“Se apareceres grávida cá em casa…” O terror dos pais sobrepõe-se ao exercício de uma parentalidade consciente. Ou seja, com a consciência de que educar a prole implica tocar em temas tão mundanos e humanos como manter o corpo e a cabeça saudáveis, saber como conviver com os seus conflitos e emoções e as dos outros e, mais importante que tudo, sem contornar a parte da sexualidade. Nota: a sexualidade não se resume ao conhecimento dos orgãos sexuais, do sistema reprodutivo e da contracepção; a sexualidade é uma parte da identidade, envolve noções de intimidade, privacidade, partilha e afeto. E aprende-se na relação com os pares, tendo por base, para o melhor e o pior, as referências e modelos dos adultos. Dito isto, o que fazer com aquilo que os petizes fazem e perguntam, assim que dão os primeiros passos e articulam palavras? Como se responde a questões “embaraçosas”, o que se faz quando eles manifestam comportamentos ou fazem comentários “constrangedores” num evento social ou de família? Quando falta “jeito”, “à vontade” ou há receio em conversar sobre sexualidade com os filhos, isso pode ser crítico mais adiante, antes de se tornarem adultos? Em teoria sim e em pleno século XXI, especialmente se eles – mais elas – virem nessa linguagem o único meio de expressão para lidar com situações de mal-estar.
Meu corpo, minha “arma”
O filme 17 Raparigas, que se estreia entre nós no dia 17, quinta-feira (veja aqui o trailer), através da Zero em Comportamento, serve de mote para explorar o tema da gravidez adolescente e os motivos que lhe são subjacentes. Camille (Louise Grinberg) é a ‘fêmea alfa’ escola. Um dia decide engravidar “porque sim” e, com essa prerrogativa, mobiliza as atenções das colegas, que acabam por seguir-lhe os passos, com um entusiasmo progressivo. O que leva a que as restantes adolescentes lhe sigam os passos e se unam, numa concertada – embora desconcertante – utopia (ou será distopia), chegando uma delas a pagar a um rapaz para a engravidar, para não ficar à margem do insólito pacto?
A narrativa foi inspirada em factos reais ocorridos há 10 anos em Gloucester, no Estado americano de Massachusetts. As irmãs francesas Delphine e Muriel Coulin trouxeram o tema para a ordem do dia (em 2012) e ‘transferiram’ o contexto para a Lorient, uma zona portuária na região da Bretanha, maioritariamente habitada por famílias da classe operária. Ao longo dos 86 minutos de 17 Raparigas, somos confrontados com momentos divertidos, mas a carga dramática está toda lá, assim como o desassossego, porque pode acontecer connosco, ou perto de nós. Pergunta-se: a maternidade precoce – e coletiva – é um propósito de vida ou substituto para a falta dele? Poder no feminino ou “falha” na formação da identidade que as torna permeáveis à pressão do grupo (e à ilusão de poder e segurança que lhes dá)?
Voltando ao princípio, diz-se que os pais aprendem a sê-lo com os seus descendentes. Que as gerações aprendam a conhecer-se e a evoluir, convergindo e divergindo nos seus pontos de vista, com confiança, regras e amor. E como se faz tudo isto (sem manual de instruções)?
Sem sermões, s.f.f.
Se tem filhos adolescentes ou a caminho dessa etapa de desenvolvimento, saiba que se fez alguma coisa no campo da educação sexual em meio escolar com a Lei 60/2009. Pode dizer-se que foi um parto difícil e que teve o seu valor mas apesar dos esforços então efetuados pelo Grupo de Trabalho de Educação Sexual (GTES), nem tudo corre como seria desejável, pois desde 2010 pouco ou quase nada se tem evoluído neste campo.
Daniel Sampaio, o psiquiatra que coordenou o GTES e autor do livro Do Telemóvel para o Mundo, com um capítulo intitulado “Os pais e a sexualidade dos adolescentes”, lamenta que se tenha perdido o caráter obrigatório da educação sexual nas escolas. O facto de existirem alguns projetos no âmbito da educação para a saúde, em que esta componente é abordada conjuntamente com outras, não apaga o esmorecimento que se seguiu neste campo: “Nos últimos oito anos, houve falta de empenho político, a crise e a Troika, que se traduziu num desinvestimento, mas há que retomar o trabalho iniciado para prevenir condutas de risco, sobretudo no namoro”.
