Desde que Henry Ford desenvolveu, em 1913, a primeira linha de montagem para fabricar carros, que a indústria automóvel não sofria tantas e tão rápidas alterações. Enquanto muitos se preocupam com o futuro a longo prazo – a supremacia dos veículos totalmente autónomos e as soluções integrais de mobilidade –, outras transformações estão a acontecer e a modificar um dos setores mais importantes para a economia mundial.
Após anos e anos a vender as tradicionais berlinas e sedans, com estilos e tecnologia que iam evoluindo ao longo dos tempos, o mercado automóvel era muito fechado nas tipologias de carros que desenvolvia. E mesmo alguns conceitos mais disruptivos acabavam por “morrer” poucos anos depois. Esse foi o futuro vaticinado por muitos especialistas quando surgiu o conceito dos SUV, designação que vem do inglês sport utility vehicle e que se refere a veículos ligeiros, com posição de condução elevada e uma utilização mais diversificada. Só que aconteceu o contrário. O que parecia ser uma moda passageira, acabou por se tornar um fenómeno de massas e um dos elementos que criaram uma das maiores agitações nesta indústria.
“Já não é uma tendência. É uma certeza. Em Portugal, em termos de vendas, os SUV já ultrapassaram o segmento C e estão quase em paridade com o segmento B. É um segmento tão importante, que nós, indústria, já os dividimos em cinco categorias”, diz Armando Carneiro Gomes, country manager da Opel Portugal. O segmento B, no qual se enquadram carros como o Peugeot 208, e o C, que compreende modelos como o Opel Astra, são os que tradicionalmente mais vendem no nosso país.
No final de 2018, os SUV representaram mais de 28% das vendas de automóveis em Portugal. Ou seja, em cada três carros vendidos, um era desta categoria. O design apelativo, o caráter mais desportivo e um estilo disruptivo face ao setor automóvel tradicional são as grandes armas deste novo conceito, que começou a ser desbravado com o lançamento do Nissan Qashqai, um SUV que ganhou uma notoriedade mundial em poucos anos. O seu êxito foi tal que todas as outras marcas se viram obrigadas a criar produtos semelhantes. E nem a sua longevidade o deixa ficar mal perante os novos competidores que surgem quase em catadupa. No final deste ano, o Qashqai foi o segundo modelo mais vendido em Portugal. Aliás, na lista dos carros mais vendidos no nosso país surgem dois SUV nos cinco primeiros lugares.
“A Nissan abriu caminho com o Qashqai. Atualmente, todas as marcas têm pelo menos duas ou três ofertas dentro deste segmento”, reconhece Armando Carneiro Gomes. O SUV da Opel, o Crossland X, é o seu terceiro modelo mais vendido, logo a seguir ao Corsa e ao Astra, e representa quase 20% das vendas da marca, que agora pertence ao Grupo PSA. No entanto, com a alteração da classificação das portagens, a Opel lançou já dois novos SUV, o Grandland X e o Mokka que, em Espanha, por exemplo, é o modelo mais vendido da marca.
O conceito veio para ficar e poderá passar a ser dominante nos próximos anos, tal é a oferta que todas as marcas estão a fazer. Hoje, há mais de 30 modelos diferentes em Portugal, que vão desde o pequeno e humilde Dacia Duster até ao luxuoso Porsche Cayenne, passando pelos mais variados preços, gostos e tipologias. No prémio do Carro do Ano para 2019 estão inscritos 10 SUV, o dobro da segunda classe mais representativa, os familiares. Na edição do ano passado, foram 11 a concurso, o que espelha bem a euforia que se vive com este segmento.
E quase todas as marcas têm novos produtos em desenvolvimento para lançar nos próximos meses. Poucas horas antes do fecho desta edição, a BMW anunciava o lançamento de um luxuoso SUV elétrico, para competir com a poderosa Tesla.
O fim do diesel?
Não é só o crescimento dos SUV que está a marcar a indústria. Em Portugal, apesar do mercado automóvel ter crescido cerca de 3% em 2018, as vendas de carros a gasóleo baixaram 10,4%. Se olharmos mais para trás, em 2013, os diesel representavam 73% do mercado de ligeiros de passageiros; no final de 2018, a percentagem era de 53%, apesar do setor automóvel ter crescido mais do dobro no mesmo período. “As pessoas estão a fugir dos diesel porque acreditam que são mais poluentes e que acabarão por ser proibidos nas cidades”, diz Luís Mateus, diretor-geral da Mazda Portugal, fabricante que, para acompanhar esta tendência, acabou de lançar um motor a gasolina no CX3, o carro mais vendido da marca, em Portugal.
