O Serviço Nacional de Saúde dá sinais claros de fadiga. Depois do “furacão Troika”, a recuperação tem sido desapontante. Houve algumas melhorias e o Estado até tem injetado mais dinheiro, mas a um ritmo lento e Portugal continua a comparar-se mal com o resto da Europa. Mais recursos ajudariam, mas seria preciso mudar a forma como eles são usados, num sistema com problemas crónicos de gestão. Falar em colapso é um exagero, mas é preciso reabilitar o SNS. Com urgência.
“As notícias de ‘colapso’ são frequentemente casos extremos, realmente dramáticos e de situações que não deveriam ocorrer, mas não traduzem forçosamente o funcionamento geral do SNS”, explica Pedro Pita Barros, professor da Nova SBE, à VISÃO. Mesmo assim, embora os dados ainda não mostrem uma situação dramática, “começa a ser claro hoje em dia que há uma exaustão no SNS”, acrescenta o especialista em Economia da Saúde. “Essa exaustão está presente nos profissionais de saúde, com maior expressão nos médicos e enfermeiros, mas também nos equipamentos, que vão ficando obsoletos ou perdendo funcionalidade.” António Nogueira Leite, ex-secretário de Estado do Tesouro, concorda que, apesar de “não estarmos numa situação de colapso”, assiste-se a “uma degradação” que poderá não ser sustentável a médio prazo.
O pico dos gastos do Estado com o SNS foi alcançado em 2010, ultrapassando os 10 mil milhões de euros. Foi o último ano antes da assinatura do Memorando de Entendimento e do período mais duro de austeridade, conjugada com anos de recessão profunda. A recuperação começou em 2014, na reta final do governo anterior, mas a um ritmo que tem ficado aquém do crescimento económico, o que significa que esses gastos têm um peso cada vez mais baixo no PIB. A despesa pública com Saúde (grande parte para o SNS) segue uma trajetória de queda desde 2009, tendo estagnado em 6% do PIB em 2016 e 2017.
Há dez anos, Portugal era o terceiro país da UE com mais gastos públicos nesta área. Em 2017, já estava na metade de baixo da tabela, longe da média comunitária (7% do PIB) e mais perto de países como a Lituânia e a Estónia do que da Áustria ou de França.
O reforço de fundos não está a ser suficiente para reanimar um sistema atingido em cheio no peito pelo esforço de austeridade. Depois de correr uma maratona, não basta abrandar o ritmo da corrida. É preciso descansar. “Desde o pré-Troika, a evolução nos indicadores de assistência e de saúde geral da população tem sido favorável, mas em muitos deles existe uma tendência de melhoria que vem de trás, pelo que a pergunta certa, mas que é de difícil resposta, é se as melhorias que vinham em curso se tornaram mais lentas”, nota Pita Barros.
O elefante na sala é a passagem das 40 para as 35 horas de trabalho semanal. Embora não seja possível saber exatamente qual foi o impacto da medida, ela estará a contribuir para a pressão sobre o sistema. Apesar de este Governo ter contratado perto de 11 mil profissionais para o SNS, o Expresso escrevia há duas semanas que esse recrutamento apenas compensou 22% do impacto da redução de horário entre os técnicos superiores de saúde e 88% entre os enfermeiros. No segundo caso, era preciso contratar mais de 600.
Portugueses insatisfeitos
A melhoria (ou não degradação) de alguns indicadores não deve levar-nos a concluir que não atravessamos um momento crítico. A maior parte deles não tem dados para 2018 e 2019, alguns dos problemas – como desgaste do material ou falta de motivação das equipas – podem ser difíceis de quantificar e a tolerância dos portugueses vai-se esgotando.
O que sabemos é que estamos entre os mais insatisfeitos. Em 2016, nenhum país europeu tinha pior opinião do estado da sua Saúde, mostram os dados do Portal da Opinião Pública. Portugal tem estado no fundo da tabela desde 2002. Uma sondagem recente do ICS – Instituto de Ciências Sociais concluía que, entre todos os serviços públicos avaliados, a Saúde tinha a nota mais baixa, ainda que positiva (5, numa escala de 0 a 10).
As forças do Sistema de Saúde português estão na baixa mortalidade infantil, nas elevadas taxas de vacinação e numa boa rede de cuidados primários. Por outro lado, “pontuamos” mal na área da saúde mental e na qualidade de vida dos mais velhos. A nossa esperança média de vida até se compara bem com a dos nossos parceiros europeus, mas quando se olha apenas para o período pós-65 anos de idade, o caso muda de figura. Os homens portugueses têm, em média, apenas mais 7,7 anos saudáveis a partir dos 65, enquanto as mulheres apenas mais 6,4. Na média da União Europeia, estes valores saltam para 9,8 e 10,1, respetivamente.
