Quando, no início deste ano, começou a escrever Viva a Vida (Oficina do Livro, €17,90), Fernanda Serrano ainda não sabia que daí a uns meses iria interpretar o papel de uma escritora na próxima telenovela da TVI. Depois de um primeiro romance premiado, a sua personagem entra numa espiral de insatisfação e insucesso, associada ao facto de não poder ter filhos. As rotinas de concentração e de escrita passaram assim da realidade para a ficção. Mais uma vez. Há seis anos, a atriz estreou-se na edição com o primeiro livro Também Há Finais Felizes, centrado apenas nos pormenores clínicos do seu processo oncológico, com uma gravidez pelo meio. Agora, o que era para ter sido um livro de receitas acabou a servir para Fernanda Serrano, 45 anos, se dar a conhecer melhor. “O livro mostra um pouco como eu sou: simplista, despretensiosa, leve. Sou só eu a contar a minha vida”, diz.
Viva a Vida é o nome do último quadro pintado por Frida Kahlo e de um monólogo de Humberto Robles sobre a pintora mexicana. Porque escolheu este título?
Era o que melhor retratava tudo o que falo. Embora tenha alguns dias cinzentos, quero que a minha vida seja o mais brilhante possível e quero torná-la mais bonita para os que me rodeiam.
O que a inspira em Frida Kahlo?
Foi uma mulher que passou por muitas vicissitudes e sempre sorriu para a vida, sempre a enfrentou. Foi audaz, com fibra, uma mulher muito forte, de pensamentos e ideias únicos, muito opinativa, sem nunca ir atrás de movimentos e de correntes. Ela criou a sua própria corrente. Sem qualquer pretensão de me querer comparar, em algumas coisas reconheço a mesma atitude de não baixar os braços.
Há alguma figura portuguesa por quem tenha essa admiração que nutre por mulheres como Anaïs Nin ou Mata Hari?
Apesar de gostar cada vez mais de pessoas normais, essas duas mulheres de que fala marcaram a sua época pela diferença, foram únicas. Por cá, a atriz Lourdes Norberto também teve uma vida muito preenchida, mas que responde a tudo com criatividade e humor. A minha mãe também é uma guerreira, mais “generala” do que eu. As mulheres inspiram-me sempre mais do que os homens.
Cresceu uma “maria-rapaz”, com joelhos esfolados, mas entretanto aprendeu a gostar do universo feminino.
Em miúda sempre competi com os rapazes e quando descobri que era muito mais feminina do que pensava, talvez me tenha encantado com isso. Passei a gostar de ser mulher e a entender melhor esse universo. Contrariamente ao que se diz, gosto de trabalhar com mulheres, não tenho tido más experiências.
“Não sou urbana, nada cosmopolita ou citadina”, escreve no livro. Onde fica a imagem de mulher moderna que o público tem de si?
Na verdade, não tenho um estilo definido. Se for a minha casa num dia de folga, estou vestida com a roupa das minhas filhas. Não ando sempre sofisticada e tento não me vestir de acordo com a idade. Não me sinto nada uma senhora, mas sim uma menina, porque os exemplos de pessoas mais velhas que tenho como referência também são assim. Sou leve, não quero mostrar algo que não sou. Não gosto de coisas plásticas ou fabricadas e processadas, nem de comida nem de pessoas. Não tenho a pretensão de passar a imagem perfeita.
A idade, as rugas ou a celulite são uma preocupação, incomodam-na?
Embora tenha muita vitalidade, aos 45 anos começam a surgir alguns sinais de envelhecimento. A frescura, a resistência e a energia já não são as mesmas, tenho mais cuidados em desacelerar. Não vivo em função da imagem e já tenho cirurgias que cheguem na minha vida, isso não quererei fazer, mas faço por me sentir mais confortável e tranquila com o que vejo todos os dias de manhã ao espelho.
Na sua geração, muitas mulheres referem-se à idade como um fardo, dizendo “já tenho 45”, mas a Fernanda Serrano diz “ainda só tenho 45 anos”…
É a tal história de ver o copo meio vazio ou meio cheio. Ainda tenho imenso para viver. É melhor do que pensar que já queimei 45 anos da minha vida.
Essa teoria é natural ou construída?
