Sandra Maia, 44 anos, sabe muito bem o que é sofrer por amor a um filho. Mas há um momento zero no sofrimento de mãe. Aquele em que o tempo parou e toda a sua vida, concentrada no corpo franzino e fragilizado de Santiago, foi depositada nas mãos da cardiologista pediátrica Ana Teixeira, do Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, arredores de Lisboa. Há dois anos que Sandra se preparava – aliás, desejava – aquele momento. Desde que numa noite de janeiro, com um bebé de dois meses e meio ao colo, ouviu a sentença de morte: “O Santiago tem um coração muito fraco.” Depois vieram os palavrões “cardiomiopatia dilatada”, uma doença do músculo cardíaco que vai reduzindo a capacidade de bombear o sangue. Nesse momento ficou claro que a única salvação possível para o seu primeiro e único filho era um transplante. E não há preparação possível para uma coisa destas.
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“Vi passar a arca azul, com o órgão do dador lá dentro. E depois ficámos, a minha mãe, o meu marido, o senhor da portaria e eu, cada um para seu lado, à espera.” Outra vez uma noite fria de janeiro. Mas agora, três horas após aquele momento zero, as palavras foram de vida: “Correu muito bem. Vão descansar”, disse o cirurgião Miguel Abecassis. “Foi tão importante a tranquilidade do médico quando ele saiu da cirurgia… Agarrei-me a ele. Naquele momento, não tinha outra forma de lhe agradecer”, recorda Sandra.
O primeiro ano pós-transplante foi uma luta. Santiago acordou da cirurgia assustado. Tinha um coração novo, forte, a bater dentro do peito e não estava habituado a tanto vigor. Também fez alergia a um dos medicamentos imunossupressores, apanhou infeções, apesar de estar em casa com a mãe e de a família evitar lugares com muita gente. Hoje, com oito anos, Santiago é um menino bem-disposto, que vai à escola, joga futebol e celebra, ou sofre, com intensidade os jogos do Futebol Clube do Porto, a equipa do seu coração. “O sucesso de um transplante pediátrico depende muito dos pais”, sublinha a responsável médica pela transplantação cardíaca do Hospital de Santa Cruz desde o início do programa, há 30 anos, Maria José Rebocho.
Mesmo assim, Sandra, que deixou a sua atividade profissional na área da farmácia para se dedicar em exclusivo a Santiago, não deixa de se emocionar quando recorda aqueles dois anos de angústia, com um filho sempre à beira da morte. “Momentos que não desejo ao meu pior inimigo”, como o dia em que vieram de helicóptero do Porto, onde moram, para o Hospital de Santa Cruz, com Santiago no limite, sem conseguir comer nem dormir. Ou os seis meses que a família viveu em Carnaxide, num apartamento em frente ao hospital, para estar mais perto, sempre à espera que o telefone tocasse.
Hoje, vivem um dia de cada vez. “Mas somos felizes. O meu filho só nos traz alegria.”
Segunda oportunidade
Fátima Almeida, enfermeira responsável pela transplantação no Hospital de Santa Cruz, dá o mesmo conselho a todos os doentes: “Este coração é uma segunda oportunidade. Estimem-no bem.”
João Assis, 49 anos, está a levar à letra as palavras da enfermeira. Na sua vida passada, o motorista profissional acumulava fatores de risco. Havia a suscetibilidade genética, já que a avó e o pai tinham falecido com um enfarte, o stresse do trânsito, os dois maços de tabaco por dia. Nada que tenha dado sinal na consulta da medicina do trabalho a que tinha ido na véspera do enfarte grave que sofreu. Entrou em coma, e quando acordou, seis dias depois, informaram-no de que teria de ser transplantado. “Fui apanhado de surpresa.”
O despertar trazia outra novidade: estava ligado a uma máquina. A partir desse momento, e até que lhe aparecesse um coração novo, o hospital teria de ser a sua casa e o Berlin Heart – um dispositivo de apoio mecânico ao coração em doentes na fase final da insuficiência cardíaca – passou a ser um amigo inseparável. “Fui o primeiro doente a passear pelos corredores do Santa Cruz com o Berlin Heart”, conta. O dispositivo é apenas uma solução provisória, com um limite de validade que ronda os dois meses. O prazo estava quase a chegar ao fim quando o acordaram da sesta para lhe dar a notícia de que chegara a hora. “Não tive medo. Antes pelo contrário. Senti alívio e uma grande leveza. A minha família e os meus amigos sofreram mais do que eu.”
Recuperou de uma forma “espetacular” e sente-se hoje o “mais sortudo dos transplantados”. A enfermeira Fátima Almeida, a quem os doentes reconhecem como uma amiga, conhece bem todos os passos da recuperação e admite que lhe causa surpresa e admiração a forma como os transplantados aguentam todas as provações. O isolamento, a limitação de contacto com o exterior, até mesmo com os familiares, a comida de hospital. “O mais difícil para os doentes é aceitar as restrições alimentares. Por vezes noto-lhes uma certa revolta”, diz a enfermeira. “Há um momento em que chegamos a pensar que com tantas restrições nem vale a pena viver”, desabafa João Assis.
É nesta altura que Fátima Almeida tem a tal conversa das segundas oportunidades. Também ajuda uma prática corrente do hospital que é a visita de outros transplantados. Permite-lhes ver a luz ao fundo do túnel e manter a esperança de um futuro em que os dias não têm de ser passados entre as paredes de um quarto de hospital. Hoje, quando faz estas visitas motivacionais, João Assis passa uma mensagem otimista. A mesma que se pressente logo aos primeiros minutos de conversa.
