Como uma coreografia, Youssef ergue o bule bem alto e, sem errar o alvo, serve o chá de menta nos pequenos copos de vidro. O momento não é só para turista ver e tem razão de ser: misturam-se os sabores do chá verde “carregado” de açúcar e hortelã fresca, libertam-se odores. Sinal de hospitalidade, é tradicional que seja o homem a fazer e a servir o chá, delicioso, que tomamos sem pressa, sentados nos sofás do Dar Cherifa, café literário que se esconde para lá de uma porta de madeira num beco perdido da medina de Marraquexe.
A cidade de cor ocre, por decreto para não refletir a luz do sol, ou “porta do deserto” como lhe chamam, fundada no século XI por um nobre almorávida e que chegou a ser a capital de Marrocos, tem este quê de extravagante, haveremos de descobrir. O Dar Cherifa é um dos mais antigos riads (as casas das famílias ricas), “joia” do século XVI com arcos de madeira profusamente desenhados, devolvido há 15 anos à cidade, que acolhe também exposições de artistas marroquinos, concertos, conversas, entre outros encontros culturais. À mesa chega uma seleção de cinco saladas, espetadinhas de frango com gengibre e couscous com legumes, que se pode comer tanto no pátio que se abre ao céu como numa das salas forradas a tapetes ou mesmo no convidativo terraço. O sortido de pastelaria marroquina que remata a refeição inclui chamuças doces, cornes de gazelle (massa de amêndoa perfumada com flor de laranjeira) e faqqas (um biscoito seco, cortado às fatias), os mesmos que ajudam a quebrar o jejum diário durante o Ramadão (nono mês no calendário islâmico).
Nos compêndios turísticos de Marraquexe constam monumentos, jardins e mercados. Passamos pelo antigo bairro judeu (Mellah) e pela Madraça Ben Youssef (antiga escola corânica), visitamos o Palácio Bahia (conjunto de mansões e jardins do século XIX), os Túmulos Saadianos e ainda o Jardim Secreto, antes de nos perdermos pelas bancas de mil e uma especiarias, de doces tão doces que nem as abelhas resistem, da carne, dos legumes, dos grãos e doutras leguminosas.
Arte de regatear
No coração da medina (a cidade antiga, dentro das muralhas do século XII, com um perímetro de 19 quilómetros), os souks dividem-se por ofícios – babouches, couro, cerâmica, tapetes, ferro forjado –, a dar uma ordem aparente ao emaranhado de ruas apertadas, ruelas, becos e praças que se vão sucedendo à medida que caminhamos, ora sob o sol ora sob chapas de zinco que resguardam do calor, tentando não ser apanhados por motos e bicicletas. Regatear é uma arte e quem vende fica ofendido se o cliente não der luta. Há que fazer as contas – entre pagar em dirhams e em euros, a nossa moeda até é preferida – e chegar a um preço justo, tanto mais que se o vendedor lhe virar as costas, e, sobretudo, se não vier atrás, não está mesmo a fazer teatro.
O passeio pede descanso e o Café des Épices, que toma o nome da praça que lhe dá morada, é o lugar ideal. Lá em cima, no terraço, Marraquexe ganha outra dimensão: um imenso tapete que se estende pela planície sob a presença vigilante da cordilheira do Atlas, que abastece de água a cidade, através de um sistema secular de khettaras e seguias (túneis subterrâneos e canais abertos), como hão de nos explicar. Aqui e ali brotam antenas parabólicas, sobressaem os minaretes das mesquitas e avistam-se outros terraços convidativos. O do Nomad, mesmo em frente, é dos mais concorridos e percebemos porquê: sofás cor de areia e mesas de azulejos pretos e brancos, em vez das cores garridas marroquinas, e uma ementa que ousa em combinações mais inusitadas da cozinha tradicional, como as lulas marinadas em cominhos, servidas com uma pitada de harissa picante, ou o bolo de tâmaras com aroma de açafrão e sorvete de caramelo salgado. Mesmo que não seja para almoçar ou jantar, arrisque no sumo de abacate, laranja, tâmaras e canela ou num refrescante mojito, que se serve no bar de cocktails.
Lugar de inspiração
Há fila junto à entrada do Jardim Majorelle, pequeno jardim botânico feito de catos de mil formas, bambus, palmeiras, linhas de água, tanques de nenúfares e tartarugas, que recebe cerca de 700 mil visitantes por ano. Criado pelo francês Jacques Majorelle e aberto ao público em 1947, o jardim caiu em declínio até que, em 1980, Yves Saint Laurent e Pierre Bergé decidiram comprar o antigo refúgio do pintor para o salvar da conversão em hotel. Restauraram-se os edifícios, recuperou-se o jardim e as portas voltaram a abrir-se. Hoje é preciso fazer um compasso de espera para conseguir a fotografia-postal mais repetida: a fachada do museu dedicado à cultura berbere, pintado de azul-Majorelle.
Mesmo ali ao lado, encontra-se a mais recente atração de Marraquexe: o Museu Yves Saint Laurent (YSL), construído em terracota e desenhado pelo atelier de arquitetura francês Studio KO, aberto em outubro do ano passado. Numa sala escura, onde as luzes apenas incidem sobre as peças e os acessórios expostos, traça-se a carreira do costureiro nascido na Argélia, desde a primeira capa da revista Life dedicada ao seu trabalho até ao último desfile em 2008, ano da sua morte.
