O piloto instrutor “não decidiu em tempo útil para onde navegar”, “perdeu o controlo da aeronave” e, por fim, o controlo do voo. Violou “grosseiramente as regras da aviação” quando não seguiu as instruções dos manuais para uma aterragem de emergência e, antes disso, quando não comunicou à escola que o contratou para dar aulas [EAA – Escola de Aviação Eurocondor] que deveria ser submetido a uma nova avaliação psiquiátrica, pois estava há anos reformado da TAP por invalidez com um diagnóstico de depressão. Só procurou um local para aterrar aos 500 pés de altitude e por isso não teve tempo para o fazer em segurança. Deveria ter invertido a rota e procurado um local para aterrar na margem norte do Tejo ou explorado uma zona quase vazia no areal entre São João da Caparica e a Cova do Vapor.
Além disso, o piloto comandante e o aluno que estava em formação não traziam o cinto de retenção para a parte superior colocado nem havia coletes salva-vidas no interior da aeronave.
Estas são algumas das conclusões da procuradora do Departamento de Investimento e Ação Penal (DIAP) de Almada que dirigiu a investigação ao acidente com o Cessna 152, que causou a morte a José Lima, de 56 anos, e a Sofia António, de oito anos, na tarde de 2 de Agosto de 2017. Só Rui Relvas, que estava a estudar para piloto, não foi pronunciado, por o Ministério Público entender que como aluno, e ainda pouco experiente (tinha apenas 124 horas de voo), não poderia ser responsabilizado pelos danos causados pela avaria da aeronave e consequente aterragem forçada na praia de São João da Caparica. Já Carlos Conde d’Almeida, piloto instrutor, irá responder por dois crimes de homicídio por negligência e um de condução perigosa de meio de transporte por ar.
Três funcionários da Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) – entre eles o seu presidente, Luís Silva Ribeiro – e três funcionários da escola de aviação também não escaparam à acusação deduzida a 25 de junho. Respondem por um crime de atentado à segurança de transporte por ar, agravado pelo resultado morte. O Ministério Público concluiu que as pessoas ligadas à escola Aerocondor, com sede em Ponte de Sôr, tinham de garantir a segurança da atividade da escola. E que os funcionários da ANAC tinham de promover a segurança na aviação e supervisionar mas, em vez disso, renovou certificados sem atestar que aquela cumpria todas as políticas de segurança aérea.
Quem é este piloto
Quando o avião que pilotava aterrou de forma atabalhoada na praia de São João da Caparica, Carlos Conde d’Almeida tinha cumprido 5016 horas de voo, 3930 das quais como instrutor ou sem co-piloto.
Conde d’Almeida estava no mundo da aviação desde 1974, tendo ingressado primeiro na TAP como comissário de bordo. Dez anos depois, obteve a licença de piloto comercial de aeroplanos. A 1 de outubro de 1985, foi cedido pela TAP às Linhas Aéreas Regionais (LAR) para aí exercer as funções de piloto comercial de avião em aeronaves turbo-hélice e, entre 1989 e 1990, começou a trabalhar como instrutor de voo, tendo trabalhado para diversas escolas de aviação, entre elas a EAA.
Em março de 1993, Conde d’Almeida conseguiu a licença para transporte aéreo de aviões emitida pela ANAC mas, apenas cinco meses depois, algo correu mal. Reformou-se da TAP Air Portugal por invalidez, com um diagnóstico de “síndrome depressivo”. Em 2012, a comissão de verificação de incapacidades do Centro Distrital de Lisboa da Segurança Social voltou a declará-lo permanentemente incapaz para o exercício da profissão por sofrer de “perturbação de ansiedade generalizada” mas, apesar disso, Conde d’Almeida conseguiu renovar a sua licença de piloto de aviões junto da Autoridade Nacional de Aviação Civil e que a mesma entidade lhe emitisse um certificado médico favorável a 31 de julho de 2017, apenas dois dias antes do acidente.
No despacho de acusação a que a VISÃO teve acesso, a procuradora Ana Margarete Filipe sublinha, por diversas vezes, que a ANAC falhou enquanto entidade responsável por certificar as qualificações, a proficiência e a aptidão física e mental do pessoal aeronáutico. E também a escola de aviação, que terá contratado Conde d’Almeida em abril de 2016 sem averiguar porque estava reformado por invalidez, quais as suas habilitações ou se estava a par dos procedimentos de emergência.
