A acelerar numa Yamaha a quase 200 quilómetros por hora, Pedro Nuno Romero mal vislumbra a pista para lá da piloto espanhola que persegue. É a terceira volta do Grande Prémio de Aragão, e as motos permanecem juntas, umas atrás das outras, como mandam as leis da física e dos desportos de velocidade, com a adrenalina a mil.
Duas ou três posições à frente do português de 16 anos, um motor parte-se. A espanhola guina o volante e desvia-se, no último instante, do óleo derramado no asfalto. Pedro Nuno não vai a tempo: quando as rodas tocam o líquido escorregadio, é o caos no circuito. “Nem deu para os comissários levantarem as bandeiras de perigo. Caí a 194 km/h, fui bater na moto da rapariga e fiquei ali no meio”, descreve o piloto de Vila Franca de Xira, a propósito do acidente ocorrido a 16 de julho de 2017. “Acabei atropelado por uma ou duas motos, das oito que caíram. Deitado de barriga para baixo, o meu pé ficou virado para cima. Chegaram a pensar que era a peça de uma moto. Um filme de terror.”
O pior, naquele momento, não era o pé virado ao contrário. Nem a fratura exposta da tíbia. Nem as outras fraturas, na perna e na coluna. O maior problema eram os “mais de dois litros de sangue” perdidos devido ao corte numa artéria do pé. “O diretor de prova e o diretor clínico do circuito temeram pela minha vida”, deixa escapar. Depois de lhe injetarem adrenalina e de o sedarem por causa das dores, Pedro Nuno foi transportado de ambulância para o hospital mais próximo, onde o submeteram a uma primeira cirurgia para remediar a fratura exposta e evitar mais perdas de sangue.
A gravidade das lesões, porém, aconselhava a que fosse assistido no Hospital Miguel Servet, na cidade de Saragoça, a cerca de 100 quilómetros do circuito. Às 21 horas do mesmo dia, dava entrada no bloco operatório e por lá permaneceria até às cinco da madrugada. “Fizeram-me uma transfusão sanguínea e exames completos. Chegaram a pôr a hipótese de me amputar a perna. Tinha seis ossos partidos: tíbia, perónio e fémur, na perna, o maléolo interno e externo, no tornozelo, o talus, no pé, e a vértebra L3.”
Nessa primeira intervenção cirúrgica em Saragoça, os médicos concentraram-se em endireitar os ossos do membro inferior esquerdo, tendo para isso “forçado uma fratura exposta do fémur” e aplicado ferros de suporte no exterior. A correção da vértebra ficou para dois dias mais tarde – dois ferros e seis parafusos sustentam ainda hoje a coluna de Pedro Nuno, que não sairia de Espanha sem uma nova operação, outra vez à perna esquerda, para trocar os ferros externos por outros internos, na zona da tíbia.
Ascensão interrompida
Ao cabo de 17 dias internado no país vizinho, cinco dos quais nos Cuidados Intensivos, Pedro Nuno regressava finalmente a Portugal. Consciente de que teria de passar por mais operações, inconformado com o fim precoce de uma carreira até ali promissora. Já por quatro vezes campeão nacional de motociclismo, entre os 11 e os 15 anos, em diferentes categorias, representava naquela época a Yamaha Espanha, então detentora do título, na classe Superstock 600, no Campeonato Espanhol de Velocidade – uma espécie de antecâmara do Mundial de Superbike e com saída, também, para o Mundial de MotoGP, os dois expoentes máximos do motociclismo.
O quinto lugar obtido na campanha anterior, com uma estrutura privada liderada pelo seu pai, suscitara a cobiça das principais equipas. O jovem português escolheu a campeã, comprometeu-se por dois anos, mas logo à quarta corrida, tombado na pista e com a vida por um fio, o destino trocava-lhe as voltas. Inglório, no mínimo. Demasiado para se resignar a um adeus tão prematuro.
“Os médicos prepararam-me psicologicamente para o pior, nem sequer colocavam a hipótese de eu poder voltar. Mas nunca perdi a esperança”, conta agora, mais de um ano e meio após o acidente, no complexo de piscinas do Estádio Nacional. É ali que passa as manhãs de segunda a sexta, a reabilitar um “corpo em obras”, como gosta de dizer, em sessões de fisioterapia e reforço muscular. Neste tempo, acumulou dez cirurgias, a mais recente realizada a 29 de janeiro. Retiraram-lhe a estrutura metálica que tinha agarrada à perna, desde 4 de dezembro, com o propósito de ampliar o espaçamento na articulação do pé, motivo de dores fortes. “Era a chamada artrose, osso com osso. Foi um passo atrás na recuperação para dar dois à frente”, afirma o piloto, já maior de idade e com a confiança revigorada, depois de se ter sentido “bastante perdido” em 2018: “A recuperação estava a estagnar, ouvi outras opiniões e decidi mudar de médico.”
Provavelmente, Pedro Nuno ficará para toda a vida com alterações ao nível da sensibilidade do pé esquerdo e não conseguirá movê-lo, lateral e verticalmente, em toda a extensão. Também nunca mais poderá correr, “só por milagre”. Mas nenhuma dessas limitações o condiciona no seu desporto favorito, garante. Em meados de março, foi dado como apto para a competição. Uns dias antes, adivinhando a boa nova, já havia “matado algumas saudades” em cima da moto, no Autódromo do Estoril. No fim do mês, com aprovação médica plena, voltou a treinar-se na pista mais famosa de Portugal. As dores que persistem ao caminhar dissipam-se sobre rodas. “Senti-me superbem e ainda fiz bons tempos”, ri-se, animado com as respostas do corpo.
Hora de despertar
A reabilitação psicológica andou sempre adiantada em relação à física. A terapia, explica o piloto, passou por “dramatizar o menos possível”. E medo de novas quedas, nada? “O acidente não aconteceu por um erro meu, e atropelado também posso ser a atravessar na passadeira.” Este otimismo contagiou os mais próximos. “Com a minha força e a minha resistência, motivei as pessoas à minha volta para se prepararem para o meu regresso, principalmente os meus pais e o meu irmão, que desistiu do motocrosse por causa de um acidente. Obviamente, depois disto tudo, eles não queriam, mas nunca deixaram de me apoiar.”
Se tudo correr bem, a derradeira cirurgia, para remover os ferros e os parafusos da coluna, terá lugar no final de 2019. Na escola, o 12º ano deverá ficar concluído neste verão, após o ano perdido em 2017-2018. Quanto às corridas, o regresso aconteceu este fim de semana, no arranque no Campeonato Nacional de Velocidade, no circuito do Estoril. Pedro Nuno venceu a corrida de sábado e terminou a de domingo no terceiro lugar, assumindo a liderança na categoria-rainha de Superbikes, com 41 pontos.
Ele mantém o sonho de chegar a um mundial de motociclismo, de Superbike ou de MotoGP, mas sabe que vai ter de recomeçar do zero, com a sua equipa privada, “para ver o que dá”, agora na categoria-rainha de Superbike 1000cc. A única certeza é a de que não vai desistir ao primeiro revés. “Na ambulância, a caminho do primeiro hospital, estava a apagar-me. Os bombeiros perguntaram-me o nome, o número da moto, o nome da equipa, até que deixei de responder. Levei uma estalada e despertei logo.” Quase dois anos depois, o despertar é na pista.