Pouco mais de dois meses depois de ter assumido, em setembro do ano passado, o cargo de arquivista e bibliotecário da Santa Sé, Tolentino Mendonça recebeu a visita pessoal do Papa. Fora a primeira vez que Francisco visitara aquele espaço do Vaticano, e o gesto era já um sinal do apreço e dos planos que o sumo pontífice tinha pensado e reservado para o poeta – que no dia 5 de outubro se tornará um dos novos 13 cardeais e um dos 10 com direito a voto na sucessão do atual líder da Igreja Católica.
Naquele encontro a 4 dezembro, na biblioteca, Tolentino escolheu algumas peças para mostrar ao Papa, entre elas umas moedas que aparecem citadas nos Evangelhos. “Ele deteve-se especialmente em duas moedinhas, aquelas em que se diz que a viúva pobre ofereceu tudo quanto tinha ao tesouro do Templo. Jesus disse que ela ofereceu mais do que todos os outros”, recordou o bibliotecário numa entrevista à Agência Ecclesia, lembrando que, no fim, o Papa disse ter gostado muito de ver aquelas moedas, “porque uma das suas curiosidades é, quando chegar ao Céu, conhecer aquela viúva que para ele é uma das personagens mais simpáticas dos Evangelhos”.
A Bíblia e a forma como o sacerdote português a encara e divulga, conseguindo dialogar com o mundo da cultura, da política, entre outros, foi um dos aspetos que terão despertado a atenção do Papa que, em pouco mais de um ano, fez Tolentino passar de capelão da Capela do Rato, na capital, e de vice-reitor da Universidade Católica de Lisboa a um dos homens que o aconselha. A nomeação papal tornou-o o 5º português com assento no Colégio Cardinalício e o 3º com poder de voto.
A notícia deu força e prestígio à Igreja Católica portuguesa, que sublinha a situação inédita. “É um momento único”, diz à VISÃO Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, falando da presença nacional nos órgãos de apoio ao Papa. “Não é comum. O normal é existir um único cardeal”, acrescenta, explicando que estas nomeações podem ser “vistas de duas maneiras”: ou como um “reconhecimento da Igreja portuguesa” ou como constatação de que “há bispos com uma vertente intelectual e cultural que podem prestar auxílio ao Papa”.
Mas se a nomeação de D. Manuel Clemente, em 2015, era esperada por existir a tradição de o patriarca de Lisboa ser sempre elevado a cardeal, a de António Marto, bispo de Leiria-Fátima, e agora a de Tolentino, 53 anos, foram mais surpreendentes. “Admiro, da parte do Papa, esta atenção para com Portugal. É um País pequeno e ele já nomeou três cardeais, isso é muito significativo”, referiu numa entrevista, também à Ecclesia, António Marto. Este bispo é, aliás, considerado atualmente o português com mais poder no Vaticano. Foi nomeado cardeal em junho de 2018, depois de ter tido um contacto mais direto com o sumo pontífice quando o recebeu na Cova da Iria, em 2017. “Ao despedirem-se, D. António Marto disse ao Papa: ‘Pode contar comigo’”, recorda o teólogo Frei Bento Domingues.
Na época, vivia-se um período de turbulência com muitos conservadores a contestarem a abertura do Papa em relação a alguns temas. Em Portugal, uns tempos antes, tinha-se assistido também a uma divisão, discreta mas tensa, dentro da Conferência Episcopal Portuguesa, em especial à volta da questão dos católicos divorciados: um grupo de seis bispos (os quais acabaram vencidos) assumiu uma posição mais liberal que não afastava o acesso dos divorciados recasados à comunhão. O grupo era liderado exatamente por António Marto – que, entretanto, Francisco chamou para integrar um novo e importante órgão do seu governo: o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, criado em 2016.
O homem da cultura do Vaticano
É nesta estratégia de renovação de Francisco que entra também Tolentino Mendonça, até há pouco um simples sacerdote. Um perfil, nota Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas, que encaixa no que o Papa pretende: “Tem de estar rodeado de pessoas bem apetrechadas do ponto de vista intelectual e com coragem para ajudar.”
