É fatal como o destino. Mais cedo do que tarde, haverá lá por casa mais um eletrodoméstico para reciclar. Depois de décadas em que se fazia de tudo para ter o último grito das consolas, está a chegar a hora em que o objeto de desejo de milhões de apaixonados pelos videojogos se vai tornar totalmente obsoleto. Tal como aconteceu com as séries e os filmes, também os jogos estão a chegar às plataformas de streaming. Com o anúncio, na semana que passou, de que a Google vai avançar, já este ano e em força, com o Stadia, o futuro acabou de ficar bem mais perto.
Chamam-lhe a “Netflix dos jogos” e o conceito é exatamente o mesmo: basta um ecrã e uma ligação à internet, para ter acesso a uma vasta carteira de jogos de alta qualidade, passíveis de ser jogados em qualquer lugar, a qualquer momento, sem necessitar de comprar uma consola, um computador ou outro tipo de hardware. O Stadia, apresentado no dia 19 de março por Sundar Pichai, CEO da Google, durante a Conferência de Programadores de Jogos em São Francisco, nos Estados Unidos da América, será uma plataforma de videojogos com qualidade AAA, assente nos poderosos servidores da gigante tecnológica, que permitirá aos utilizadores usarem qualquer um dos seus dispositivos (televisão, computador, smartphone ou tablet), para jogar instantaneamente e em qualquer lugar, sem necessitarem de descarregar qualquer ficheiro ou fazer atualizações.
Mas a Google oferece mais: garante que a sua poderosa cloud conseguirá oferecer velocidades de processamento superiores às de uma PlayStation 4 e Xbox One juntas, prometendo, desta forma, uma experiência de utilização em tudo igual, ou até superior, à das consolas mais vendidas atualmente. A juntar a tudo isto, há ainda um pequeno comando remoto, especialmente desenhado para melhorar a utilização do serviço. Este não é um gadget obrigatório, mas o facto de poder estar diretamente ligado por wi-fi aos servidores da Google vai melhorar a experiência de utilização e realizar, recorrendo apenas a um botão, ligações instantâneas, por exemplo ao YouTube. E para quê, perguntará o leitor? Para, por exemplo, começar de imediato a jogar um jogo cujo trailer se está a assistir. Ou, mais importante ainda para muitos gamers, partilhar de imediato imagens dos seus melhores desempenhos.
Um admirável mundo novo que promete transformar por completo o panorama dos videojogos – não apenas a nível comercial, sendo que este é já o setor mais rentável da indústria do entretenimento em todo o mundo (gerando receitas de 125 mil milhões de euros por ano), mas sobretudo a nível do consumidor. Tal como aconteceu com a indústria do cinema e da televisão, com o aparecimento de plataformas como a Netflix, a Amazon Prime ou a HBO, a entrada decidida da Google no streaming de jogos irá mudar por completo a forma como se vai passar a consumir videojogos. E vai obrigar os principais operadores deste mercado, tradicionalmente apostados na venda de consolas, a acelerar os seus planos de passagem para a cloud.
Dúvidas e desafios
Esta mudança profunda não é surpresa para ninguém. Há muito que se previa a passagem dos jogos para o streaming e este anúncio da Google veio apenas confirmar essa inevitabilidade. No entanto, a apresentação do Stadia, ainda que bombástica, não vai conseguir, por si só, alterar de hoje para amanhã o mundo dos videojogos. É verdade que a sua entrada em funcionamento nos EUA, Canadá e Europa foi anunciada já para 2019, mas são ainda inúmeras as dúvidas que se levantam e os desafios que tem pela frente. A primeira grande questão prende-se com o preço. A Google tudo fez para evitar a resposta, pelo que não é possível saber-se quanto custará ou como vai funcionar o sistema de pagamentos de acesso ao serviço. Vai haver, à semelhança do negócio dos filmes, uma subscrição periódica para se poder jogar? Essa subscrição será válida para todos os jogos em carteira ou terá de se pagar por cada jogo individualmente? E aqueles jogos que as pessoas já compraram para as consolas e o PC, vão estar disponíveis no Stadia? E terá de se pagar, outra vez, para os jogar? Está tudo no segredo dos deuses, por enquanto.