O cerco aos diesel começou quando várias cidades europeias, de Madrid a Helsínquia, anunciaram que iriam proibir a circulação de veículos com este tipo de motor. Porém, foi a própria indústria a dar um tiro no pé com o chamado Dieselgate. Tudo começou com a Volkswagen, mas depressa se percebeu que existiam várias marcas a ludibriar as entidades que fazem o controlo de emissões de partículas e gases poluentes. Luís Mateus reconhece que este caso “acabou por mudar a agulha para a gasolina”.
Os fabricantes estão bem conscientes desta mudança, e alguns já anunciaram que irão deixar de fabricar motores a gasóleo. É o caso da Volvo e da Smart. No entanto, nem toda a indústria parece concordar com esta estratégia. A Mercedes, por sua vez, aposta nos híbridos plug-in – que conjugam um motor a gasóleo com um elétrico, cuja bateria pode ser carregada através de uma tomada de corrente –, acreditando que poderá reduzir bastante o impacto do diesel no meio ambiente. A BMW também está a tomar medidas mais cautelosas. O chefe de produto da empresa, Klaus Frohlich, admite que a marca bávara irá ter motores de combustão interna durante muitos anos. “Num cenário muito otimista, admito que em 2030 iremos ter 30% de carros elétricos e 70% com motores de combustão. Se assumirmos que, destes 30%, metade será híbrido plug-in, terei um portfólio de 85% dos carros com um motor de combustão interna.”
Para se adaptar a esta nova tendência do mercado, a BMW lançou em 2017 o Serie 5 híbrido plug-in, com o objetivo de ter um custo de utilização semelhante ao do gasóleo. No ano passado, foi o carro híbrido plug-in mais vendido em Portugal. Quer sejam híbridos plug-in quer sejam veículos 100% elétricos, há uma clara tendência de crescimento na procura. Em Portugal, venderam-se mais elétricos em 2018 do que nos outros anos todos juntos.
A eletricidade é o “combustível” mais barato, mas, se fizermos bem as contas, a diluição dos custos de aquisição ao longo dos anos de uso do carro torna os elétricos pouco competitivos. Como é uma tecnologia recente, as marcas ainda estão a refletir no preço os custos da investigação e do desenvolvimento dos veículos. Só para termos um exemplo desta dimensão, a indústria automóvel gastará, em 2022, cerca de 255 mil milhões de euros em investigação e desenvolvimento de carros elétricos e 61 mil milhões nos veículos autónomos, segundo um estudo da consultora AlixPartners.
Custo de utilização
No entanto, com o aumento das vendas, os custos tendem a diluir-se. A consultora Deloitte fez um estudo recente no qual defende que, a partir de 2022, os custos totais, incluindo a aquisição e a utilização, passarão a ser iguais ao gasóleo. No entanto, este trabalho leva em conta os incentivos que a grande maioria dos governos, sobretudo na Europa, está a dar a quem adquire um carro elétrico. Se retirarmos esses incentivos da equação, o equilíbrio de custo só acontecerá em 2024. Apesar de ainda não serem mais baratos do que os seus rivais mais poluentes, no ano passado já se venderam 382 mil veículos totalmente elétricos e 453 mil híbridos plug-in na União Europeia, o que mostra que os europeus estão abertos a estas novas soluções para acabar com os efeitos poluentes dos motores de combustão interna.
O desenvolvimento dos veículos diesel na Europa disparou no final da década de 90 como uma resposta às alterações climáticas. Isto porque são mais eficientes energeticamente e, logo, libertam menos dióxido de carbono. Com base nesta premissa, o uso do gasóleo passou a ser subsidiado por muitos governos europeus. A quota de mercado dos carros diesel na Europa disparou de 3% para 37%, em 25 anos.
No entanto, os especialistas não tiveram em conta que os diesel libertam micropartículas, na forma de dióxido de nitrogénio, que penetram no sistema respiratório e são potencialmente cancerígenas. Essa é a principal razão que leva os mesmos governos que andaram a subsidiar o gasóleo a querer agora acabar com ele. Os diesel irão sofrer um enorme embate, mas não irão acabar tão depressa. Prevê-se que deixem de circular nas zonas urbanas como veículos de passageiros, mas manterão a sua supremacia no campo dos transportes de mercadorias. Talvez dentro de um século se escreva que o setor deu o passo mais revolucionário desde que Henry Ford desenvolveu o modelo T: o fim dos combustíveis fósseis nos automóveis.
Em contracurva
Já não é uma mera tendência. Os SUV estão a tornar-se dominantes e as vendas de veículos totalmente elétricos e de híbridos plug-in crescem de forma exponencial
28%
Quota de mercado dos SUV em Portugal, quase um em cada três carros vendidos. Há dez anos, tinham um peso de apenas 1,4%
835 mil
Número de veículos elétricos e híbridos plug-in vendidos em toda a União Europeia. Foram comercializados 382 mil elétricos e 453 mil híbridos plug-in
€255 mil milhões
Valor do investimento total da indústria automóvel até 2022, para investigar e desenvolver carros elétricos, segundo um estudo da consultora AlixPartners