Tomás é mais pequeno do que se espera para um bebé de 25 dias, e está tão bem aninhado ao colo da mãe que até custa largá-lo no berço para ver se dorme um sono mais descansado. Depois de mamar com apetite, toma sempre um suplemento de leite de vaca, para crescer mais depressa. No entanto, a sua fórmula é extensamente hidrolisada (a proteína é quebrada em aminoácidos), só porque tem um irmão de 6 anos, chamado Pedro, alérgico às proteínas do leite de vaca – a alergia mais frequente em idade pediátrica. Será, por isso, tratado como um alérgico até aos 6 meses.
Apesar de não existir estatística em Portugal nesta matéria, estima-se – extrapolando a realidade europeia – que oito em cada 100 crianças sejam alérgicas a algum tipo de alimento. Numa década, o número de casos de alergias alimentares aumentou 18% entre a população em geral, mas se olharmos apenas para os números na infância, esse valor subiu 50 por cento.
Pedro não está, por isso, sozinho. Porém, ainda se enfrenta muito desconhecimento quando alguém avisa, numa escola, num restaurante ou numa festa de anos que não pode comer determinado alimento ou, nos casos mais graves, vários alimentos.
O tratamento, nos percursos como o do Pedro, consiste na evicção completa das proteínas do leite de vaca e dos seus derivados, pois, mesmo em pequenas quantidades, provocam sintomas que vão de reações cutâneas ao edema da glote e ao choque anafilático, podendo este resultar em morte.
Pedro tinha 4 meses quando, como muitas crianças, experimentou a sua primeira papa láctea. A reação foi de tal forma exuberante que os pais, preocupados, falaram ao médico, que os mandou, simplesmente, escolher outra marca. “Preferimos mudar de pediatra”, conta Marlene Pequenão, 39 anos, a torcer para que a cena não se repita com Tomás.
O conselho teria sido outro se se tivessem cruzado com a pediatra Ana Isabel Diniz, que se especializou em alergologia, numa altura em que praticamente não havia alternativas para estas crianças. Mais de 20 anos de experiência, com trabalho em diferentes unidades de saúde, permitem-lhe discorrer sobre as possíveis causas: “Tudo contribui: poluição, tabagismo, fumo passivo, comida processada, aditivos.” Um estilo de vida apressado, em que se recorre frequentemente a comida embalada, cheia de conservantes, e com métodos de produção industriais é um dos principais fatores. A somar a isso vem a adoção de alimentos que não fazem parte da nossa dieta tradicional, como a soja ou os frutos tropicais – um apetite pelo exotismo que nos leva a consumir substâncias estranhas ao nosso organismo.
Outra razão possível para o aumento dos casos de alergia alimentar é o excesso de limpeza e a esterilização do ambiente em que vivemos. De acordo com a Teoria da Higiene, um sistema de defesa pouco treinado, por falta de solicitação, acaba por se baralhar, começando a atacar o próprio organismo (e aí pode surgir uma doença autoimune). As primeiras pistas neste sentido apareceram aquando da reunificação das duas Alemanhas, e tornou-se muito evidente que uma população relativamente homogénea, em termos genéticos, apresentava taxas de prevalência de alergias muito díspares: as crianças do Leste, mais pobre e rural, tinham muito menos problemas deste foro do que as mais urbanas do Ocidente.
No caso da alergia ao leite, o imunoalergologista Mário Morais de Almeida não tem dúvidas de que o problema começa logo na maternidade, com aquele primeiro biberão que muitas vezes se dá a seguir ao parto, quando mãe e filho estão ainda exaustos. “O bebé tem um primeiro contacto com a proteína de vaca e o corpo prepara-se para aceitar a entrada deste elemento estranho; depois, durante meses, é amamentado e o corpo nunca mais tem contacto com aquele alimento. Quando a criança volta a beber leite de vaca, acontece uma alteração no equilíbrio”, explica. No fundo, o corpo sente que aquele produto deve ser, afinal, uma ameaça e ataca. “Para evitar este fator de risco, os hospitais deviam dar leite hipoalergénico”, alerta o especialista.
