Que fique bem claro que é de liberdade que se fala quando se fala de roupa sem género. Quem o diz é Gabriela Pinheiro, stylist e responsável de moda da revista Activa, e não está sozinha nesta sua certeza. Nas lojas, desde sempre que escolhe peças de homem para mulher e vice-versa. E, se muitas vezes não o diz, é só por haver quem não goste da ideia. “No corpo ninguém percebe, acho um piadão. Há tantos homens que ficam melhor com cortes femininos e vice-versa”, sabe de cor.
Completamente a favor de não haver distinção de género na roupa, Gabriela Pinheiro agradece que tenha havido necessidade de isso mesmo ser dito ao mundo. “É uma tendência e está a crescer, de certeza que vão aparecer mais marcas sem distinção de género”, antecipa. “Eu já o fazia de uma forma livre, mas agora faço-o de uma forma mais acentuada porque sou bem aceite.”
O mesmo faz David Motta, consultor e produtor de moda, que, ainda há pouco tempo, teria achado “maravilhoso” se metade das mulheres que foram aos Globos de Ouro tivesse ido de smoking de homem e eles de saia comprida. “Tenho dificuldade em olhar para a roupa sem género como tendência, porque é o que respiro, o que vivo desde sempre”, justifica.
Aos dois ou três anos, David Motta já surripiava roupa à mãe. “E queria sempre a mochila cor-de-rosa”, ri-se. Depois de estudar e estagiar em Nova Iorque, viveu e trabalhou em Londres, onde rapidamente percebeu que os cartuchos do sem género já estavam queimados. “Se propunha um homem de saia, umas 20% das pessoas já torciam o nariz. O contrário então… Lembre-se de que a Coco Chanel, nos anos 20, pôs as mulheres com roupa de homem.”
Hoje, as mulheres podem ir de fato para uma reunião, sem problemas, mas se um homem de negócios fosse com um vestido de cocktail, não seria levado a sério. “Ainda, mas talvez no futuro. Sempre achei que, depois da homossexualidade, este ia ser o último tabu a ser quebrado”, aventa David Motta, que admite viver numa bolha. “Dou-me com artistas e trabalho em moda, não tenho contacto com o mundo real, mas tenho amigos que me pedem para se vestirem em minha casa antes de saírem à noite. Não se atrevem a andar de transportes públicos como querem.” Basta ver os “incêndios” que uma saia provocou nas redes sociais – no caso, a saia que o assessor do partido Livre levou para a estreia na Assembleia da República.
De início, era o neutro
Chegados aqui, avise-se que em 2019 a palavra “unissexo” é antiquada e que até “andrógeno” pode ser considerada rétro. Se temos visto, nos últimos tempos, criadores a chamarem “unissexo” às suas coleções, é só porque querem chegar aos consumidores de todas as idades. Mesmo quando o Conselho de Designers de Moda da América, que organiza a Semana de Moda de Nova Iorque, anunciou, em fevereiro de 2018, a criação de uma nova categoria, escolheu a expressão “não binário”.
Uma pessoa não binária é alguém que não se identifica exclusivamente nem com o género feminino nem com o masculino. No caso da roupa, falamos de peças que tanto podem ser usadas por mulheres como por homens. A tendência nunca esteve tão forte como agora, talvez porque nunca como agora os géneros tenham estado tão fluidos.
Se recuarmos a 2015, ouvimos Ken Downing, então diretor de moda do grupo Neiman Marcus, falar numa “mudança sísmica”, notando: “A aceitação cada vez maior de um estilo sem fronteiras reflete a maneira como os jovens se vestem.” Certo é que, no ano seguinte, a tendência chegava à chamada fast fashion, com a Zara a lançar a Ungendered, uma coleção-cápsula assumidamente sem género.
Era uma coleção pequena e especial. Se olhássemos agora para as suas calças, t-shirts e sweatshirts, reparávamos que tinham todas cortes fluidos e largos, e cores neutras, como o branco, o preto, o cinzento e o bege. Mas, hoje, já não é só de neutralidade que falamos quando falamos de moda sem género. São peças desenhadas a pensar em pessoas e não apenas num determinado sexo.
Foi o que fez Hedi Slimane, em setembro de 2018, na sua primeira coleção para a Celine – na apresentação, os jornalistas foram apenas informados de que todos os “looks de homem” seriam disponibilizados para mulheres. “Quando se trata de moda, gostamos de dizer a nós próprios que já foi tudo feito, no entanto este momento é decididamente inovador”, escreveu na altura o crítico de moda da Vogue britânica Anders Christian Madsen. “E se isso significa que posso ter acesso, por exemplo, à moda feminina Valentino”, acrescentou, “deixem a evolução começar”.