É um pensamento construído. Escolho pensar desta forma porque me deixa mais serena. Sinto que sou uma companhia mais interessante agora do que aos 20 anos, divirto-me mais agora do que aos 25, e desfruto mais dos meus dias e das pessoas de quem gosto.
Gosta de “gente normal”, como diz.
O ser humano mete-me cada vez mais medo, tornou-se um bicho perigoso. Antes não tinha medo de nada, mas com a maternidade [há 14 anos] passei a ter muito medo de pessoas. Qualquer um pode ir na rua e fazer algo que resulte na perda de quem amamos. A insanidade, a fragilidade e o desequilíbrio emocional que as pessoas sentem tornam-nas mais perigosas.
Que tipo de pessoas a tiram do sério?
As que acham que são mais importantes do que os outros. Não suporto pessoas que julgam ter o dom da diferença, da superioridade, malformadas e que acham que podem faltar ao respeito ao próximo.
Há muitas desse género na sua profissão?
Algumas. É raro encontrarmos atores que sejam mais generosos do que egocêntricos. Há colegas com quem, se puder, evito contracenar.
Como prepara os seus quatro filhos para o mundo a que chama “uma verdadeira selva”?
Estou a incutir-lhes valores para se tornarem cidadãos exemplares, construtivos e pró-ativos, mas até tenho receio de serem pérolas demasiado preciosas para a sociedade que vamos vendo ser construída. Não sei prepará-los para esta verdadeira selva. Mas temos de conseguir antever e imaginar situações em que eles tenham uma boa capacidade de resposta. Antes não os deixava ver as más notícias, protegia-os numa bolha para serem mais felizes, mas depois percebi que quanto mais tarde essa informação lhes fosse passada, pior seria o impacto na sua consciência. Comecei pela alimentação, tema transversal a todas as famílias, mostrando-lhes que existem crianças com fome, que nunca sabem quando vão ter um prato de comida à frente, mas também lhes falei de cancro, de uma forma romanceada e leve.
Quando crescerem, acha que sentirão o peso da palavra cancro?
Há muitos anos que me veem bem e como o meu caso teve um final feliz, aligeirou bastante o peso inerente a tudo isso. Falam da doença de forma leve, com a possibilidade de um bom resultado. Não sentem uma angústia permanente.
O facto de ser filha única e, a partir dos 13 anos, ter passado muito tempo sozinha em casa foi determinante para ganhar esse espírito independente?
Às vezes, gostava que alguém tomasse conta de mim. Penso: “Para que me serve ter uma carreira, ser independente e não precisar de ninguém para tomar as rédeas da minha vida?” É uma vida uma pouco solitária porque, desde miúda, chamo tudo para mim. Percebi que os meus pais trabalhavam muito para me proporcionarem o melhor e queria ser independente para os ajudar.
Também aprendeu a aborrecer-se.
Sim, dava tempo para brincar, aborrecer-me, conhecer-me, pensar, decidir, fantasiar, deu-me uma responsabilidade muito grande. Tinha sempre um plano e ainda hoje sou assim, vou sendo feliz só de sonhar. Penso nos 97 anos como meta de vida, mas não sei se me chega para tudo o que quero fazer.
Foi nessa altura que aprendeu a ouvir o silêncio que hoje tanto aprecia?
Sim, pode ter vindo daí a minha capacidade de desfrutar do silêncio, mas agora é muito raro estar sozinha, seja com equipas de trabalho grandes ou com a casa cheia. Tenho saudades do silêncio, acalma-me.
Ir para Barcelona aos 19 anos trabalhar como manequim deu-lhe bagagem para quê?
Deu-me uma perceção muito real da capacidade que temos de nos protegermos e de tomarmos conta de nós próprios. Estava sozinha num país onde não conhecia ninguém, não havia telemóveis nem uma mão cuidadora, e consegui fazer amigos, estabelecer relações profissionais e entrar num mercado de trabalho totalmente desconhecido.
Como foi começar a carreira de atriz em Espanha?
A internacionalização começou e acabou lá [gargalhada]. Foi inesperado. A Mar Targarona, realizadora do filme Muere Mi Vida, estava sempre a dizer: “Vamos fazer uma ‘demo’ para mandares para várias produtoras de cinema, porque estás na altura ideal para começar.” Já era sonhadora na altura e achava tudo possível. Mas depois vim de férias a Portugal, comecei a fazer televisão, fui protelando o regresso a Espanha e acabei por não dar continuidade ao trabalho lá fora.
