavam os dentes
- No que respeita ao aproveitamento da comida, ainda há quase 40% que não fazem nada para evitar o desperdício
- Metade da população nunca reciclou
A culpa é da economia linear
O consumo consciente na alimentação assenta em três grandes medidas que cada um pode adotar para a sua rotina, ajustando o estilo de vida a padrões mais sustentáveis: evitar o desperdício, preferir produtos locais e sazonais, e promover refeições de base vegetal. “Nenhuma é suficiente e são todas necessárias”, garante João Graça, psicólogo social, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS), da equipa que coordenou o Grande Inquérito de Sustentabilidade de 2018, com enfoque na alimentação.
Se há pessoa que tem feito de tudo para evitar o desperdício alimentar na restauração e nos supermercados é o norte-americano Hunter Halder, fundador da Refood, que hoje tem 20 núcleos em todo o País e conta com a ajuda de 3 500 voluntários. Quando começou, em 2011, esta ideia de ir buscar o que os restaurantes deitavam ao lixo para dar a quem não tinha o que comer surgiu como revolucionária. Mas acabou por ter caráter didático. “Hoje, já há muitos donos que fazem contas ao que sobra e adaptam-se melhor ao que os clientes realmente consomem”, conta.
“O que está a matar o nosso planeta é a economia linear, em que as empresas ganham dinheiro sem qualquer consciência ambiental, assente no princípio do produzo, vendo, uso e deito fora.” A Refood funciona ao contrário, numa lógica circular e de boa vontade, para prevenir, reutilizar e evitar o lixo.
Há pouco mais de um mês, a aplicação To Good to Go chegou a Portugal e aliou-se a esta associação. Madalena Rugeroni, 28 anos, responsável pela empresa que existe em 12 países, revela que já são 36 mil os utilizadores e 220 restaurantes, cafés e supermercados aderentes. Neste caso, as pessoas podem encomendar uma caixa mágica (porque o seu conteúdo é sempre surpresa) composta pelo que sobrou naquele dia, a um preço três vezes inferior ao seu valor real. “Neste momento, ao nível global, esta aplicação salva uma refeição por segundo”, assegura. Mas isso só depende da consciência de cada um, que varia muito.
Comprar e doar ao mesmo tempo
No estudo do ICS, que envolveu 1 600 pessoas, verificou-se que havia clivagens de acordo com a idade, meio, sexo e escolaridade: jovens, urbanos, do sexo feminino e com mais escolaridade são os que mostraram maior consciência na hora de comer. “Sabemos que para mudar é preciso motivação, oportunidade e capacidade; por isso a maioria dos inquiridos responde que está predisposto a fazer alterações, mas depois não age.” A equipa de investigadores também realça o aumento das orientações ecocêntricas, em que se está convicto de que o progresso deve estar em aliança com a Natureza e não contra ela. Registe-se que o impacto da nossa alimentação será tanto maior quanto maior for o impacto da produção e não tanto da distribuição. Quer isto dizer que um produto de origem animal é sempre menos eficiente do que um vegetal, mesmo que este venha de mais longe. Se restarem dúvidas quanto a isto, pode recorrer-se à calculadora que o ICS adaptou e que está disponível em sustainmeals.org.
Enquanto nos leva por caminhos de terra batida até ao Guincho, João Lourenço, 30 anos, vai apanhando todo o lixo com que se cruza. E, entretanto, conta-nos que tem um site em que comercializa equipamentos e produtos ecológicos para atividades ao ar livre, sustentáveis, reciclados e, por isso, de pegada ambiental reduzida. Ao mesmo tempo, anda de escola em escola a pedir fatos de surf velhos para depois, com a ajuda de uma costureira, transformá-los noutros produtos. Por cada compra feita na loja Guincho Outdoor, há um euro que vai para quatro associações.
É a mesma lógica de dar um clique para ajudar que está na base da Giving Tuesday, que acontece sempre na primeira terça-feira de dezembro, precisamente a seguir à Black Friday. “Depois de uma semana de grande consumo, em que se fica intoxicado com tantas compras, podemos fazer um detox na terça seguinte, mudando o verbo, a ação e a intenção”, esclarece Fernanda Freitas, 47 anos, madrinha da iniciativa, que chegou agora a Portugal. Na plataforma online, há uma lista com as associações que fazem parte deste movimento para que os interessados em doar escolham quem querem ajudar.
A consciência da jornalista e fundadora da associação Nuvem Vitória, destinada a ler histórias a crianças internadas, não se esgota neste apadrinhamento. Na altura do Natal, por exemplo, gosta de dar presentes solidários ou de empresas responsáveis, mas no resto do ano também se preocupa em comprar nacional e local, sem embalagens, e em manter o seu armário-cápsula composto por um conjunto minimal de peças básicas. “São pequeninas coisas, eu sei, mas que podem marcar pela positiva.” Pequeninas, mas grandes.