“O que são pintarolas?”
Para Pedro, a realidade sempre foi espartana e rigorosa. Habituou-se a transportar o seu lanche para as festas, a levar marmita de casa (a mãe faz questão de lhe cozinhar o mesmo que o colégio serve), a olhar para os rótulos quando ainda nem conseguia lê-los. No entanto, nem sabe bem o que são as canetas-seringa de adrenalina que estão nos kits espalhados pela escola e nas casas dos avós (teve um choque anafilático aos 12 meses). Agora, aos 6 anos, e porque a sua rede de contactos começa a aumentar, põe-se a fazer perguntas complicadas aos pais: “O que são pintarolas?”
Talvez daqui a uns meses, Pedro possa experimentar uma dessas bolinhas. Como a sua alergia não passou até à idade escolar, como se esperava, está a fazer a dessensibilização no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, desde maio. O processo é muito lento – “uma prova de fundo” – e os pais nem lhe explicaram bem do que se trata, para não lhe criar expectativas. Neste momento, o seu organismo já tolera três mililitros de leite a cada 12 horas, que toma numa seringa, como se fosse um remédio. E é.
Mário Morais de Almeida, coordenador do Centro de Alergia da CUF Descobertas, trouxe para Portugal, há 15 anos, o tratamento de indução de tolerância. Tudo se passa em ambiente hospitalar, sob apertada vigilância de uma equipa de médicos e enfermeiros. O processo consiste em dar aos doentes pequenas doses do alimento proibido, de modo a habituar gradualmente o organismo, até se atingir a dose equivalente a uma refeição diária (que no caso do leite são 200 mililitros). É muito importante que o doente continue a manter a ingestão do alimento depois de terminado o processo de indução, já que se parar há um risco elevado de que tudo volte à estaca zero.
Numa alergia alimentar acontece uma reação exagerada do sistema imunitário a algumas proteínas dos alimentos. “Tão exagerada que pode ser fatal”, explica Mário Morais de Almeida. No fundo, uma simples banana ou uma mera posta de peixe são “vistos” pelo organismo como um vírus letal. “Na maioria dos casos, as reações ocorrem poucos minutos depois do contacto. E nem sempre o contacto significa comer o alimento. Por vezes, basta tocar ou inalar”, conclui.
“Já nem leio rótulos”
Margarida, 13 anos, continua a não gostar do sabor do leite. É por isso que a sua dose diária de medicamento, prescrita para garantir a manutenção da tolerância, chega na forma de um iogurte e meio, ao final da tarde. “Agora já nem leio rótulos”, conta a mãe, Catarina Silva, como quem relata um ato de rebeldia.
Compreende-se. A filha tinha apenas 15 dias quando recebeu a ordem de marcha para o hospital. Depois de um início de vida com um mal-estar permanente, confundido com uma infeção urinária, o sinal de alarme surgiu em forma de mãos e pés inchados. Aí a pediatra não teve dúvidas: alergia à proteína do leite da vaca. Confirmado o diagnóstico, com análises ao sangue, Catarina Silva passou a alimentar a filha com leite extensamente hidrolisado e deixou de fazer contas à vida. “Só sei que comprava latas que custavam 20 euros e davam para dois dias”, relata. Mesmo assim, nunca se viu aflita para dar de comer à filha. Mário Morais de Almeida recorda que, há 30 anos, o produto, essencial à sobrevivência destes bebés, tinha de ser importado.Depois veio toda uma aprendizagem. Horas e horas de volta dos rótulos. “Há trinta sinónimos para dizer leite de vaca”, exemplifica Filipe Benito Garcia, da mesma equipa de médicos que acompanhou Margarida. Catarina tornou-se a guardiã da boca da filha, o que implicava esclarecer família e amigos acerca dos produtos perigosos. “Às vezes, ligavam-me do supermercado, para saber o que podiam comprar.” Até ao final do 1º Ciclo, levou comida de casa. “Muito cedo aprendeu a rejeitar o que lhe ofereciam. Mesmo assim eu estava sempre com o coração nas mãos”, sublinha a mãe. Quando a filha chegou ao 5º ano, Catarina meteu na cabeça que haveria de comer o mesmo que os colegas. Enfiou-se na cantina da escola com a cozinheira e analisou as ementas com olho de detetive à procura do leite oculto. “Além do produto, é preciso ter em conta as marcas. Por exemplo, só um tipo de douradinhos era adequado.”