Pita Barros sublinha o acesso aos cuidados de saúde primários como ponto positivo e os tempos de espera como negativo, ainda que “desde 2004 se tenha verificado uma evolução importante, mesmo que nos últimos dois, três anos a situação tenha piorado ligeiramente”.
Portugal tem um dos tempos de espera mais altos da Europa para cirurgias às cataratas e para substituição de anca (ambos a aumentar desde 2011). Tem um dos números mais baixos de unidades de ressonância magnética da Europa e está entre os que menos fazem esse exame (por outro lado, está no topo em número de TAC).
Embora o número de médicos até seja elevado em comparação com a média da UE, Portugal tem poucos enfermeiros, apesar dos recentes reforços. No SNS, há hoje 212 médicos e 351 enfermeiros por cada 100 mil pessoas. Há 20 anos, existiam apenas 159 e 244, respetivamente.
O número de consultas no SNS também tem continuado a crescer, o que contrasta com a diminuição dos internamentos e com uma recuperação que só agora começa a chegar às urgências.
Experiência assimétrica
É difícil fazer um diagnóstico geral do SNS, porque a experiência pode ser muito diferente. Uma das assimetrias mais marcantes é a localização. “Existem lacunas na prestação de serviços decorrentes de desequilíbrios geográficos, visto que os hospitais situados fora das grandes áreas metropolitanas, como Lisboa, Porto e Coimbra, não disponibilizam todas as especialidades médicas”, pode ler-se num relatório da OCDE e da Organização Mundial da Saúde, publicado há um ano e meio.
Outra das diferenças é o rendimento. Quando se pergunta aos portugueses se houve cuidados médicos (no público ou no privado) a que não conseguiram aceder devido ao seu custo, à distância ou ao tempo de espera, Portugal surge alinhado com a média da UE (2,4% vs. 2,6%), mas com grandes diferenças entre escalões de rendimentos. Essa queixa só é referida por 0,6% dos portugueses mais ricos, mas por 6,4% dos mais pobres.
Portugal tem uma das percentagens mais elevadas de pagamentos diretos para financiar tratamentos. Isto é, aquilo que as famílias têm de tirar do seu bolso no momento em que vão a uma consulta ou fazem um exame. A média da UE é de 18% e Portugal está hoje nos 28%.
Problema de dinheiro?
Segundo a OCDE, o programa da Troika foi bem-sucedido na “redução de custos” e no “aumento da eficiência” do sistema, mas restam ainda amplos desafios. “A curto prazo, os riscos para a sustentabilidade financeira do SNS parecem advir do défice de qualidade da gestão financeira nos hospitais, que está na origem de atrasos crescentes nos pagamentos a fornecedores”, escreve a OCDE/OMS. “As medidas governamentais não parecem ser suficientes para garantir a liquidação dos pagamentos em atraso ou impor um controlo firme das despesas.”
A questão é antiga: há falta de dinheiro ou é preciso gerir melhor? António Nogueira Leite acha que é um pouco dos dois. “Não devemos estar sempre a atacar Mário Centeno” pelas dificuldades na Saúde. “Admito que seja preciso mais dinheiro, mas é preciso otimizar”, acrescenta. “Os gestores precisam de mais poder, de mais liberdade e de mais responsabilização.”
Para o economista, a solução terá de passar por uma reforma profunda, mas afasta o “papão EUA”. “Acho que em Portugal ninguém defende o sistema norte-americano, que não funciona”, frisa. “É preciso mais concorrência. Em muitos países europeus,o utente nem sabe a natureza da entidade que está a utilizar.”
Pita Barros tem uma opinião semelhante. “Claro que ter mais financia-mento facilita, mas não será suficiente. Falta de financiamento certamente que leva a um mau SNS e a um Sistema de Saúde com mais problemas para resolver. Mas mais financiamento do SNS sem mudanças de organização não será capaz de responder adequadamente às necessidades previsíveis e às expectativas da população”, defende.
Que mudanças? “Temos um sistema muito voltado para a resolução de situações agudas de curto prazo, baseado no papel dos hospitais como ponto central do SNS, e que terá de se virar para o acompanhamento de condições crónicas de longo prazo”, acrescenta. “Há também forte necessidade de boa gestão dos recursos humanos.” Além dos profissionais de saúde, são necessários bons gestores e é preciso apostar em “novas” profissões ligadas ao big data.
Nogueira Leite avisa que “se o sistema continuar a evoluir como nos últimos 40 anos, os próximos cinco anos não serão graciosos”. O SNS pode não estar a colapsar, mas está exausto. Como sabemos, ao fim de algum tempo, pode morrer-se de cansaço.