“Estou a juntar fundos para fazer uma cirurgia bariátrica, fundamental para tratar a minha obesidade. Quero melhorar a minha saúde e qualidade de vida”, escreve Catarina Barata na apresentação do seu site pessoal. O objetivo é reunir oito mil euros, até à próxima segunda-feira, 9 de setembro, um valor que paga a cirurgia, o internamento e as consultas. A operação de remoção de parte do estômago está marcada para 3 de outubro e, com ou sem a ajuda do crowdfunding (até agora angariou €3 744), Catarina Barata, 42 anos, está determinada a tratar o seu problema “por uma questão de prevenção”.
Em maio, numa viagem à Índia, conheceu outra portuguesa que tinha feito a cirurgia e viu-a cheia de energia. Catarina ficou entusiasmada com o exemplo e, depois de uma consulta com a médica de família, passou para um cirurgião especialista que a considerou uma boa candidata, por não ter outras complicações, como diabetes ou problemas de coração, que possam agravar a situação de excesso de peso. Catarina quer fazer a cirurgia num hospital privado, sem qualquer tipo de comparticipação do Estado, para não esperar cerca de cinco anos no Serviço Nacional de Saúde. Se não angariar o dinheiro todo, que tem sido doado, principalmente, por familiares e amigos, fará um crédito pessoal numa instituição bancária.
A campanha de crowdfunding nasceu da necessidade financeira, optando por fazê-la num site pessoal, já que considera que “as plataformas estão mais preparadas para projetos empresariais”. Primeiro, Catarina estava relutante em partilhar uma questão tão íntima, mas depois inverteu o pensamento e decidiu tornar-se um exemplo para outros obesos. “Quero perder o peso que precisar para o meu corpo ficar saudável. Quero ganhar energia, mobilidade e resistência.”
Portugueses pouco empreendedores
Nada como uma boa história para alcançar e até superar o objetivo final de uma campanha de crowdfunding, algo que já se faz há vários anos, mas a que não dávamos este nome. Em Nova Iorque, o pedestal onde está assente a Estátua da Liberdade foi pago por 160 mil doadores na década de 1880; a construção do primeiro Estádio da Luz, em Lisboa, também contou com beneméritos anónimos; angariar fundos para melhorar a igreja de uma aldeia ou fazer uma “vaquinha” para comprar um presente de aniversário a um colega sempre fizeram parte das nossas boas ações. O uso das redes sociais e da internet veio permitir difundir a mensagem por mais pessoas, de forma mais eficiente. Podemos dizer que a revolução digital terá começado em 2000, quando a advogada Zarine Kharas e a empresária Anne-Marie Huby, da ONG Médicos Sem Fronteiras, fundaram a JustGiving, uma plataforma que permitia que qualquer pessoa arrecadasse dinheiro para causas solidárias.
Há oito anos, quando Pedro Domingos, 39 anos, e Yoann Nesme, 38, criaram a PPL (acrónimo da palavra inglesa people), inspirados na plataforma Kickstarter, pensaram trabalhar apenas projetos que envolvessem uma boa dose de empreendedorismo e criatividade, para não confundir crowdfunding com caridade. No entanto, rapidamente perceberam que, em Portugal, não há assim tanto empreendedorismo a nível das inovações tecnológicas, uma vez que este passa mais por querer montar um pequeno negócio.
Poucos anos depois começaram a aceitar campanhas de causas sociais. E no top 3 das mais bem-sucedidas de sempre, em todas as categorias, está a atípica Greve Cirúrgica (de apoio à greve dos enfermeiros) e Salvar vidas não é um crime (para ajudar migrantes no Mediterrâneo). Desde 2011, já angariaram mais de quatro milhões de euros (€4 283 350), em 1 084 campanhas financiadas (46% de taxa de sucesso). Na mais antiga plataforma de crowdfunding portuguesa, o “passa-a-palavra” tem sido a melhor estratégia. E, por enquanto, ainda não é uma alternativa ao crédito bancário. “Trabalhamos com projetos mais pequenos, em que há recompensa e reembolso, e em que as pessoas querem formar uma comunidade ou testar o mercado”, explica Pedro Domingos.
Com a concorrência mais direta das redes sociais – o Facebook tem também meios de pagamento –, no futuro querem experimentar o “modelo recorrente”, em que o indivíduo pode ter um apoio automático mensal (para instituições de solidariedade social, por exemplo, ou para criativos, como faz a plataforma Patreon, em que os patronos de youtubers são os primeiros a aceder aos seus conteúdos). “Ainda há espaço para crescer em Portugal, acompanhando sempre a evolução dos meios de pagamento. Imaginemos que as bitcoins ficam muito populares… Vamos ter de adaptar o nosso site”, acrescenta Yoann Nesme.
Das extravagâncias aos estudos
Desde quando pedir dinheiro a estranhos deixou de ser embaraçoso? Elizabeth Gerber, professora da Universidade Northwestern, no Illinois, argumenta que a mudança passa pelo progresso tecnológico: a facilidade crescente com que podemos transferir dinheiro online em segurança e a capacidade que temos de encontrar qualquer pessoa na internet. Para Pedro Domingos, a facilidade em transferir dinheiro online “talvez não tenha sido a principal razão do sucesso, mas ajuda. A confiança é melhor agora do que há oito anos. Em 2011 já era seguro, mas tivemos de acrescentar o multibanco ao PayPal e ao cartão de crédito como meio de pagamento”. A pesquisa de Elizabeth Gerber descobriu que as pessoas gostam de fazer doações online para instituições de caridade, porque o seu nome ganha visibilidade ao estar associado a uma causa.
