O que ia acontecer no seu escritório só Deus sabia. Às mulheres e adolescentes dizia terem sido escolhidas para receberem a cura dos seus males de corpo ou de alma num atendimento individual. E elas iam, obedientes, habitualmente após um transe coletivo numa das salas da corrente de oração e, muitas vezes, semanas depois de ele lhes ter receitado cápsulas de passiflora, nome científico da flor do maracujá, conhecida por prevenir a depressão e ter uma ação calmante. Então a sós, e de porta trancada, virava-as para a parede, puxava-lhes uma mão para trás das costas e colocava-a sobre o seu pénis, murmurando como numa ladainha: “Você tem um excesso de energia e eu preciso de te limpar, fecha o seu olho e vai colocar toda a sua fé na sua cura, vai ter de confiar em mim.”
Era quase sempre este o modus operandi do médium brasileiro, quando não levava as suas vítimas a também lhe fazerem sexo oral ou a deixarem-no penetrá-las por trás, se fosse preciso ameaçando com o regresso da doença. Elas raramente gritavam ou ofereciam resistência – ficavam como que congeladas, relembram agora. Choravam, algumas choravam mesmo muito, mas as lágrimas nunca o detinham. Nada, aliás, parecia capaz de o deter, conclui-se ao ouvir Camila Correia Ribeiro contar no programa Fantástico, da TV Globo, como João de Deus a obrigou a masturbá-lo na presença do seu pai, autorizado a entrar no escritório desde que ficasse de costas, a rezar.
Só quando chegaram a casa é que Augustinho Ribeiro ficou a saber que todo aquele choro da filha, então com 16 anos, não era por causa de uma qualquer oração do médium para a curar de uma síndroma de pânico. Estávamos em 2008. Há mais de três décadas que João de Deus abrira a sua Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, uma pequena cidade do estado de Goiás, onde acorriam multidões que acreditavam no seu dom de curandeiro milagroso. E há mais de dez anos que o australiano Robert Pellegrino-Estrich pusera no mapa aquela cidadezinha a meio caminho entre Brasília e Goiânia, ao escrever a biografia The Miracle Man: The Life Story of John of God (João de Deus: O Curador e Seus Milagres). Ele era como um deus.
Ainda assim, a família Ribeiro avançou com uma ação por abuso sexual que terminou com uma juíza a ilibá-lo por falta de provas, em 2013. O julgamento decorreu em Abadiânia e, por essa altura, o acusado era já um homem todo-poderoso. No ano anterior, Oprah Winfrey viajara até ao interior sertanejo para conhecer ao vivo este médium cuja fama extravasara as fronteiras do Brasil. A entrevista que lhe fez, vestida de branco como mandam as regras na Casa, tornaria essa fama estratosférica – de repente, João de Deus passava a receber entre duas mil e cinco mil pessoas por semana, 80% das quais estrangeiras, com várias celebridades de permeio (ver caixa Eles também acreditaram...).
Apanhado em flagrante
Foi preciso passarem mais cinco anos para Camila, que entretanto se licenciou em Direito, acreditar que vai finalmente ser feita justiça. A sua entrevista-denúncia foi para o ar a 16 de dezembro último, no mesmo dia em que o médium se entregou à polícia, ficando detido preventivamente no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Nove dias antes, no programa Conversa com Bial, também da cadeia de televisão Globo, dez outras mulheres haviam contado os abusos sexuais às mãos de João de Deus, uma delas confessando aquilo que todas presumiram, anos a fio: “Pensei que fosse caso isolado e que ninguém ia acreditar em mim.” Nesse mesmo programa, a guia de turismo Amy Biank, uma antiga “filha da Casa”, contou como foi ameaçada de morte depois de ter apanhado o médium em flagrante a forçar uma mulher a fazer-lhe sexo oral. E, na manhã seguinte, o jornal O Globo trazia mais três depoimentos perturbadores.
Rapidamente se ficou a saber que por detrás da investigação do jornalista Pedro Bial estava a denúncia da coreógrafa holandesa Zahira Lieneke Mous e o empenho da ativista brasileira Sabrina de Campos Bittencourt, uma das criadoras do movimento COAME – Combate ao Abuso no Meio Espiritual (ver caixa Mulheres-coragem). E sobretudo percebeu-se que aquelas 13 mulheres eram apenas a ponta de um gigantesco icebergue que remonta à década de 80: até ao Natal, o Ministério Público já identificou 255 vítimas, brasileiras e estrangeiras, que à época dos crimes tinham entre 9 e 67 anos. E desde 7 de dezembro que todos os dias surge mais um pormenor destas audiências privadas, mais uma história. A mais recente está na capa da última edição da revista Veja – num depoimento chocante, Dalva Teixeira conta que foi vítima de abuso sexual por parte do médium da Abadiânia, entre os 10 e os 14 anos, em casa, no carro e em viagens. “Meu pai é um monstro”, acusa
Da primeira vez, a menina ainda lhe perguntou porque estava ele a tirar-lhe a roupa toda. “O pai vai fazer um trabalho espiritual com você, com Dom Inácio de Loyola [um dos 38 diferentes espíritos que o médium dizia incorporar]”, respondeu-lhe, despindo-se também ele e começando a roçar o seu pénis pelo corpo da filha. Os abusos só pararam quando Dalva ficou grávida de um funcionário da Casa. Ao saber disso, João de Deus pisou-lhe a barriga e bateu-lhe com uma vara de laçar boi, com uma bola de cimento na ponta, enquanto gritava “eu vou te matar”.