E a evolução começou mesmo. Em muitos desfiles da Semana de Moda de Nova Iorque que anunciou as tendências outono/inverno de 2019 (a estação em que estamos), misturaram-se características que antes seriam apenas femininas ou masculinas, mostrando que o espectro do género é amplo também na roupa.
A questão do género tornou-se, ela própria, um tema central do lançamento de Mutiny, o primeiro perfume de John Galliano para a Maison Margiela. Durante a apresentação, foram projetados filmes em que as modelos Teddy Quinlivan e Hanne Gaby Odiele refletiam sobre as suas experiências e visões do mundo. A primeira é transgénero e a segunda nasceu intersexo e começou por ser educada como rapaz. Pouco depois, caberia ao modelo e artista Finnigan Barrett, também transgénero, abrir o desfile das criações de Galliano. E, dali para a frente, a passerelle foi percorrida por homens de vestido e saltos altos e mulheres com fatos de corte masculino.
Negócios como sempre?
Não se esperam para já homens a sair de vestido e saltos altos das lojas da H&M, em Portugal, mas a partir desta semana a cadeia sueca tem uma coleção de Giambattista Valli com peças, padrões e tecidos pedidos emprestados ao guarda-roupa feminino. Nesta sua estreia a criar para homens, o designer italiano usou flores, lantejoulas e cor-de-rosa. Ao Observador, Giambattista Valli lembrou que sempre criou peças para personagens, independentemente do seu género. “A liberdade de expressão é o verdadeiro luxo”, defendeu.
No verão de 2018, o designer português Diogo Miranda fez o contrário: pegou em peças marcadamente masculinas e deu-lhes uma volta para serem vestidas por mulheres de saltos altos. Ao mesmo tempo, utilizou elementos femininos em peças pensadas para serem usadas por homens. O resultado foi uma coleção sem género e o feedback, muito positivo, conta. “Andava a pensar nela há um ano, porque já tinha clientes minhas a pedirem-me camisas e fatos de homem.”
O interesse existe, já percebeu quem vive da moda. Em janeiro deste ano, uma jornalista dinamarquesa foi de Copenhaga a Helsínquia para conhecer a secção que o gigante Stockmann acabara de reservar para a roupa de género neutro. Nicoline Larsen, então colaboradora da Vice, queria saber se o maior armazém finlandês, fundado há mais de 150 anos, cumpria a sua promessa de uma “revolução do sem género”. Mil e oitocentos quilómetros depois, regressava um pouco desapontada.
A secção “género neutro”, simbolicamente situada no piso 1.5, entre os da roupa para homens e para mulheres, resumia-se a cerca de nove metros quadrados e fora pensada para durar apenas um mês. E a responsável pela comunicação dir-lhe-ia que, embora os consumidores do Stockmann sejam progressistas, tinham querido fazer um teste antes de tornarem o conceito permanente. “Baseando-nos no feedback que tivemos”, acrescentaria Anna Salmi, “não imagino uma secção separada, mas algo que percorra todo o espaço”.
Por essa altura, já o pinkwashing alarm (do inglês pink, cor-de-rosa, e whitewash, branquear ou encobrir) tinha soado na cabeça de Nicoline Larsen. E se tudo não passasse de uma estratégia de marketing do grande armazém para se apresentar como um simpatizante LGBTI, apesar de na verdade serem negócios como sempre sob uma camada de cor-de-rosa? Afinal, vira apenas uma peça que desafiava as normas de género – uma camisola de gola alta prateada com os tamanhos de homem e mulher na etiqueta. “A impressão com que fiquei”, escreve, “é a de que a maioria das peças é só roupa de homem que seria socialmente aceitável eu usar”.
Antes de sair do Stockmann, a jornalista havia de experimentar um dos looks de género neutro à venda – uma saia escocesa preta, uma camisa branca abotoada até acima e um blusão de aviador preto – e sentiu-se ridícula porque não costuma usar saias. Voltou, então, a vestir a roupa que trazia: calças largas pretas, t-shirt azul e camisa de veludo enrugada. Imaginamo-la a rir-se quando escreveu: “Bastante unissexo, na verdade.”
Logo de pequenos
“São telas em branco” dizem na Mattel sobre os seis bonecos da nova coleção Creatable World, vendidos com várias roupas, acessórios e perucas. “Os brinquedos são um reflexo da cultura e, como o mundo continua a comemorar o impacto positivo da inclusão, sentimos que estava na altura de criar uma linha sem rótulos”, disse Kim Culmone, responsável pelo design das Barbies e das bonecas de moda da empresa. Lançada em outubro nos Estados Unidos da América, a coleção foi mal recebida pelos mais conservadores. Por cá, depois da polémica provocada, em março, pela coleção infantil sem género da Zippy, é esperar para ver.