Há meio mundo a separar Florianópolis de Kiev – geográfica e figurativamente. Culturas e experiências bem distintas, uma História que nunca se cruza e duas línguas que não partilham sequer o alfabeto. Os casais Fernando e Justine e Hanna e Misha estão até em momentos muito desiguais das suas vidas: o primeiro tem três filhos já praticamente criados; o segundo teve uma bebé há seis meses. É por todas estas discrepâncias que se torna mais surpreendente ouvir exatamente as mesmas expressões para descreverem o que procuraram – e encontraram – em Portugal. Um custo de vida comportável, segurança, oportunidades. Enfim, um bom sítio para viver.
As duas famílias não são apenas diferentes entre si. A vaga de imigração atual do Brasil e da Ucrânia não é de todo semelhante à de finais dos anos 90 e início dos anos 2000. As classes mais pobres dessa época, que vinham ocupar postos de trabalho pouco qualificados (construção civil, restauração…), deram lugar a uma classe média e média-alta, apostada em investir e criar o próprio emprego. Se o objetivo, antes, era vir a Portugal ganhar dinheiro no mais curto espaço de tempo para depois regressar a casa, agora é começar do zero e construir a vida por cá. Hoje, as pessoas vêm para ficar.
E ainda bem para o nosso país: os imigrantes precisam tanto de Portugal como Portugal precisa deles. Mesmo em cenários de crescimento económico débil, a nossa sustentabilidade demográfica, económica e social necessita de um saldo migratório positivo semelhante ao de há 20 anos, aponta o estudo Migrações e Sustentabilidade Demográfica, da Fundação Francisco Manuel dos Santos – mais exatamente 75 mil imigrantes por ano, só para manter a proporção atual de população em idade ativa.
O País das oportunidades
“As novas gerações já perceberam que o mais importante não é ter dinheiro. É ter qualidade de vida.” Fernando Peixoto, 43 anos, sabe do que fala. Em Florianópolis, Sul do Brasil, tinha tudo o que o dinheiro podia pagar: uma casa agradável, um bom carro e o conforto de viver sem preocupações financeiras, cortesia do sucesso da sua startup, apoiada num software de Inteligência Artificial, aplicada ao diagnóstico médico. Mas a casa tinha grades, e a sua mãe perdia o sono por saber que o filho andava num “carro importado”, isco de bandidos. No Brasil, o dinheiro não compra segurança – compra insegurança.
A saída seria inevitável. Portugal não foi a primeira opção, confessa. Apesar de ter passado por um esgotamento, continuava a sentir algum fascínio pelo espírito empreendedor californiano. O visto para os EUA, no entanto, foi-lhe negado, e o nosso país passou a estar no horizonte. “Nem sempre o que a gente quer é o que a gente precisa”, diz Fernando. Ainda que a contragosto, escapou à “roda de hámster”, ao “espírito do empreendedor obsessivo” dos americanos. O foco seria a família. Aliás, com a filha mais velha já nos 20 anos, esta era a derradeira oportunidade para construir um projeto familiar noutro país.
No final de 2015, Fernando, Justine, Gabriela, Luís Fernando e Manoela aterraram em Lisboa. A avó materna de Fernando, portuguesa de Castanheira de Pera, abriria o caminho das burocracias (o neto teria direito à nacionalidade); o pé-de-meia conseguido com a venda da sua empresa à gigante Intel Capital dar-lhe-ia para uma casa em Cascais e a liberdade de não ter de se preocupar com urgência de encontrar um ganha-pão.
Ao fim de seis meses, Fernando voltou a ter necessidade de se sentir útil. Começou por se tornar mentor de startups em Oeiras e Lisboa, antes de fundar duas empresas ligadas à tecnologia, mas avisou logo os sócios que só trabalharia dois dias por semana. É assim que aproveita o melhor dos dois mundos que Portugal tem para oferecer: tempo para gozar a vida e oportunidades para o empreendedor. “O mercado, hoje, é o mundo, não o país. Nós, aqui, estamos a meio caminho do mundo.” Os portugueses, acrescenta, sabem relacionar-se com os outros, com diplomacia, sem a arrogância de outros povos. “Portugal tem capital humano, qualidade de vida e um Governo que cria iniciativas para o empreendedor. E as novas gerações já perceberam que o mais importante não é ter dinheiro, é ter vida.”