Com o passar do tempo, as novas rotinas acabam por ser assimiladas, e mesmo a medicação imunossupressora – 13 comprimidos por dia, no caso de João Assis –, para evitar a rejeição do novo órgão por parte do organismo, passa a ser tão natural como beber água. “Ao fim de um ano, já se pode ir jantar fora.” E há até um ou outro excesso, ou “asneiras”, como lhe chama, a que os profissionais fazem vista grossa. O maior atrevimento foi pedir ao filho, tatuador profissional, que lhe desenhasse no braço esquerdo um coração, bem realista. Depois desta primeira experiência, que dispensa explicações, vieram outras quatro. “Pedi autorização à doutora Maria José”, justifica-se. “Quando lhe expliquei todos os cuidados de higiene e esterilização que o meu filho praticava na sua loja, a médica ficou mais tranquila”, avança. A segunda tatuagem que fez também é uma metáfora, uma máscara, a simbolizar as várias vidas da sua vida.
“Quis saber quem foi o meu dador, mas não me disseram. Estou desconfiado de que fiquei com um coração de mulher. Agora tenho mau feitio”, brinca. Com isto, quer dizer que hoje não guarda nada para o dia seguinte e diz sempre aquilo que pensa. Nesta nova personalidade, é mais aberto e vive sem receios. A aproveitar cada minuto. “Estava acomodado àquela vida e fui obrigado a repensar tudo, a mudar.” Começou a desenhar e descobriu um pequeno artista dentro de si, aprendeu a ser barbeiro e há de saltar de paraquedas, assim a médica o autorize.
Reaprender tudo
O grande susto aconteceu no dia em que Pedro Carvalho fazia 18 anos. Desmaiou durante uma aula de vólei e foi levado para o hospital das Caldas da Rainha. Ninguém lhe encontrava um motivo fisiológico para a perda de sentidos, o que levou um dos profissionais de saúde a sugerir que Pedro teria fumado “qualquer coisa estranha”. Uma insinuação que ainda hoje, 18 anos depois, o incomoda. Só mais tarde, numa consulta de cardiologia, se percebeu o que tinha: displasia arritmogénica do ventrículo direito, uma alteração do músculo cardíaco, em que as células miocárdicas vão sendo substituídas por tecido fibrogorduroso. A causa não é conhecida, mas a solução só podia ser uma: transplante. Para adiar o inevitável, implantaram-lhe um desfibrilhador, que tem duas funções: monitoriza o ritmo cardíaco e, sempre que este se afasta do desejável, aplica-lhe um choque. Deixou de fazer desporto, mas de resto manteve uma vida normal. “Ninguém sabia que eu tinha um problema cardíaco.” Abriu um consultório de veterinária, com a mulher, nas Caldas da Rainha, e mantinha um ritmo de vida ativo.
Até que começou a piorar vertiginosamente. O primeiro sinal foi deixar de ser capaz de fazer os domicílios. Ao fim de uma caminhada de cem metros, estava sem fôlego, a barriga começou a inchar, até se tornar uma “coisa descomunal”, com oito quilos de líquido acumulado, pela dificuldade de o coração bombear o sangue de forma eficaz. Estava na hora de entrar na lista de transplantação.
Nesse verão, há quatro anos, as férias no estrangeiro, com a mulher e os dois filhos, foram trocadas pelo descanso no Algarve, a duas horas do hospital – após a colheita, o coração aguenta seis horas, mas o ideal é que não se ultrapasse as quatro horas entre a recolha e o transplante.
A meio de uma tarde de setembro, o telefone tocou. Entrou no hospital, preparou-se para a cirurgia e estava já no bloco quando o médico chegou ao pé dele para lhe dizer “ainda não é hoje.” Afinal o coração não estava em boas condições para ser transplantado. “É muito importante ver o estado do órgão”, sublinha Fátima Almeida. Até que, a 15 de outubro, o telefone tocou a meio da noite.
Maria José Rebocho já deu muitas vezes esta notícia e sabe o quanto os doentes esperam pela chamada. “O doente sabe que é a única solução e por isso recebe a notícia sempre com alegria”, nota. Pedro não foi a exceção. O que não estava previsto era a infeção hospitalar que o deixou em coma induzido durante 35 dias. “Rezem”, chegou a dizer o médico que o assistia à família. “Tive o passaporte carimbado para me ir embora. Sobrevivi porque tinha de sobreviver.”
Quando despertou, não movia um único músculo, com exceção das pálpebras. Hoje até se consegue rir do episódio em que tentou pedir um copo de água a uma enfermeira, apontando com o olhar. Mas ela ofereceu-lhe de tudo, menos água. De casa recebia os vídeos que a mulher ia fazendo dos filhos com um e quatro anos, para que não perdesse tudo no crescimento deles. Os primeiros passos do mais novo, os desenhos do mais velho.
Estava irreconhecível. Entrou com 90 quilos no hospital, saiu com metade. Teve de reaprender todos os movimentos, respirar, comer, andar, falar. Quando regressou ao trabalho, começou pelos procedimentos mais simples, como as vacinas. Quatro anos depois já não tem restrições. Dedica-se de corpo e alma a uma profissão que o apaixona e voltou a outra paixão antiga, o mar. Procurou um transplantado que fizesse mergulho, mas não encontrou. Mesmo assim, arriscou o mergulho com garrafa. Nunca se questiona sobre a origem do seu novo coração. Mas sente-se grato.
* com Luísa Oliveira
Artigo publicado na VISÃO 1281 de 21 de setembro