E se agora surgisse outro convite internacional, aceitava-o?
Mais facilmente faria um filme em Portugal que depois fosse reconhecido no estrangeiro do que me proporia a ir lá para fora e começar tudo do zero. Não é por falta de coragem, mas porque tenho tudo tão enraizado aqui que não colocaria a minha família nessa situação de desconstruir tudo e transitar para outro país.
Na altura, não se atrapalhava e continuou a viajar sozinha. Ainda mantém esse gosto?
Hoje já não consigo, tenho muito mais medo de tudo, principalmente o medo do que a minha falta possa causar aos que dependem de mim. Em relação a mim, os meus maiores medos já os enfrentei.
Se pudesse esfregar a lâmpada mágica e pedir um desejo, para onde preferia ir agora: Estremoz (de onde são os seus pais), Caparica, Barcelona ou México?
Não consigo escolher… Mas consigo excluir a Caparica, porque morei lá 23 anos. Fui muito feliz em Barcelona, mas o México também me fascina, adoro a sua gastronomia, os cheiros, os sabores. Mesmo com pânico de voar, já lá fui cinco vezes, sinto-me em casa.
Passaram 11 anos desde a operação ao cancro da mama. A mente já se encarregou de apagar as más memórias?
É outra vez a história de ver o copo meio cheio ou meio vazio. Só passaram 11 anos, quero que passem muitos mais. O nosso subconsciente, de forma involuntária, encarrega-se de limpar memórias. Por outro lado, faz com que me esqueça de coisas importantes e simples, como valorizar rotinas, por exemplo. A notícia da doença tem um impacto fortíssimo perante a possibilidade de falta de vida. Um dia de sol não é só um dia de sol.
Durante todo o processo houve fases menos más ou foi tudo mau?
Tento desdramatizar tudo o que vivi. Sofri à mesma, mas com as coisas mascaradas é mais fácil para quem está à minha volta e para mim.
Usava técnicas da representação para fingir estar de ânimo mais leve junto das outras pessoas?
Usava o humor, isso sim. Ver-me sem pestanas, sem cabelo ou sem pelos, não foi bonito, mas pensava: “Também não preciso de ir à depilação.” É ver a situação de outro prisma.
Nessa altura, o que pesou mais: o seu pragmatismo ou a revolta e a tristeza?
Ganhou o pragmatismo e fui mais feliz optando por essa abordagem. Foi única e exclusivamente para proteger os meus pais e o meu filho Santiago, extensível à restante família e amigos, para que não me vissem a sofrer. Não queria preocupá-los, desmotivá-los e queria que percebessem que levava tudo de forma positiva.
Ia protelando o choro, sofria com hora marcada?
Sim, agendava comigo própria. Era quase uma violentação. Talvez tenha uma boa capacidade de gerir as emoções, pois é com isso que trabalho todos os dias, além da voz.
Durante o tratamento teve náuseas, mas mesmo assim devolveu os medicamentos de SOS ao hospital – valentia ou teimosia?
Pura teimosia. E continuo a fazer isso, por vezes tenho dores e faço por nunca tomar um comprimido. Acho que tenho de criar capacidade de resistência no meu organismo, sem precisar de medicação.
No livro fala com detalhe da relação que tem com os seus pais, com os seus filhos, até com colegas de profissão, mas não fala da relação com o seu marido [Pedro Miguel Ramos]. Porquê?
Nunca falei da minha vida conjugal. O Pedro é uma pessoa muito reservada e nunca demos uma entrevista em conjunto. Mas sempre foi uma pessoa presente. Na altura em que estive doente, foi um elemento preponderante no meu bem-estar físico, emocional, psicológico, porque há muitos homens a abandonar o barco nessas alturas e ele, pelo contrário, valorizou-me e fez-me sentir-me bem e bonita. Nem consigo quantificar a importância que teve na altura e para sempre.
Já se inscreveu no curso de Agronomia para estar preparada para cultivar oliveiras e fazer o seu azeite?
Quero muito! É um projeto que quero concluir. É um plano para a minha reforma, para voltar a ligar-me à terra, sinto essa necessidade. Para desacelerar e ter tempo no campo, junto das plantas, das árvores, dos animais, com o horizonte, porque o Alentejo tem um horizonte longínquo, ali consegue-se ter tempo de um bom resto de vida.