O atual surto de gripe está longe de poder ser equiparado a outras crises de saúde públicas mundiais, mas preocupa especialmente as autoridades que há muito tentam antecipar a génese de uma nova pandemia. Em mais de 100 anos, apenas foram registadas em quatro ocasiões (1918, 1957, 1968 e 2009), mas a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem alertado para a natureza cíclica destes fenómenos e diz esperar, a qualquer momento, o eclodir de uma nova vaga pandémica.
O coronavírus que esteve na origem do surto de SARS (Síndrome Respiratório Agudo Grave) em 2003, e que matou 778 pessoas, foi um dos vírus identificados recentemente pela OMS como causa provável de uma futura epidemia.
Ainda não é claro se este novo coronavírus será uma mutação do coronavírus da SARS, que passou para os humanos a partir de um animal selvagem, a civeta, que é uma iguaria no Sul da China (zona onde fica Wuhan), mas os investigadores confirmaram já que teve um percurso semelhante. Sabe-se que teve como hospedeiro inicial um morcego mas foi transmitido às pessoas através de outro animal selvagem, ainda desconhecido, que era vendido no mercado de animais vivos de Huanan, em Wuhan.
Uma coisa é certa: estes mercados, onde se vendem desde galinhas a serpentes, com animais e vendedores a viverem praticamente juntos em pequenos espaços, com pouca ou nenhuma higiene, são locais propícios ao desenvolvimento de novos vírus, e à sua passagem de hospedeiro em hospedeiro.
Um artigo da revista científica Lancet analisou as diferentes formas como esses “saltos” para novos hospedeiros ocorrem – e oportunidades não faltam. Nestes mercados, explica-se, “as pessoas têm contacto com a flora microbial dos animais ao comprá-los vivos para criar em casa, ou para colecioná-los, e também durante o transporte, venda, abate, preparação e consumo”.
O atual coronavírus começou por afetar sete vendedores do mercado de Huanan, no final de dezembro, e daí espalhou-se rapidamente para outras zonas da China e do mundo.
Como explica o ex-diretor geral de Saúde Francisco George, num estudo sobre a ecologia do influenza, as aves são sempre o seu reservatório natural. “Todos os vírus da gripe têm nas aves a forma de persistirem na natureza em equilíbrio com ela. É das aves que o vírus “salta” para outros hospedeiros, com “as estruturas antigénica e genética do vírus em constante variação”.
Depois, “dois mecanismos distintos podem estar na origem de um processo pandémico: a mutação adaptativa (que aconteceu em 1918), ou a recombinação genética, que esteve na origem das pandemias de 1957 e 1968”, explica.
A gripe foi pela primeira vez descrita por Hipócrates, 412 anos a.C. mas a sua natureza viral só foi demonstrada em 1933 e há ainda muito por descobrir sobre a forma de a combater, sobretudo nas suas formas mais letais.
Outro fator comum nas maiores epidemias de gripe da História é a origem: a China. Não apenas de gripe, mas de outras pandemias mundiais, como a peste bubónica, que criava sintomas semelhantes aos da gripe e chegou à Europa em 1343 pela rota da seda, tendo causado a morte de 75 milhões de pessoas – cerca de 15% da população mundial à época.
A mesma bactéria que causava a peste bubónica (Yersinia pestis) era também responsável pela “peste pneumónica”, quando o ponto de entrada no organismo humano eram os pulmões, em vez dos gânglios (bubo, em grego). A gripe de 1918 foi largamente designada como “peste”, ou simplesmente penumónica, pelas lembranças que ainda existiam de outras vagas de grande mortandade.
“A China é o país é o que mais contribui para que surjam e se espalhem doenças infecciosas pelo mundo sobretudo pelo tamanho da sua população”, explica-se noutro artigo da Lancet. Escrito em conjunto por investigadores chineses e americanos, analisa as vagas de fome no país que levaram ao consumo de qualquer tipo de animal, além de ser um país onde, até aos dias de hoje, a criação de animais é feita quase em convivência com as famílias, principalmente no que diz respeito a porcos e aves.
Além disso, há um grande contacto da população com aves migradoras transcontinentais, como os patos, que procuram alimento em zonas aquáticas ou com muita irrigação, como é o caso dos arrozais, onde há sempre pessoas a trabalhar.
