Praia de S. Jorge, em Luanda, meados de 1972. Aquele domingo decorria tranquilo, até a irrequieta Dulce, oito anos, se escapulir sem ninguém dar por isso. Era hora do almoço, e a menina de biquíni com flores encarnadas e azuis, já despachada da refeição, resolveu desrespeitar a proibição de entrar na água durante as duas horas da “sagrada” digestão. Sendo a mais nova da família, não tinha com quem se entreter na praia – e, por isso, corria para o mar na primeira oportunidade. “Parece que esta miúda nasceu com guelras”, comentava a mãe. Mas a menina de olhos claros, capaz de passar um dia inteiro em mergulhos na água salgada, não sabia nadar. Naquele domingo, disse aos pais (a almoçar com os tios no restaurante da praia) que estava com a irmã; à irmã, que jogava às cartas no areal com duas primas debaixo de um chapéu de sol, disse que estava com os pais. Malandrice feita, avançou confiante para o mar revolto da praia de S. Jorge.
O que se seguiu continuou a ser contado por Dulce Maria Cardoso num texto a que chamou Aquele domingo, publicado na sua crónica quinzenal na VISÃO, na edição de 6 de junho passado. “Eu e o susto bom dos tombos que dava, batia no fundo, enrolada por uma onda, e logo o meu corpo se guindava à superfície, para ser levado pela onda seguinte para terra, corria de volta ao mar, atirava-me à espuma que me salgava a boca e fazia arder os olhos, o meu corpo leve, tão leve, dentro do biquíni de flores encarnadas e azuis, um corpo-boia que vinha sempre à tona.”
Até que um remoinho a levou para fora de pé – que nunca mais ganhou. “Esbracejei, esperneei, mas os movimentos empurravam-me (…) para o fundo”, escreveu, para também refletir sobre a criança quase sem passado e de futuro incerto que se afogava num mar hostil: “Precisamos de tempo para nos prendermos às coisas e à própria vida e naquele domingo eu ainda tinha vivido tão pouco.” Aprendeu “o outro lado da morte, o que é morrer para quem morre” – e, do que se lembra, antes de perder os sentidos assustou-se “ao perceber que qualquer coisa nadava veloz na minha direção”. Ressuscitaria na areia “a vomitar golfadas de água salgada” e com “medo do tropa que me salvou”.
A crónica resultou de um episódio doméstico. Pouco tempo antes, “ao esvaziar uma das muitas caixas trazidas do meu quarto de solteira”, como descreve, saltou-lhe para as mãos “a fotografia do tropa”. A preto e branco, e em formato de passe, era por certo dos anos 1970, “como atestam os exagerados colarinhos da camisa”, notou. Apareceu “como se tivesse estado sempre ali”, diz a escritora à VISÃO. “O tropa que te salvou” tornou-se na família uma expressão que substituía o nome do militar que se atirou ao mar encrespado e resgatou Dulce Maria Cardoso à morte. Durante cerca de seis meses, o homem (um jovem de 21 anos) foi visita de casa da família, em Luanda, e “chegou a ir ao casamento de uma prima minha”, diz. Recorda-se de que ele “achava graça à rapariga maria-rapaz” que Dulce era. E lembra-se dele “muito carinhoso e orgulhoso”.
Um previsível mistério emergeria: o verso da fotografia apenas tinha escrito “o tropa que me salvou”. A sua mãe garantiu-lhe que fora o militar que lhe dera a ela, Dulce, a foto. Ninguém na família, no entanto, a conseguiu ajudar no que interessava. O regresso atabalhoado à Metrópole, na caótica ponte aérea de 1975, em fuga da guerra civil angolana, não podia explicar tudo – embora julgasse só ter trazido dois livros da Anita. A autora de O Retorno ficou incomodada: “Como nem sequer sei o nome da pessoa a quem devo a vida?” Estava em falta num dos sentimentos que mais preza, a gratidão, mas a lacuna seria resolvida através da VISÃO.
