A Rua Elias Garcia atravessa a Amadora até às Portas de Benfica. Há pouco mais de um ano, o número 293 A tinha um cartaz fluorescente, que anunciava a Igreja Assembleia de Deus Vida Plena. “A fazer a sua vida melhor”, garantia. Não se sabe exatamente que salmo na secção dos classificados conduziu Rogério Machado, pastor-presidente da Igreja Valentes de Deus, àquela cave, substituindo uma igreja por outra. Dificilmente se imaginaria que um dia estaria ali ajoelhada a irmã de CR7, com os braços erguidos para o céu do rés do chão.
Entra-se na Valentes de Deus por uma escadaria e uma rampa para portadores de deficiência, ambas cobertas por tapetes vermelhos quando há cerimónias especiais, que torna mais acolhedor o caminho para a cave da fé. Nos últimos meses, o templo tem sofrido diversas obras de melhoramento, cortesia de Katia Aveiro, que usou o nome artístico de Ronalda. A irmã de Cristiano Ronaldo canta amiúde na missa, ajuda em missões de caridade e na despesa da renda do estabelecimento, que ronda os mil euros mensais.
Com “Deus no Comando”, o pastor Rogério Machado ao leme e Katia Aveiro na retaguarda, a Valentes de Deus prospera. E já está em curso a criação de uma sucursal na ilha da Madeira, onde o pastor pregou recentemente, no Marina Shopping DanceFlavourz, tendo Katia Aveiro como anfitriã.
No início, esta nova igreja do espetro evangélico, como a própria se define, parecia navegar para o sucesso fulminante, à bolina do mediatismo conquistado e da sua relação privilegiada com o clã Aveiro. Mas o escândalo da Igreja Universal do Reino de Deus, trazido à luz do dia pela extensa investigação da TVI – mesmo que não haja qualquer relação entre a IURD e esta igreja –, gerou ondas de choque. E deixou a Valentes de Deus numa encruzilhada: a igreja precisa de mediatismo para crescer, tentando, ao mesmo tempo, manter-se numa estranha forma de anonimato.
A igreja debutante
A Valentes de Deus é muito recente em Portugal. Poucos tinham ouvido falar nesta igreja, até a irmã mais nova de Cristiano Ronaldo ter publicado na sua página de Facebook as imagens da sua conversão, com um banho simbólico e purificador na praia de Carcavelos, erguendo os braços aos céus, agradecendo a graça de ter descoberto o pastor Rogério Machado e, através dele, o caminho da fé. E o pastor encontrou nela o caminho da difusão. Sorri humildemente sempre que alguém lhe pergunta se é o guia espiritual da família Aveiro, nunca afirmando, nunca negando.
A igreja abriu alas pelas redes sociais; não é a primeira organização religiosa que faz isto. A Valentes de Deus proclama-se uma igreja moderna. As cerimónias são sempre anunciadas na internet com cartazes de design épico, com títulos sugestivos, ao melhor estilo dos filmes peplum. Terça-feira da Vitória; Sexta-feira dos Valentes – Vencendo as Trevas; Coração Valente; Oração da Vitória; Minha Família das Mãos de Deus; Poder do Espírito.
O pastor não nega que o crescimento da “obra” depende da generosidade e das contribuições dos seus fiéis. “Cada um dá o que pode, de acordo com as suas posses”, refere. Não é ainda possível traduzir em número exato os acólitos indefetíveis da igreja, mas a Valentes de Deus, neste aspeto, está a executar o milagre da multiplicação.
Na última quadra natalícia, Rogério Machado organizou uma “viagem gloriosa”, como lhe chamou, uma peregrinação à Terra Santa que o pastor faria pelo seu rebanho, comunicando na pregação dominical no templo da Amadora – transmitida online para a rede social da igreja, que se espalha pela diáspora brasileira mundo fora –, uma peregrinação à Terra Santa. “Um ato profético para determinar todas as bênçãos sobre a sua vida. Por todos os dizimistas da obra de Deus”, anunciou.