Pandemias de Gripe
- 1918 | Gripe Espanhola | 50 a 100 milhões de mortes
A violência da chamada “Gripe Espanhola” é atribuída ao aparecimento do vírus da gripe subtipo A (H1N1) de origem aviário que, por mutação adaptativa, adquiriu a capacidade de se transmitir pessoa a pessoa.
Ao contrário do que a sua designação sugere, não teve origem em Espanha. Mas como o país não entrou na I Guerra, as notícias não eram censuradas. A taxa de mortalidade era assustadora e o próprio rei morreu com a “pneumónica”, pelo que o mundo acabou por saber da existência da pandemia pelos jornalistas espanhóis. Além da sua agressividade, ao contrário do que é habitual foram os adultos jovens os grupos etários mais afectados por esta gripe. Em Portugal, onde a epidemia chegou em maio de 1918, só nos primeiros seis meses provocou 60.474 mortes. A teoria de que este H1N1 teve origem na China ganhou solidez em 1993, com os estudos de Claude Hannoun, a maior autoridade mundial na gripe de 1918, do Instituto Pasteur, e depois complementados em 2014 com os artigos do historiador Mark Humphries, sobre a mobilização de 96 mil chineses para a I Guerra, verdadeira “carne para canhão” nas frentes de batalha dos Aliados em França, como se explica num artigo na National Geographic. Estes homens foram recrutados em 1917 e transportados em navios e comboios, em vagões e contentores fechados, tendo havido pelo menos 3 mil mortes por gripe entre eles, durante a viagem. Pouco depois surgiram os primeiros casos de infecção em França, entre militares norte-americanos. O fim da guerra, acredita-se, foi “apressado” com o avanço da pandemia, pois nenhum exército tinha já capacidade para suportar tantos milhares de baixas. Mais de 50 mil soldados americanos morreram na Europa devido à gripe – cerca de metade do total de baixas registadas durante toda a I Guerra.
- 1957-58 | Gripe Asiática | 2 a 4 milhões de mortos
A segunda pandemia do século XX foi provocada por um vírus influenza A do subtipo H2N2 que passou para os humanos a partir de porcos, na China. Foi especialmente mortífera para as crianças do sudoeste asiático. - 1968-69 | Gripe de Hong Kong | 1 milhão de mortos
Provocada pelo vírus H3N2, que ainda circula, supõe-se que teve uma taxa de mortalidade mais baixa por ter semelhanças genéticas com a gripe asiática, havendo já alguma imunidade na população. - 2009 | Gripe A | 200 mil mortos
O vírus H1N1 surgido em 2009 é geneticamente uma combinação dos vírus da influenza suína, aviária e humana. Começou por ser noticiada como “gripe suína”, com origem no México, mas a OMS alterou a designação para Gripe A. Fez mais vítimas na Argentina, Brasil e México, onde o número de mortes foi quase 20 vezes maior do que no resto do mundo, e 62 a 85% dos óbitos verificaram-se em pessoas com menos de 65 anos. Em Portugal, foi accionado um plano de contenção eficaz e, segundo uma análise da Direção-Geral de Saúde, verificaram-se 124 mortes. A indústria farmacêutica desenvolveu rapidamente uma vacina, disponibilizada em massa pelos governos ocidentais. Portugal encomendou seis milhões de vacinas mas acabou por comprar apenas dois milhões de doses por 15 milhões de euros, tendo administrado 700 mil doses – as restantes foram destruídas.
A Gripe A é hoje uma das formas de gripe comuns em circulação e não obriga a tratamento especial, embora possa ser mais agressivo que outros sub-tipos de vírus da gripe.
Surtos de âmbito mundial e epidemias
- 1997 | Gripe das Aves | 282 mortos
As infecções humanas pelo vírus A (H5N1), semelhante ao que provocou a pandemia de 1918, foram pela primeira vez confirmadas em 18 doentes residentes em Hong Kong (6 dos quais morreram). A rápida decisão de eliminar, em três dias, um milhão e meio de aves revelou-se essencial no controlo da situação. - 2003 | SARS | 778 mortos
O síndrome Respiratório Agudo Grave (SARS, na sigla inglesa) foi causado pela infeção com o coronavírus SARS-CoV, com origem nos mercados de animais vivos da China, em 2002: passou da civeta para os humanos. Em 2012 foi detectada na Arábia Saudita uma nova variante deste coronavírus, responsável pela Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS), que causou cerca de 600 mortes.