TÃO LONGE E TÃO PERTO
À segunda crónica que escreveu sobre o assunto, publicada na edição de 20 de junho da revista, Dulce Maria Cardoso chamou O homem sem nome. Prestou aí a homenagem devida. “O tropa estava sozinho, de pé, em cima de uma rocha que se erguia sobre o mar”, relatou. “O olhar que passeava distraído lá por baixo esbarrou com o meu corpo de criança a debater-se na água. (…) Prontamente, o tropa despiu a farda e lançou-se ao mar. Salvou-me. ‘In extremis’.” A família só deu conta do que se passou quando a viu chegar à praia, “desmaiada nos braços daquele homem desconhecido”. E a escritora sublinhou: “Nunca o esqueci. Nunca o esquecemos. Mas, no pouco que trouxemos de Luanda, da sua existência física sobrou apenas a memória. E a fotografia encontrada. (…) Ao longo dos anos, sem que desse conta, a imagem do tropa foi-se esbatendo e, antes ou depois de já nada dela sobrar, o seu nome desapareceu também.” No fim da crónica, escreverá que “o tropa não é o tropa, não é sequer o anjo da guarda”. Ele “é Deus, que me vigia distraidamente lá do alto, o mesmo Deus que ora nos salva ora nos mata”.
Na Madeira, uma assinante da VISÃO leu a crónica e ficou intrigada. Com o texto e, sobretudo, com a fotografia que o ilustrava. A professora universitária Cristina Pinheiro, 45 anos, tinha memória de o tio Manuel Nunes, quando falava da guerra, que fez como Comando, referir uma medalha que o Exército lhe atribuíra por ter salvado uma menina de morrer afogada numa praia de Luanda. Na crónica, Dulce Maria Cardoso também aludia à distinção: “O seu ato de bravura valeu-lhe uma medalha (…).” Quanto à foto, era semelhante a uma que vira emoldurada numa parede da casa dos tios Manuel e Maria de Lurdes Nunes.
Cristina Pinheiro andou mais de uma semana a remoer o assunto. A história “era tão improvável”, e a memória que lhe assomou podia dever-se só a “sugestão”, explicou à VISÃO. Às tantas, resolveu mostrar ao marido a foto que ilustrava a crónica: “É o teu tio”, respondeu-lhe, perentório. A seguir, enviou a fotografia ao irmão, a viver em Lisboa, para que a mostrasse à tia Maria de Lurdes. E obteve a confirmação que procurava: era mesmo o “tio Jaqueta” (alcunha que os sobrinhos lhe puseram, e que remete para o nome do meio de Manuel Nunes – Joaquim), com cujo bigode “gostava muito de brincar” em criança. E “ele alinhava”.
Pelo Messenger do Facebook, e depois ao telefone, Cristina deu então as boas e más novas a Dulce Maria Cardoso, 47 anos após o milagre da praia de S. Jorge. O “homem sem nome” passava a tê-lo, mas já havia morrido. Natural de Aldeia Viçosa, na Guarda, não teve filhos, foi motorista da Carris, era benfiquista e brincalhão, mas também o assaltavam memórias sombrias da guerra. E o coração que deu fôlego a Manuel Nunes para salvar a menina de oito anos num mar furioso foi o mesmo que depois o traiu e lhe roubou a vida cedo demais. Sofreu o primeiro enfarte do miocárdio aos 38 anos, o segundo aos 50 e o terceiro, a que não resistiu, aos 54 anos, em julho de 2005. Maria de Lurdes, 68 anos, diz que o marido falava na “Dulce Maria”, embora sem qualquer esperança de a reencontrar. E, no entanto, estiveram só a 13 quilómetros um do outro – a escritora a morar em Lisboa e Manuel Nunes na Amadora. Dulce Maria Cardoso, 55 anos, põe até a hipótese de ter sido conduzida pelo seu salvador. “Fiz a faculdade toda de autocarros.” Hoje, tem a foto de Manuel Nunes na sala onde escreve. Revela, sorridente: “Às vezes, digo-lhe um ‘olá’.”