Os testes que são um embuste
Marlene Pequenão criou o blogue Copinho de Leite, para lhe servir como um “comic relief”, com alguma leveza, que é coisa que falta na vida destas crianças. E também para responder à forma como a sociedade vê os doentes alérgicos e os seus familiares. “Olham-nos de lado, acham que é tudo um exagero e que somos um bocado histéricos.” A culpa, considera, é também da moda das intolerâncias, que nem sempre são reais, e estão mais associadas a dietas do que a doenças.
Veja-se o caso de Inês Custódio, 43 anos, que, sem qualquer queixa ou sintoma além de querer controlar o seu peso, se deparou, de repente, com dois cartões cheios de nomes de alimentos que supostamente não tolerava. Isto depois de fazer os testes sanguíneos, que estavam muito em voga há uns anos, e que os especialistas não se acanham a classificar como falsos. Andou quase um ano a seguir a dieta à risca, deixando de lado o trigo, o centeio e os laticínios, mas não sentia qualquer diferença no organismo. Ou melhor, sentia: “Passei a alimentar-me muito bem, com base em produtos de grande qualidade, como manteiga de búfala.” Alguns hábitos ficaram-lhe de herança, como usar farinha de castanha, e faz por preservar os ensinamentos nutricionais que lhe passaram na altura. Emagrecer é que nada, pois não era intolerante ao açúcar, ironiza, e vingava-se a inventar bolos com farinhas alternativas, que por azar ficavam deliciosos.
Inês soube, entretanto, que os tais testes não têm valor científico. “São um embuste e o pior é que chegam a fazê-los às crianças”, alerta a pediatra Ana Isabel Diniz. Por seu lado, a presidente da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC), Elisa Pedro, acentua essa ideia, usando um sinónimo, “aldrabice”, para classificar os testes comercializados em farmácias e clínicas de bem-estar. Na verdade, explica a médica, aquelas tabelas só nos dizem que houve contacto com os tais alimentos.
Mas há quem seja, de facto, intolerante. Aida Ferreira tinha perto de 40 anos quando começou a sentir-se mal de cada vez que comia legumes crus ou algum tipo de fruta mais ácida. Aos poucos, foi deixando de comer esses produtos que lhe provocavam cólicas, como a laranja ou a manga. Ao mesmo tempo, parou de beber leite e todos os seus derivados. “Ainda arrisco no queijo, que é o que o meu organismo tolera mais”, confessa. De resto, opta pelas alternativas de soja ou outras bebidas vegetais.
As suas intolerâncias são mais do que fundamentadas, apesar de nunca ter feito qualquer exame que as oficialize – Aida descobriu mais tarde que sofria de doença de Crohn, uma patologia inflamatória autoimune que atinge o intestino. “Na intolerância, sentimos o que nos faz mal, porque nos causa indisposição, e então deixamos de comer esse alimento”, explica, resignada, aos 63 anos.
Além desta técnica de tentativa e erro, há formas de determinar se uma pessoa tem alguma intolerância, pelo menos aos principais culpados, que são o glúten, proteína presente na maior parte dos cereais, e a lactose, o açúcar do leite. Em análises ao sangue pode testar-se a presença de anticorpos contra cada uma destas substâncias (no caso da lactose, também está disponível um teste respiratório).