Passado de “bon-vivant”
O médium tem outros oito filhos, o mais novo atualmente com 3 anos, todos de mulheres diferentes. A quem criticava a sua inconstância amorosa, o antigo garimpeiro costumava responder nunca ter sido um santo – tem um passado de bon-vivant, gostava de se divertir, viajar e frequentar bordéis. Foi, aliás, assim que se apresentou no documentário João de Deus: o Silêncio é uma Prece, que o realizador Candé Salles filmou ao longo de cinco anos em Abadiânia e exibiu em outubro de 2017, no Festival do Rio. “Eu nunca curei ninguém, quem cura é Deus”, é a frase com que abre o trailer oficial.
Ao rebentar o escândalo que o dá como predador sexual, já há quem o diga rude e temperamental, mas é o máximo que mesmo agora se lhe aponta no lado da cidade conhecido por Abadyork (por causa da quantidade de estrangeiros residentes e visitantes), onde o médium se instalou em 1976. Uma semana depois das primeiras denúncias, as suas ruas encheram-se de dezenas de seguidores, vestidos de branco e empunhando cartazes, numa marcha de apoio. Em comunicado, ele rechaçava “veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos”; na véspera, “Seu João” reaparecera em público, indo à Casa para dizer às dezenas de funcionários e voluntários: “Eu sou inocente.”
Abadiânia tem a estrada nacional BR-060 a dividi-la, e na metade norte que alberga a Casa Dom Inácio de Loyola, 12 mil metros quadrados de pavilhões pintados de branco, debruados a azul-forte, há dezenas de lojas e pequenos hotéis, todos com o selo “Aprovados pela Entidade”. O alojamento fazia parte do tratamento, que obrigava a 24 horas de repouso após a “cirurgia espiritual”, que podia ser realizada com ou sem corte.
Com os pacientes interessados numa cura mais “visível”, João de Deus usava um bisturi para fazer incisões nas costas ou abaixo do peito, raspava o globo ocular com uma simples faca e enfiava pinças compridas nas narinas, revirando-as até fazer sangue – sempre sem qualquer anestesia. A todos os outros, receitava cápsulas de passiflora personalizadamente “energizadas” por ele e vendidas na farmácia da Casa, ao dobro do preço do praticado no exterior, e aconselhava a toma de uma água “fluidificada”, também caríssima.
Fazendas, carrões e um avião
“Centro internacional de peregrinação”, chamaram-lhe os mesmos jornalistas estrangeiros que agora assinalam a queda “do céu ao inferno” do médium feito predador sexual. A decisão de criar aquela atmosfera toda de branco, descrita por um repórter australiano do The Sydney Morning Herald como uma mistura de “sanatório sobrenatural e enorme festa do pijama”, surgiu por sugestão do médium brasileiro Chico Xavier (1910-2020), o seu mentor, que viu naquela localidade sempre coberta de uma fina camada de pó avermelhado o “recinto abençoado” para o discípulo seguir a sua “iluminada missão”.
Corria o ano de 1993 e João Teixeira de Faria – o seu verdadeiro nome – dizia-se perseguido pelos seus atos supostamente médicos. Abadiânia era terreno virgem em termos religiosos, com a vantagem de ser geograficamente próxima da terra onde nascera, Cachoeira da Fumaça. A aposta correu-lhe tão bem que, apesar de não cobrar pelas “cirurgias” nem pelas sessões (duas por dia, cada uma de quatro horas, três dias por semana, com as instruções traduzidas para inglês, francês e alemão), entre as doações, os banhos de cristal e as receitas da farmácia, da livraria, da loja de cristais benzidos e da água milagreira, ficou multimilionário. O seu império é hoje um grande ponto de interrogação, mas sabe-se que só em Abadiânia tem 28 imóveis, a que se juntam quatro grandes fazendas, uma mina de ouro, diversos “carrões” (adora) e um avião Seneca II.