O desafio é a mentalidade conservadora dos portugueses. Em contraste com o “plastificado” estilo de vida americano (cada vez mais emulado pelo Brasil), “o lado rústico e genuíno de Portugal é encantador e não se pode perder, mas tem de se equilibrar com a modernidade. Por exemplo, as pessoas aqui acham normal tirar uma senha no talho e esperar 40 minutos. Não é. A lentidão em Portugal, às vezes, é um charme, mas…”
Imigrantes que criam emprego
A imigração em Portugal tem quase tanta tradição como a emigração. No entanto, na História recente, o País foi visto poucas vezes como um verdadeiro e sustentado polo de oportunidades, e não apenas como um poiso temporário para se fazer dinheiro na febre da construção imobiliária e em grandes obras públicas, como no tempo da Ponte Vasco da Gama, da Expo 98 e dos estádios para o Euro 2004.
Hanna Lytvynenko e o marido, Misha Tsybulko, ambos com 30 anos, conhecem o percurso dos compatriotas que os precederam: trabalhar tanto quanto possível para regressar à Ucrânia, comprar uma casinha e viver pelo menos com as mínimas condições. Mas é precisamente disso que o casal está a fugir. “Em Kiev, trabalhávamos num restaurante durante 12 ou 13 horas por dia, seis dias por semana. Aqui, temos uma vida calma, com qualidade.”
Hanna e Misha vieram para o Algarve, no verão de 2015, trabalhar no restaurante de um amigo. Terminada a época, aventuraram-se por Lisboa. Arriscaram montar o seu Heim Café, de estilo contemporâneo, no então ainda relativamente decrépito bairro de Santos-o-Velho, e tiveram a sorte de apanhar a onda de mudança de Lisboa, que começou a ser invadida por turistas e gente nova. Decididos a trabalhar para viver, ao invés de viver para trabalhar, têm um horário das 9h às 18h, o que lhes dá espaço para se concentrarem no que interessa: a família, entretanto enriquecida com a bebé Emily. “Vou ficar mais descansado por saber que a minha filha vai crescer num sítio com qualidade de vida e segurança”, diz Misha.
As coisas correram tão bem que em junho inauguraram um segundo café, o Talk To Me, no Príncipe Real. No total, dão trabalho a mais 10 pessoas (de quatro nacionalidades). Contudo, mais do que a criação de empregos, os dois empreendedores preferem falar daqueles pequenos nadas que, somados, mudam tudo e diversificam sociedades, culturas e, não menos importante, paladares. Vide a ementa moderna, repleta de pratos de quinoa, aveia com leite de amêndoa, panquecas e cogumelos com cebola caramelizada. “Ao início”, recorda Hanna, “pediam-nos tostas mistas, que nós não temos. Então sugeríamos os nossos menus de pequeno-almoço com ovos mexidos. As pessoas provavam e gostavam. Temos um cliente desses que, passado um ano, continua a vir cá quase todos os dias pelos nossos ovos mexidos.”
Os salvadores da pátria
Portugal é um dos melhores países do mundo a receber imigrantes. No último Migrant Integration Policy Index (índice que mede, em várias áreas, o grau de integração em 38 dos Estados mais desenvolvidos), o nosso país surge consistentemente em segundo lugar, apenas atrás da Suécia. E temos todo o interesse em estender uma passadeira vermelha aos imigrantes, explica o investigador em Ciências Sociais João Peixoto. “Se fecharmos as portas, teremos um declínio muito forte da população e um envelhecimento elevadíssimo. A única forma de evitar esse cenário é através da imigração.” Não há política de natalidade que faça aumentar a população drasticamente, muito menos em tempo útil, esclarece. “A última vez que a Europa aumentou a sua fecundidade foi logo a seguir à Segunda Guerra Mundial.”