Até o giz tem caseína!
A intolerância não mata; a alergia sim. E, por isso, são as crianças alérgicas que acabam por representar um desafio extra. Especialmente para as escolas. “Escrevo muitas cartas com recomendações, a pedido dos pais. E é comum, nos privados, tentarem empurrar a criança para outro estabelecimento”, denuncia Ana Isabel Diniz.
Uma das missões da Alimenta, Associação Portuguesa de Alergias e Intolerâncias Alimentares, é a formação na comunidade escolar. Depois de receberem pedidos de associados, destacam uma equipa para fazer uma detalhada explicação dos sintomas e de como se deve atuar no caso de algum aluno ter uma reação alérgica. Também mostram como um estabelecimento de ensino se deve adaptar para receber uma criança com esta patologia. “Até há materiais que podem esconder produtos perigosos, como o giz, que tem caseína, uma proteína do leite”, nota José Luís Dias, da direção da associação e pai de um menino multialérgico (glúten, ovo, leite, marisco, frutos secos e alguns peixes).
Para demonstrarem como se usa a caneta de adrenalina, que deve ser administrada em caso de complicações respiratórias, utilizam as que estão fora de prazo e assim suavizam o problema da fraca durabilidade deste medicamento. Cada caneta pode custar entre 30 e 50 euros e tem, no máximo, um ano e meio de validade (às vezes, as que se encontram nas farmácias já só duram três meses). Considerando que cada doente deve ter pelo menos duas prontas a serem aplicadas (normalmente são mais, porque ficam na escola, em casa dos avós ou noutros locais por onde passam regularmente), é uma renda cara de manter.
O número crescente de crianças e adolescentes com alergias e intolerâncias alimentares fez com que Direção-Geral da Educação, em parceria com a Direção-Geral da Saúde (DGS), elaborasse um documento referencial para apoiar as escolas na resposta às necessidades destes alunos. Em 21 páginas, explica-se o bê-a-bá do problema alimentar e quais os principais produtos a excluir consoante o tipo de alergia, as diferentes formas de constar na rotulagem e até os alimentos processados que podem conter o alergénio. No caso do trigo, por exemplo, refere-se a sua presença em delícias do mar ou no molho de soja.
Também existem cursos online, da Faculdade de Ciências da Nutrição da Universidade do Porto, dirigidos a profissionais de escolas e da restauração. “Percebemos que havia uma enorme falta de conhecimento – as pessoas não sabiam que encostar o saco do gelo ao peixe congelado, por exemplo, pode ser um problema para estes pacientes”, justifica a investigadora Inês Pádua, responsável por estas formações.
Ideal, defende André Moreira, imunoalergologista da Universidade do Porto, seria que Portugal fosse atrás do Canadá e do Reino Unido, os dois únicos países que têm legislação para as escolas, obrigando à existência de um plano de resposta a este tipo de problema. Melhor ainda, continua o especialista, se adotássemos o Finnish Allergy Programme, estratégia em que a Finlândia andou a trabalhar nos últimos dez anos. Neste momento, está em discussão no Parlamento Europeu para ser replicada noutros países do Velho Continente. “Trata-se de um plano de ação muito prático que permite melhorar as condições de segurança do doente alérgico e do sucesso do seu tratamento”, explica André Moreira.
Alergénicos à vista
Enquanto esse plano não se replica, a restauração tem de guiar-se pelo regulamento 1169/2011 da União Europeia, que veio obrigar os profissionais do setor a fornecer informação sobre os principais alergénicos presentes nos produtos alimentares de venda ao público. Também faz referência à rotulagem dos géneros alimentícios. O decreto-lei nacional 26/2016 fixa as normas de prestação de informação relativas aos géneros alimentícios não embalados.