Depois, há a questão de se saber que jogos estarão disponíveis. Sim, porque não há ainda conteúdos desenvolvidos para esta plataforma. Nem novos nem versões dos antigos. É por isso que muitos analistas defendem que o facto de a Google ter escolhido uma conferência de programadores para anunciar o lançamento antecipado desta nova plataforma foi, sobretudo, uma forma de os espicaçar a acelerar os projetos para o streaming.
Outra questão não respondida, que preocupará a maioria dos gamers, é a da propriedade. Não tanto do jogo em si – atualmente assegurada pelo facto de se ter de o comprar, seja fisicamente num disco seja por download –, mas principalmente dos registos e recordes. Quem joga, sabe que não consegue ultrapassar todos os desafios à primeira e gosta de guardar os seus desempenhos para memória futura. Como é que isso será assegurado numa plataforma de streaming?
Cabeça na nuvem
Finalmente, surgem as questões técnicas. E, para essas, a Google também não tem ainda respostas. A primeira delas tem que ver com a qualidade de imagem. O que é prometido são imagens em alta definição, com qualidade 4K (a empresa diz mesmo que está já preparada para o 8K) e altíssimas velocidades de processamento dos seus servidores. Mas, como tudo assenta em ligações de internet, todo o sistema pode ser comprometido se as velocidades de download não garantirem uma qualidade irrepreensível de streaming. E se é certo que quem vê um filme até pode admitir que, pontualmente, surja alguma latência no visionamento, já no caso de um jogo de ação, qualquer pixelização de imagem ou microssegundo de atraso é imperdoável para um jogador que se preze.
Quer isto dizer que serviços como o Stadia vão estar dependentes da velocidade de internet à disposição dos utilizadores. Dizem os especialistas que, para um serviço destes, serão necessários, no mínimo, 40 a 50 megas de velocidade média de download. Algo que, hoje em dia, e numa altura em que o 5G é ainda uma miragem, acontece fundamentalmente nos grandes centros urbanos e com a internet fixa. Ou seja, em casa ou nas empresas. A ideia de que se pode jogar em qualquer lugar poderá, assim, ficar um pouco comprometida.
Incógnitas à parte, e mesmo antes da chegada do todo poderoso 5G, restam poucas dúvidas de que o caminho é por aqui e que, de uma forma ou de outra, toda a nossa vida passará a funcionar em torno de um dispositivo com um ecrã e uma ligação à internet. E que passaremos todos a andar, literalmente, com a cabeça… na nuvem.
O que anda a fazer a concorrência
Com a apresentação do Stadia, a Google parece querer liderar a passagem do negócio dos videojogos para o streaming. Mas como se estão a preparar os players tradicionais deste negócio? Para as empresas que desenvolvem jogos, esta é apenas mais uma plataforma de distribuição – aquilo que já faziam para as consolas e os computadores, passarão a fazer também a pensar no cloud gaming. Pior estão gigantes como a Sony, Microsoft e Nintendo, líderes do negócio das consolas que, até à data, têm conseguido sobreviver e, até ver, os seus lucros cresceram, apesar do aumento do mobile gaming, que já representa mais de metade do negócio dos videojogos. Sony e Microsoft têm, aliás, preparada mais uma geração de consolas para lançar em breve: a sucessora da PlayStation 4 deve chegar ao mercado em 2020 e a nova Xbox One pode estar nas lojas já este ano. Também têm na agenda a sua própria passagem para a nuvem. A Sony com o PlayStation Now, um serviço de streaming que permite jogar alguns clássicos da PS2, PS3 e PS4, quer na consola quer em PC; e a Microsoft com o Project xCloud, tal como a Nvidia, cujo programa GeForce Now está em fase beta.