A GoFundMe, a maior plataforma de crowdfunding mundial, já arrecadou mais de quatro mil milhões de euros desde o seu lançamento em 2010. Apesar de um terço de todos os donativos ir para pedidos relacionados com cuidados de saúde, também há lugar para extravagâncias: são mais de cinco mil as pessoas que pedem dinheiro para comprar uma Xbox e outros tantos para AirPods; e quase 200 pessoas querem comprar uma mala Louis Vuitton com o dinheiro arrecadado.
Pedro Lopes não se encontra neste lote de “futilidades”. O gadget que pretende adquirir é fundamental para trabalhar. No final de julho, em plena luz do dia, um larápio partiu-lhe o vidro do carro estacionado na Rua do Mirante, no Porto, e levou-lhe o drone Fly More Combo, três baterias, comando, cabos, filtros para a câmara, carregadores de ficha e isqueiro e hélices – todo o seu material de trabalho muito bem escondido entre a bagageira e o banco. Com um mestrado em Design e a trabalhar na Invicta, onde montou o Cachupa Creative Studio, Pedro Lopes, 29 anos, move-se entre a impressão 3D e as imagens captadas por drone. Até anda a magicar uma maneira de ajudar arquitetos e engenheiros ao juntar estas duas tecnologias. A decorrer até 11 de setembro, na campanha O Resgate do Soldado Mavic, Pedro pede €1 299 para o drone, mais €132 para a comissão a pagar à PPL. São várias as recompensas que promete aos doadores, desde o mais sincero agradecimento público, a uma fotografia tirada com drone, uma lembrança em 3D ou descontos em serviços, como o filme do casamento.
São também muitos os pedidos de dinheiro para dar seguimento aos estudos, principalmente universitários. António Liberato, 21 anos, já se mudou de Torres Novas para Amesterdão. Na cidade holandesa, o jovem foi um dos 22 selecionados para fazerem o bacharelato em dança contemporânea. Para iniciar esta nova etapa de quatro anos – e porque não queria ser um encargo para a família com poucas possibilidades –, António criou uma campanha de crowdfunding na qual pediu mil euros para fazer face às primeiras despesas na Holanda: seguro de saúde obrigatório e primeiros meses de renda de casa. Angariou €1 245. “Este ano, a universidade oferece metade das propinas, para ser mais fácil a adaptação, mas nos anos seguintes os preços serão muito mais caros. Preciso de poupar muito”, explica. Entretanto, está à procura de trabalho e, no início de 2020, vai candidatar-se a algumas bolsas.
Livros de autor
Perto de 40% das campanhas propostas à PPL têm uma forte componente cultural, desde gravar um disco, produzir um espetáculo, uma curta-metragem ou até editar um livro. Chega às livrarias esta quinta-feira, 5 de setembro, O Marajá Faz Anos, o segundo volume da trilogia dedicada às viagens de Jorge Vassallo à Índia. Bisneto do último governador-geral de Goa, Damão e Diu, desde pequenino que o autor do blogue Fui Dar Uma Volta ouvia contar histórias deste país, onde já foi mais de uma dezena de vezes. Para conseguir financiamento para a produção do livro, tal como já tinha feito no primeiro volume, De Vespa na Índia, Jorge Vassallo, 42 anos, recorreu a uma campanha de crowdfunding. Pediu dez mil euros e superou o objetivo em €401, com o apoio de 321 pessoas.
Com uma boa base de contactos nas redes sociais (10 mil seguidores no Instagram e 18 mil no Facebook), comunicar o livro não seria um problema para o escritor e viajante profissional. Jorge Vassallo já trabalhou com editoras, pelo processo mais tradicional, mas prefere a liberdade de se envolver na produção do livro, em todo o projeto gráfico. Um desafio para quem vem da área do marketing e da publicidade. Para não ficar muito colado apenas às aventuras por terras indianas, Jorge Vassallo poderá editar outras obras antes de concretizar o terceiro volume da trilogia. “Não posso fazer crowdfunding por tudo e por nada. Se estiver sempre a pedir dinheiro, estou a cansar as pessoas, que depois deixam de acreditar no modelo. Quem o faz tem de ter a noção de que quem investe espera sempre receber algo.”
A campanha de Maria Miguel Pereira, conhecida como Mami, é muito clara: €20 em troca de um livro. Há 11 anos começou a viajar e, nos últimos cinco, passou também a escrever crónicas semanais na imprensa digital. “Só escrevo quando estou a viajar, durante o inverno”, explica. Aos 36 anos, sempre teve profissões – como copywriter, escritora e editora freelancer – que lhe permitiram trabalhar à distância, tornando-a uma verdadeira nómada digital. Recentemente, pensou compilar em livro as 93 crónicas já publicadas e percebeu que, se fizesse uma campanha de crowdfunding para criar uma edição de autor, ganharia mais dinheiro e liberdade criativa do que se trabalhasse com uma editora.
Com as crónicas já escritas, restavam-lhe os custos da revisão de texto, paginação, design da capa e impressão. Gastará entre cinco e seis euros na feitura de cada exemplar que, se fosse parar ao circuito comum das livrarias, seguramente, iria para a secção de viagens. Sem estar alocada a qualquer plataforma – “Quantos menos intermediários tiver entre mim e os leitores, menos dinheiro perco”, explica – a campanha decorre até outubro. Mesmo que não consiga cumprir o objetivo, Mami irá pagar do seu bolso o resto da edição e depois venderá os livros através da rede de quase 11 mil seguidores no Instagram.
Por esta altura, Mami começa à procura de voos baratos. “Gasto menos dinheiro a viajar do que a viver cá no inverno. O valor do prato de arroz não está no arroz, está no prato em que se come”, conclui.
com Catarina Frazão