Ao mesmo tempo, a DGS publicou, em 2016, um manual dirigido a quem serve refeições, porque os restaurantes são um problema real para quem tem um familiar alérgico. Há quem deixe de ir comer fora, quem ligue antes a fazer um interrogatório, quem desista do programa porque as respostas do lado de lá não convencem. “Esta publicação tem uma componente pedagógica para que os profissionais compreendam melhor o fenómeno. Conhecer a composição alimentar é fundamental, porque a questão não se esgota no produto final – toda a cadeia está envolvida”, defende o nutricionista Pedro Graça, diretor do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável.
Informação online é coisa que não falta. Senão navegue-se até às Receitas Sem Alergias, um site desenvolvido pelos alunos de André Moreira, da cadeira de Imunologia na Faculdade de Ciências da Nutrição do Porto. Esta plataforma, de uso muito intuitivo, é dirigida aos pais e aos cuidadores de crianças com alergias e contém alternativas culinárias aos alimentos proibidos. Por exemplo, ensinam a fazer pastéis de nata com farinha de milho, leite de coco, natas, bebida de soja e rolos de massa folhada vegan. No final da descrição, há um vídeo em que se assiste à execução da receita. Sim, porque tudo foi experimentado por alunos e professores. Não é por acaso que o site está cheio de doces – “os ambientes de festa, onde as crianças não conseguem ser iguais aos outros, são os que causam mais constrangimentos”, expõe André Moreira.
Overdose de chocolate
Numa família com historial de asma, eczema ou até rinite, muitas vezes desvalorizada, há um maior risco de sensibilidade alimentar. Este perfil de atopia deve ser considerado no esquema de introdução dos alimentos nos bebés. “Houve uma mudança nos últimos anos”, diz a pediatra Ana Isabel Diniz. Mantém-se o esforço de prolongar a amamentação o máximo de tempo possível, mas agora com a nuance de aproveitar a proteção conferida pelo leite materno para introduzir os novos alimentos, por volta dos 4 a 6 meses. “Nas famílias muito alérgicas, o que se faz é atrasar o peixe e o ovo, que vão entrando na alimentação em doses mínimas”, explica a pediatra.
“É uma doença da família”, sublinha a imunoalergologista Elisa Pedro, que segue no seu consultório Neil e Ricardo Walker. O pai tem eczema, alergia ao pelo de gato e ao de cão. Ricardo já foi alérgico ao ovo, ao chocolate, ao morango, à laranja, ao pelo de cão e ao marisco. Com o passar do tempo, deixou de o ser. Aos 20 anos, lembra-se perfeitamente do dia em que recebeu a notícia de que já podia comer chocolate. “Tinha 6 anos e foi uma overdose, foi chocolate de manhã à noite.” Não teve reação alérgica, já os intestinos…
Por volta dos 15 anos, foi o marisco. Resultado: mariscada para toda a família, em jeito de celebração. Hoje, Ricardo mantém a alergia ao peixe, o que até foi motivo de inveja quando os colegas da escola o viam a comer um bife no dia da pescada cozida.
Entretanto, descobriu que já consegue tolerar atum e salmão, o que lhe permite ir a restaurantes japoneses e lambuzar-se com sushi – desde que não haja confusões, porque basta a faca de corte ter sido usada em peixe branco para começar logo a sentir qualquer coisa estranha na boca.
Bichos do mato
Nem toda a gente consegue processar bem os constrangimentos provocados pelas alergias. E é por isso que Cátia Lopes, psicóloga, criou na sua clínica, em Coimbra, uma consulta direcionada a estes doentes. E também por não existir este tipo de apoio nos hospitais – ao contrário da diabetes, por exemplo, as alergias não são encaradas como doenças crónicas.