O dia do acidente
No âmbito das suas funções de instrutor, Conde d’Almeida agendou para o dia 2 de agosto de 2017 uma aula de voo por instrumentos com o aluno Rui Relvas, que estava a estudar para piloto de transporte aéreo. O voo de treino agendado tinha uma duração de 2 horas e 45 minutos: iria partir do Aeródromo de Cascais, em Tires, em direção ao aeródromo de Évora, e no regresso iria aproximar-se da base do Montijo. ÀS 15H42, receberam autorização para a descolagem. Rui Relvas estava sentado à esquerda, a voar, Conde d’Almeida à direita, a comandar. Devido a turbulências que provocavam correntes de ar ascendentes, o aluno relatou ter tido alguma dificuldade em estabilizar a aeronave, pelo que subiu um pouco acima da altitude autorizada. Às 15h46, enquanto sobrevoavam a vila de Oeiras, o CESSNA 152 sofreu um movimento ascendente “súbito e violento” seguido de um movimento descendente. O motor da aeronave tinha sofrido “uma falha total de potência”, provocada “pelo bloqueio da válvula de manutenção de nível de combustível na cuba do carburador, que impediu a entrada de combustível na cuba, interrompendo assim o fluxo de combustível ao motor”. Quando Rui Relvas comunicou a falha do motor, Conde d’Almeida terá então assumido a emergência de voo, pedindo ao aluno que voasse em frente à melhor velocidade de planeio, no sentido sudoeste, mantendo a rota definida. Enquanto este, por sua vez, sem olhar para os manuais, sem alegadamente “definir qualquer lugar para a aterragem” e “de forma aleatória” terá manipulado vários comandos para tentar pôr o motor a funcionar. Fê-lo, diz o Ministério Público, durante 50 segundos. E ao fazê-lo sem que pedisse ajuda ao instruendo terá perdido “o controlo das referências de navegação da aeronave”. Pelas 15h47, a cerca de 500 pés de altitude, e sobre o rio Tejo, terá então comunicado a emergência e assumido o voo da aeronave. Embora tenha comunicado que iria aterrar na praia da Cova do Vapor, não conseguiu gerir a altitude nem a velocidade, pelo que se terá dirigido à praia de São João da Caparica, onde se encontravam dezenas de pessoas. Às 15h48, a aeronave surgiu descontrolada junto do areal, mas poucos se aperceberam porque não havia ruído; apenas um som ténue provocado pelas diversas tentativas de arranque do motor feitas pelo comandante. Por essa razão, e devido ao elevado número de pessoas que se encontravam na praia àquela hora, o aluno terá decidido, por sua iniciativa, acender e desligar as luzes do aparelho, numa tentativa desesperada de alertar os banhistas.
Foi aqui que Sónia se atirou na direção da filha, a atirou ao chão e se deitou sobre ela. Que Sílvia correu na direção da areia seca, puxando por Maria, que se encontrava em pânico, e se atirou para o chão. Que o Cessna descontrolado bateu na areia molhada, se elevou e percorreu alguns metros no ar até estabilizar nas três rodas e percorreu 245 metros até parar, sem que alguém acionasse o sistema de travagem da aeronave. Durante a rolagem, a asa esquerda atingiu as pernas de José, que rodopiou no ar, passou por cima da aeronave e veio a cair do outro lado. E embateu em Sofia, atingido-a na cabeça, quando aquela tentava fugir. José, de 60 anos, e Sofia, de oito, não sobreviveram às lesões causadas pelo acidente.
Teria sido possível evitar?
Para o Ministério Público, os funcionários da escola de aviação falharam ao não ter alertado para os riscos de um voo de treino sobre o rio Tejo e sobre uma zona densamente povoada. Deveriam ter sido implementadas medidas de segurança para essa rota, cumprido a formação obrigatória em amaragem, ordenado o uso obrigatório de coletes salva-vidas e indicados possíveis locais para aterragem, devido à grande densidade de população residente na margem norte e sul do Tejo. A EAA tinha aliás aprovado que deveriam ser evitados os voos de aeronaves com motor único sobre extensões de água.
Já o piloto instrutor falhou, segundo a acusação, porque não seguiu as instruções e decidiu demasiado tarde que iria aterrar. Quando o motor falhou aos 1200 pés de altitude, quando ainda sobrevoava Oeiras, “podia e devia ter invertido o sentido do voo, atento o rumo do vento e a possibilidade de não conseguir fazer a travessia do rio” e procurado um lugar seguro para aterrar nessa margem “junto da Torre do Bugio”, “no rio Tejo em local próximo dessa margem” ou nos terrenos da “Estação Agronómica Regional”, em Oeiras. E no limite, ao seguir em frente, “podia ter efetuado a aterragem forçada na praia da Cova do Vapor” ou seguir no sentido de Porto Brandão, controlando a altitude e velocidade da aeronave. Podia ainda, em última alternativa, ter aterrado na praia de São João da Caparica mas noutro lado, logo após o pontão que a separa da praia da Cova do Vapor, na zona do areal que se encontrava “quase vazia”.
Ao não o fazer, o Ministério Público concluiu que Conde d’Almeida violou “grosseiramente” as regras da aviação e “o dever objetivo de cuidado” que lhe era exigível pela sua experiência profissional.
A investigação durou quase dois anos e somou oito volumes. Entretanto, terá de ser nomeado um novo perito e feita uma nova simulação de voo. Isto porque o perito que o Ministério Público tinha escolhido para simular um voo semelhante ao do Cessna 152 foi afastado do processo por dúvidas sobre a sua imparcialidade. Era, afinal, o perito que fazia inspeções à escola de aviação EAA, onde Conde d’Almeida dava aulas.