Aos 76 anos, com o seu 1,80 m de altura, cordão de ouro, anel de esmeralda e o nome “John of God” bordado na lapela, João de Deus é uma espécie de xerife da terra, embora semianalfabeto. Filho de um alfaiate e de uma dona de casa, mais novo de seis irmãos, deixou a escola no 2º ano para ajudar ao sustento da família. Em jovem, tentou o garimpo de ouro e pedras preciosas, e fez uns biscates como alfaiate do Exército. Era ainda menino quando previu uma grande tempestade, e adolescente quando teve a primeira visão. Não se estranha, por isso, que, numa terra fértil em crentes, tenha andado as últimas quatro décadas a “incorporar” espíritos, vários deles médicos conhecidos, para supostamente curar quem o procurava – já disse ter acudido a mais de nove milhões de pessoas.
Embora tenha tido embates anteriores com a lei – além do caso Camila Ribeiro, foi apontado como suspeito do homicídio do amante de uma das suas ex-mulheres –, o médium não podia prever o que aí vinha. Considerava-se intocável. Agora, indiciado por violação de uma mulher que disse ter sido abusada em outubro último, e ainda pela posse de armas de fogo ilegais, encontradas numa busca, vai aguardar na cadeia pelo julgamento.
Apesar de o Código Penal brasileiro decretar o “prazo de decadência” dos crimes de abuso sexual que não tenham sido denunciados até junho último (a lei foi alterada recentemente, mas não é retroativa), basta os juízes considerarem que eles aconteceram mediante fraude para não terem prescrito. Segundo juristas citados pela imprensa brasileira, se a pessoa foi vítima de fraude e só percebeu que foi abusada após a revelação de outros casos, pode haver a interpretação de que o prazo de seis meses começa a contar a partir desse momento.
Por estes dias, o clima no lado norte de Abadiânia está muito instável. A Casa não fechou as portas, mas a farmácia foi proibida de produzir mais medicamentos, e, mesmo os que não morriam de amores pelo médium, temem pelo futuro dos seus negócios. No lado sul, o mais povoado e brasileiro, sorri-se perante a ideia de as urgências hospitalares deixarem de estar entupidas pelos doentes não residentes. A quase dez mil quilómetros de distância, nem Oprah quer continuar a ser acusada de promover um alegado predador sexual – a entrevista que fez a João de Deus já desapareceu dos seus arquivos online. Just in case.
Outros gurus religiosos acusados
Em audiências privadas ou mesmo durante cerimónias coletivas, são vários os relatos de abusos sexuais cometidos por líderes de comunidades religiosas. Todos se valeram da admiração dos seus seguidores
Prem Baba
Em setembro último, os ex-maridos de duas antigas discípulas da comunidade de São Paulo acusaram o guru espiritual brasileiro Janderson Fernandes de Oliveira, mais conhecido como Prem Baba, de abusar sexualmente das suas antigas companheiras. Ele não negou o envolvimento, mas alegou que se trataram de relações amorosas. Uma das mulheres contou ter acreditado que os exercícios de sexo tântrico se destinavam a ajudar a melhorar o seu casamento.
Swami Vivekananda Saraswati
O romeno Narcis Tarcau encerrou a sua escola de yoga em Ko Phangan, na Tailândia, depois de ter sido acusado de abusar sexualmente de, pelo menos, 14 mulheres. A comunidade ainda tentou resolver o assunto internamente, mas em setembro último o caso acabou por ser tornado público. Tarcau apalpava agressivamente as mulheres, penetrava–as com os dedos e obrigava-as a manter relações sexuais, dizendo-lhes: “Sei o que é melhor para ti.” O argumento era sempre o mesmo: estaria a ajudá-las espiritualmente.
Gurmeet Ram Rahim Singh
Em julho de 2017, o guru indiano que liderava o grupo religioso Dera Sacha Sauda foi condenado a 20 anos de prisão pela violação de duas seguidoras, em 2002. Segundo o advogado de uma das vítimas, foram investigados mais 48 casos de mulheres também vítimas de abuso sexual, mas o medo ou a vergonha terão ditado o seu silêncio. A detenção foi recebida com violência pelos membros da sua comunidade em Panchkula, no estado de Haryana, norte da Índia, a maioria dos quais ainda hoje se mantém fiel ao líder.
Marcelo Antonio Marques Prazeres
Juntamente com Leonardo Campello Ribeiro e Jayson Garrido de Oliveira, todos do Centro Espiritualista Semeadores da Luz, foi acusados em junho passado de terem abusado sexualmente de homens e mulheres, na sede do centro espírita, na Ilha do Governador, na zona norte do Rio de Janeiro. As vítimas eram apalpadas, masturbadas e penetradas.
Osho
Já nos anos 80, Bhagwan Shree Rajneesh era famoso como o “guru do sexo”. O indiano, mais conhecido como Osho, foi acusado de promover a “sexualidade aberta” para conseguir controlar os membros da comunidade – e não para acabar com as suas inibições.