O professor do ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão) foi um dos coordenadores do estudo Migrações e Sustentabilidade Demográfica, que concluiu que Portugal tem de atrair 47 mil imigrantes, todos os anos até 2060, só para garantir a manutenção da população atual. Para sustentar económica, financeira e socialmente o País, porém, esse número sobe para os 75 mil – 3,4 milhões de entradas nos próximos 40 anos –, tendo em conta o aumento da esperança média de vida e o consequente peso que os reformados terão na segurança social. “O sistema está sob stresse. Dantes, tínhamos seis contribuintes para um pensionista. Hoje, o rácio está em três para um. Mesmo com o inevitável aumento da idade de reforma, precisamos de imigrantes para renovar a população”, acrescenta o investigador.
João Peixoto alerta que níveis migratórios tão altos podem implicar tensões sociais e políticas, como as que se veem já para lá dos Pirenéus. Um risco que vale a pena correr. “O pior que nos podia acontecer era fechar as portas.” Além disso, é enganadora a ideia de que os imigrantes vêm roubar o emprego aos portugueses. “Os estrangeiros são produtores e consumidores: multiplicam o emprego. E o mercado de trabalho está segregado. Muitos deles vêm fazer o que nós não queremos. Se não houver estrangeiros, milhares de empresas fecham. Sempre foi assim. Um jovem português não vai trabalhar num emprego desagradável. Vive à conta dos pais, à conta do Estado ou emigra para a Suíça. O desemprego não muda muito com a imigração.”
Portugal, neste momento, está a conseguir atrair gente até de países da União Europeia. E não são só os reformados do Norte da Europa. As nacionalidades que mais cresceram em 2017 foram os italianos (51%) e os franceses (35%). O que procuram, afinal, num país mais pobre do que o seu?
Veja-se o napolitano Andrea D’Angelo, 30 anos. Estudou sete anos em Berlim, onde aprendeu alemão e japonês. Pensava ir correr o mundo. Um amigo sugeriu-lhe que começasse por Lisboa; enviou então um currículo para um call center e uma hora depois ligaram-lhe. Daí a quatro dias estava na cidade, preparado para ficar um ano, antes de navegar para o ancoradouro seguinte. Isto foi há três anos. Não é o dinheiro que o move. “Sinto-me bem aqui, e o que ganho chega para viver com conforto.”
Não encontrou um território deprimido e pobre, como esperava, e garante que os portugueses não têm razões para serem tão derrotistas como são sobre eles próprios e o País – uma ideia que ainda passa muito para fora e que o levou a escrever um romance, baseado na sua experiência, com o título, satírico, Tutti Schiavi in Portogallo (Todos Escravos em Portugal). “Aqui, temos todas as razões para acreditar no futuro. E os imigrantes podem ajudar: as misturas culturais são sempre enriquecedoras. O confronto leva as pessoas a abrirem-se a novos conceitos. Se ficarmos presos e imóveis na nossa cultura, não evoluímos.”
Porque precisamos deles
– Com a baixa fecundidade dos portugueses e o aumento da esperança média de vida, o País será inviável sem imigrantes:
– Sem migração (nem entradas nem saídas), Portugal perde quase um quarto da população até 2060, passando de 10,4 milhões para 7,8 milhões de habitantes;
– Num cenário de portas fechadas, a população jovem reduz-se em 44%, os adultos em idade ativa decrescem 40% e a faixa com mais de 65 anos sobe 39 por cento;
– Para manter o volume atual de população em idade ativa, são necessários 3,4 milhões de imigrantes (75 mil por ano), o que resultaria num aumento da população para cerca de 12 milhões de pessoas;
– Com migrações zero, o saldo da Segurança Social atingirá -4,1% do PIB em 2060 ; com migrações de substituição, esse saldo fica nos -1,4 por cento;
– Os imigrantes são mais empreendedores do que os portugueses. Segundo os últimos Censos, quase 20% criou o seu próprio emprego , uma taxa superior à dos nacionais;
(Fonte: Migrações e Sustentabilidade Demográfica, da Fundação Francisco Manuel dos Santos – Censos 2011)