Esta viagem revelou-se um verdadeiro sucesso, que se traduziu num acréscimo de crentes à Amadora. Mas nada comparado com a ceia de Natal. O pastor e a sua mulher, Jucineia, também ela pastora, partilharam a mesa do clã Aveiro, com Cristiano Ronaldo à cabeceira. Sobre a nossa maior estrela de futebol, o pastor tem poucas palavras. Diz apenas que já deixou uma Bíblia com o craque. CR7 retribuiu a gentileza com um vídeo de 30 segundos, em que manda cumprimentos ao pastor e um “grande beijinho” para os fiéis desta igreja. O pastor ainda não perdeu a esperança de que um dia Cristiano Ronaldo lhes faça uma visita na Amadora.
Estado de culto
Depois de assistir a alguns cultos da Valente de Deus, é razoável dizer que as cerimónias nunca são iguais, mas o discurso e o método não variam assim tanto de outros cultos evangélicos. A diferença, diz o pastor, está na generosidade do verbo. “As pessoas sentem a fé quando é genuína. E a fé genuína é contagiosa. Propaga-se”, assevera. O que move o pastor Rogério Machado, segundo o próprio, é a obra interminável de espalhar a palavra de Deus. Na génese desta igreja está, como em qualquer outra, o propósito de prosperar.
No início do século, estavam implantados em território nacional 1 630 cultos evangélicos. Em 2017, encontravam-se ativos apenas 964 cultos, autoproclamados herdeiros da Reforma Protestante do século XVI. Metodistas, luteranos, anglicanos, calvinistas, batistas, anabatistas, adventistas da Reforma, adventistas do Sétimo Dia, presbiterianos, pentecostais, neopentecostais… professando em pouco mais de dois mil locais de culto. Há templos do tamanho de cubículos e outros maiores do que catedrais.
Perante os dados oficiais da Aliança Evangélica Portuguesa (AEP), a conclusão parece óbvia: o decréscimo acentuado do número de cultos evangélicos em Portugal navega ao sabor dos ciclos migratórios. A substância fiel de grande parte destes cultos tem por base a diáspora brasileira, que se foi invertendo na última década. As estatísticas da imigração brasileira para Portugal não só diminuíram, mas também se acentuou o número de brasileiros que abandonaram Portugal.
Também é verdade que a AEP não inclui na sua lista um “monstro sagrado” do espetro neopentecostal: a IURD. Nos tempos que correm, é com indisfarçável orgulho que os responsáveis desta federação evangélica afirmam isto: “A Igreja Universal do Reino de Deus não é filiada na AEP e dificilmente virá a sê-lo. A sua doutrina e a sua prática não respeitam os valores e os princípios da Aliança Evangélica. A serem verdade as notícias que têm vindo a público, a AEP manifesta a mais profunda solidariedade para com as vítimas e o mais veemente repúdio por tais práticas.”
Hoje em dia, não há igreja evangélica em Portugal que não se demarque da IURD. É o que acontece com a Valentes de Deus que, surfando a onda mediática que a conversão de Katia gerou, tornou-se maior do que parece. E o primeiro sinal de consciência do seu crescimento refletiu-se na criação de uma estrutura de comunicação. Ludgero Sousa, responsável por essa estrutura, é o agente artístico de Katia Aveiro, assim como o assessor de comunicação da sua mãe, Dolores Aveiro. O pastor sentiu necessidade de gerir profissionalmente a imagem da igreja, até para se resguardar dos ricochetes do escândalo na IURD em todos os cultos evangélicos. Unidos pelo mesmo assessor, o pastor e o clã Aveiro decidiram remeter-se a um prudente e coordenado silêncio. Tal como a AEP, Rogério Machado também não se reconhece naquelas práticas “condenáveis”. Se não forem os tribunais, “será Deus a julgá-las.”
A Aliança Evangélica Portuguesa, porém, pouco conhece da igreja do pastor Machado. O seu presidente, António Calaim, deixa apenas a seguinte informação: “A Igreja Valentes de Deus não está inscrita na nossa federação de igrejas. Desconhecemos os seus princípios éticos e religiosos.”