Mas mais do que uma retrospetiva a mostrar o trabalho essencial de Saint Laurent – está lá o vestido Mondrian (1965), o célebre Le Smoking feminino (1966), o casaco marinheiro com chamativos botões dourados (1962) e o casaco safari que até hoje inspira o nosso verão –,a exposição é uma viagem ao coração do que influenciou o designer de moda. Cinquenta peças (que vão rodando) dispostas à volta de temas que lhe eram próximos: Masculino-Feminino, A Cor Preto, África e Marrocos, Viagens Imaginadas, Jardins e Arte. E tudo isto sob o olhar do costureiro, fotografado por Jeanloup Sieff, em 1971. Há ainda uma sala de exposições temporárias, um auditório que se transforma em cinema, uma cafetaria que leva o nome de Le Studio (lugar de trabalho de YSL em Paris) com uma ementa a misturar pratos marroquinos e franceses, uma livraria e uma biblioteca com mais de cinco mil livros para investigação.
Saímos de alma cheia, e tomamos o rumo a uma das paixões de Saint Laurent. Sobre a praça Jemaa el-Fna, coração turístico de Marraquexe, já muito se disse e escreveu, e ainda assim nada nos prepara para este lugar que é considerado Património Cultural pela UNESCO e para onde todos os caminhos convergem ao final da tarde. Encantadores de serpentes, músicos gnaoua, rapazes em acrobacias, contadores de histórias, mulheres que nos desafiam a tatuar as mãos com hena, e bancas, muitas bancas, que vendem sumo de laranja, tacinhas de caracóis e infindáveis petiscos marroquinos (por 4 ou 5 euros, faz-se uma refeição completa, dizem-nos). Obrigatório é subir a um dos muitos terraços que rodeiam a praça – como o Le Grand Balcon Cafe Glacier, de onde se tem vista para a mesquita Koutoubia, a maior da cidade – e ficar a ver o dia a dar lugar à noite, enquanto se vai bebericando um delicioso chá de menta. Sem pressa nenhuma de sair dali
Guia da descoberta
Como ir
A TAP tem dois voos diários diretos de Lisboa para Marraquexe (a viagem dura cerca de 1h30). Planeie a sua visita para o outono ou para a primavera, quando as temperaturas são mais amenas.
Dinheiro
A moeda do país é o dirham marroquino, mas são muitos os lugares que aceitam euros.
Onde Comer
Dar Cherifa – Café literário, galeria e restaurante que ocupa um antigo riad do século XVI, exemplarmente recuperado.
Derb Chorfa Lakbir, 8, Mouassine. Salão de chá: seg-dom 10h-23h (exceto qua, até 19h), Restaurante: 12h-23h (exceto qua, até 19h)
Café des Épices – Paragem obrigatória no coração dos souks de Marraquexe, este café com vários andares e terraço é um dos locais mais coloridos e simpáticos, tal como a praça que lhe dá nome. Pioneiro da nova oferta gastronómica da cidade, serve sumos e comida simples, como saladas e sanduíches, a qualquer hora.
Rahba Lakdima, 75. Seg-dom 9h-23h
Nomad – Quatro andares com salas intimistas e dois terraços fazem este restaurante que aposta numa cozinha marroquina moderna, a cruzar receitas tradicionais reinventadas com pratos internacionais. Tem um bar com cocktails.
Derb Aarjane, 1. Seg-dom 11h-23h
O que visitar
Bairro das Tanneries – Na zona norte da medina, os velhos tanques da indústria tradicional, de curtumes, alguns dos finais do séc. XI, continuam em funcionamento, divididos entre tingidores berberes (dedicados às peles finas, de ovelha e cabra) e árabes (dedicados grossas, de camelo ou vaca).
Museu Yves Saint Laurent – Se Paris foi o lugar de criação de Yves Saint Laurent, Marraquexe foi o lugar de inspiração. A poucos passos da sua casa, a Villa Oásis, e mesmo ao lado do Jardim Majorelle, encontra-se o museu, aberto em outubro passado, que expõe parte do acervo de 40 anos de criações do designer de moda.
Rue Yves Saint Laurent, Guéliz. Seg-ter, qui-dom 10h-18h (última entrada 17h30). Entrada 100 dirhams
Jardim Majorelle – Abriu ao público em 1947, por iniciativa do pintor francês Jacques Majorelle, e após a sua morte esteve ao abandono, até ser adquirido e reabilitado, em 1980, por Yves Saint Laurent e pelo seu companheiro, Pierre Bergé. O antigo atelier do artista foi convertido num museu dedicado à cultura berbere.
Rue Yves Saint Laurent, Guéliz. Seg-dom 8h-17h30 (out-abr), 8h-18h (mai-set). Entrada Jardim 70 dirhams, Museu Berbere 30 dirhams
Jardin Secret – Exemplo dos imponentes palácios árabe-andaluz e marroquino, o Le Jardin Secret foi recuperado por um casal de italianos e devolvido à cidade, em março de 2016. Tem dois pátios distintos, o mais amplo ao estilo islâmico (dividido em quatro, com oliveiras, limoeiros, laranjeiras, figueiras e romãzeiras), outro com plantas exóticas, mais pequeno e exuberante.
Rue Mouassine, 121. Seg-dom 9h30-17h30 (nov-jan), 9h30-18h30 (fev, mar e out), 9h30-19h30 (abr-set). Entrada 30 dihams
Onde dormir
Be Live Collection Marrakech – Na zona do Palmeiral, a poucos minutos de carro do centro de Marraquexe, o Be Live Collection é um hotel de cinco estrelas só para adultos, em regime tudo incluído. Com 212 quartos, tem um lounge bar e um restaurante buffet com pratos internacionais e especialidades marroquinas, duas piscinas spa. Um transfer gratuito faz a ligação entre o hotel e a Praça Jemaa el-Fna. Bom para casais com crianças é o Be Live Experience, de quatro estrelas, também com regime tudo incluído e piscina.
Quarto duplo a partir de €160