“Foram escolhas muito pessoais”, concorda Frei Bento Domingues, lembrando que depois de Tolentino ter orientado, em fevereiro de 2018, em Ariccia, nos arredores de Roma, o retiro de Quaresma do Papa, foi logo feito arcebispo e nomeado para arquivista e bibliotecário. Começou a frequentar o Vaticano por indicação do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, cargo que deverá deixar em breve devido à sua idade. A rápida nomeação de Tolentino, a reestruturação que está em curso na Cúria Romana (governo do Papa) e a saída de Ravasi prometem tornar o novo cardeal português um dos mais destacados conselheiros do Papa. “Estou convencido de que ele vai ser o próximo perfeito da congregação da cultura”, acredita Januário Torgal Ferreira. A ideia é partilhada por Frei Bento Domingues. “Vai haver em breve uma redistribuição de ministérios, e acredito que o Tolentino fique com o pelouro da cultura”, diz, frisando que tal fá-lo-á muito influente no Vaticano.
Toda esta reforma pretende mudar radicalmente a Cúria, que viveu os últimos anos afundada em polémicas e atrofiada, com o desejo de servir a confundir-se com a sede de poder. O sínodo da família, a reforma no Banco do Vaticano, a criação de novos departamentos (o da Família, que António Marto integra, e o do Desenvolvimento Humano Integral para questões atuais como as migrações) são símbolos desta reestruturação. E, em breve, um grupo de seis cardeais irá apresentar ao Papa a nova Constituição Apostólica, sabendo-se já que a ideia é centrar a Cúria na evangelização e no anúncio do Evangelho. É fácil, por isso, entender o que encantou o Papa na pessoa de Tolentino – um biblista, poeta e ensaísta que se dedica a investigar a vida de Jesus, que gosta de partilhá-la no mundo da música, das artes e da literatura, e que sabe fazer pontes.
Entretanto, monsenhor Marcello Semeraro, líder do órgão consultivo do sumo pontífice que está a elaborar a nova Constituição, revelou recentemente que a Igreja vai também reforçar a dimensão missionária. Daí que, na lista de novos cardeais, que no dia 5 de outubro vão receber o barrete e o anel, estejam nomes como os dos arcebispos de Jacarta, Havana, Kinshasa e Rabah. “A escolha dos cardeais teve que ver com a dimensão universal que se quer para a Igreja”, nota Saturino Gomes, professor de Direito Canónico, lembrando que Tolentino Mendonça pode ter um papel decisivo a ajudar a dar nessa dimensão através da cultura.
O historiador e poeta José Eduardo Franco lembra, por seu lado, que estas nomeações ajudam Francisco a impor a reforma, mas também terão um papel determinante na escolha do seu sucessor. “Trata-se de uma renovação do grupo que vai eleger o novo Papa.” O Colégio Cardinalício conta com 118 eleitores e 97 cardeais com mais de 80 anos que, devido à idade, não podem votar no conclave, como acontece com os dois cardeais portugueses D. José Saraiva Martins e D. Manuel Monteiro de Castro. E entre os eleitores, 57 foram escolhidos por Francisco.
Tolentino soube da decisão do Papa quando estava a dar missa. “O meu primeiro sentimento, que ainda ressoa no meu coração, é aquela frase, aquele imperativo que Jesus dizia no Evangelho de ontem: ‘Procura o último lugar’”, contou ao Vatican News. Mas muitos acreditam que um dia esse lugar pode ser ainda mais especial. “Ele será o próximo Papa português”, diz José Eduardo Franco, que ainda retém na memória a imagem de Tolentino a ler na biblioteca de Machico, na ilha da Madeira, onde os dois nasceram e cresceram. Agora, o poeta continua no meio de livros, mas na maior biblioteca do mundo, onde convive com muitos dos objetos da Bíblia, como aquelas moedinhas que encantaram o Papa.