No entanto, como já se viu, o impacto nos pacientes e nos familiares é enorme. Há que aprender a lidar com todas as limitações, saber recusar alimentos, reduzir a ansiedade, o medo de morrer e a tendência para a depressão. “Não é de descartar o risco de isolamento social, porque muitas vezes torna-se complicado ir a almoços e jantares. Mais ainda em Portugal, onde tudo gira à volta da mesa”, esclarece Cátia Lopes.
Em mais de 40 anos, Cristina Jacinto nunca teve problemas à mesa. No entanto, agora, por receio dos alergénicos ocultos, até se submete à prova de provocação no Hospital de Dia do Santa Maria, em Lisboa. Há dois anos, apanhou um susto depois de comer um belo prato de camarão que a deixou com manchas vermelhas no peito, inconsciente e com violentas manifestações intestinais.
Nos testes cutâneos que fez a seguir ficou provada a alergia àquele alimento. Para os outros mariscos, por enquanto, parece não haver problema. Mesmo assim, os especialistas que a acompanham só lhe darão carta branca depois de passar na prova. Há três meses, Cristina esteve uma manhã inteira sentada numa cadeira, de soro no braço e sob vigilância apertada, a testar a sensibilidade à amêijoa. Esta semana, repetiu o procedimento para o mexilhão. Na segunda-feira, levou o molusco até à cozinha do hospital, a dietista preparou-o, separando-o em oito caixas com doses que vão dos 100 miligramas aos 100 gramas. No dia seguinte, o médico de serviço foi-lhe dando as doses em intervalos de 15 minutos, sempre atento a uma eventual reação. Cristina passou no teste. Tudo isto não por ser uma especial apreciadora de marisco, mas para prevenir sustos com alergénicos escondidos. “Ainda no outro dia ia comprar umas almôndegas vegetarianas e reparei que tinham vestígios de crustáceos.”
Nos adultos não desaparece
Apesar da boa notícia que acabou de receber, é pouco provável que Cristina um dia se livre da reação ao camarão. Elisa Pedro, presidente da SPAIC, sublinha-o: “Quando a alergia aparece em adulto, é muito raro passar.”
A psicóloga Cátia Lopes, 36 anos, passou a meia-noite dos seus 20 anos a acordar numa cama de hospital, depois de um inesperado choque anafilático enquanto comia nozes. A reação foi surgindo aos poucos, começando com uma dor de barriga que acabou em desmaio, sem que ninguém imaginasse o diagnóstico. Esse veio depois, em forma de sigla. Cátia sofre de um tipo de alergia típica dos adultos, a LTP, que quer dizer proteínas portadoras de lípidos, presentes em vários legumes e frutas. “Tem sido uma descoberta diária”, conta, conformada. Sabe que não pode tocar em pêssegos, ameixas e outros frutos com caroço, nem em brócolos. “Vou controlando e arriscando. Mas sei que se associar à ingestão o exercício físico, vou provocar uma reação.” De facto, tal como as infeções e o período menstrual, também a atividade física é potenciadora de alergias.
Agora fala assim, com aparente leveza. No entanto, houve uma fase, quando foi mãe, em que não lidou nada bem com o assunto, pois tinha pavor de morrer. Valeu-lhe o facto de o marido, que também é psicólogo, chamar-lhe a atenção para os comportamentos demasiado restritivos que estavam a afetar toda a família. Mas nem por isso voltaram atrás na decisão de não fazer viagens de avião mais longas do que três horas, aquela distância a que sabe que podem aterrar de emergência caso sofra de um choque anafilático. “As viagens são sempre um stresse, as férias uma preparação constante e os casamentos as ocasiões onde passo mais fome”, enumera.
O pior é privar as duas filhas, de 8 e 3 anos, até agora livres deste mal, de alguns alimentos por causa das suas próprias alergias. As meninas não ingerem pêssegos ou frutos secos, porque se o fizerem Cátia fica com receio de lhes dar beijos. E esse é um medo que uma mãe, ainda que alérgica, não pode ter.
(Artigo publicado na VISÃO 1333.)