Falar antes de fazer
Para o especialista e terapeuta familiar, “é essencial que os pais não façam um sermão em torno da sexualidade” quando começam a tocar no assunto com os filhos. Estas conversas devem fluir como as outras e acontecer desde o primeiro ciclo até ao secundário. Se o casal estiver atento ao seu próprio modelo de relacionamento e aproveitar os momentos de interação com as crianças para ir falando de coisas básicas, a chegada à puberdade será provavelmente sã e pacífica. “Falar de sexo implica falar de amor, de respeito pelo corpo, do meu e do do outro, e do convívio entre rapazes e raparigas”, esclarece Daniel Sampaio. A partir dos 11 anos, com as alterações neuronais e hormonais, o corpo fica progressivamente sexualizado e o grupo ganha uma renovada importância na afirmação pessoal. Nesta fase do desenvolvimento, que se prolonga até à idade adulta, testam-se limites fora de casa e é-se particularmente sensível à influência dos pares. É justamente aí que os modelos dos pais se revelam determinantes na maneira de lidar, por exemplo, com condutas de risco, nos anos do liceu. É nestes anos que ganha importância a comunicação dos adultos com os seus jovens, ora dando espaço à experimentação, ora aproveitando para abordar o tema sob um novo ângulo, com naturalidade e sensatez e tendo em mente que “adiar a sexualidade ativa e não ter pressas em iniciar relações sexuais permite que essa evolução se faça com equilíbrio”.
O poder do grupo
Fenómenos como o apresentado em 17 Raparigas poderiam acontecer em qualquer tempo e lugar por terem semelhanças com outros que envolveram a pressão do grupo em idades jovens e uma certa “cegueira social” face ao que estava realmente em jogo com os protagonistas. Basta recuar a 1999 e à obra de Sofia Coppola, As Virgens Suicidas: aprisionadas nos seus quartos e impossibilitadas de expressar as suas paixões e desejos adolescentes, em plena década de 1970, as irmãs Lisbon puseram termo à vida, para choque e consternação de pais, professores e vizinhos. Recentemente, o fenómeno Baleia Azul, o jogo de uma rede social russa popularizado pelas piores razões, que envolveram o suicídio de adolescentes, “por contágio”, trouxe de novo à superfície questões e vazios latentes, amplificados pelo registo ‘following’ v.s. ‘followers’ nas redes sociais. “Aqui vive-se tudo ao minuto, sabe-se o que se fez e com quem, sem processar o que pode ser exposto e o que deve ser contido”, afirma a psicóloga clínica e psicoterapeuta Sónia Santos.
Ir ao encontro dos filhos adolescentes no processo de autodescoberta – sem invadir-lhes o espaço nem deixá-los entregues a si mesmos – é um desafio não isento de medos nem de percalços, mas que compensa, desde que haja requer proximidade e bom senso: “Se uma criança se masturba, culpabilizá-la não contribuir para o seu desenvolvimento mas levar o principio do prazer para o quarto, com respeito, sim”. O mesmo para questões que tendem a manifestar-se mais tarde, a partir dos 16 anos, quando já têm margem para tomar decisões legalmente.
Aceitá-los e amá-los como são
Na obra das irmãs Coulin, cada uma das protagonistas parece ter razões pessoais para decidir daquele modo. Sónia Santos lembra o caso em que várias jovens portuguesas se envolveram em comportamentos de automutilação em conjunto. Em 17 Raparigas, a decisão de engravidar ao mesmo tempo é um manifesto de afirmação radical movido pelo desejo inconsciente que unia a todas, o “emergente coletivo”. Na dinâmica do grupo, encontram o que não tinham: “Serem vistas, acarinhadas, ter atenção de pais, professores, serviços de saúde; até as amigas passam a tratá-las de outra forma.” Aqui estão os alicerces da identidade, que não se constroem só com conhecimentos e informação.
“O que aconteceria se eles se recusassem a embarcar no objetivo delas, teriam conseguido?”, indaga a psicóloga. Quando a maternidade precoce passa a ser o projeto de vida, ou seja, se o valor pessoal só acontece por essa via e antes da idade adulta, temos um problema: “Elas sentem-se tão pequenas que engravidar se converte num sonho através do qual fantasiam preencher o vazio que sentem.”
Lá diz o ditado, ‘ter o rei na barriga’ ou exibir o poder de dar à luz pode muito bem ser um gesto de contestação, de afirmação. Como quando se começa a andar e a falar se diz ‘não’. Na adolescência, isso é catalisado pelo grupo.
“Aceitar e amar os filhos como são, e não como gostariam que eles fossem” acaba por ser um fator que promove a saúde (também sexual) e evita o pior, ou seja, “criam-se condições para que não precisem de preencher vazios (com gravidezes ou sexo desenfreado)”, remata a psicóloga, deixando algumas pistas para educar sem medo (a pais e professores), sobretudo na área da sexualidade:
– Quando eles perguntam já estão preparados para ouvir respostas – não adianta, por isso, infantilizar os filhos e adiar a resposta para depois, aproveitando o momento para, de acordo com a idade, adaptar o que se diz à idade deles
– Sexualidade inclusiva – não restringir-se ao modelo “rapaz v.s. rapariga” nas conversas e fugir aos estereótipos de género (dois pesos, duas medidas) ao educar
– Falar de sexo não implica ser sexualmente ativo mais cedo – os estudos mostram mesmo o contrário, contribuindo a presença e exemplaridade dos adultos para que os jovens tenham menos gravidezes precoces e DST´s
– Estar atento ao projetos de vida dos filhos – perceber se a identidade é coesa (se se sentem capazes, validados, bem na sua pele, etc). Querer engravidar precocemente pode esconder desejo de reparar feridas, dar a terceiros o que sentiu que não teve