Deitado na maca, Joaquim Frade ainda vê a máquina aproximar-se, antes de fechar os olhos e se deixar ir nas mãos do anestesista. Está confiante e nem os quatro braços do robô, a penderem sobre ele, o fazem estremecer.
“Só tenho a quarta classe, mas já viajei pelo mundo todo, conheço muita coisa. Sou muito prà frente”, garante o diretor comercial, de 62 anos, quatro dias depois da cirurgia. Joaquim Frade sabia desde o primeiro minuto que entre os dedos do cirurgião Carlos Vaz e os seus órgãos estaria o da Vinci Xi. E isto nunca lhe fez confusão. Aliás, estava disposto a ir até ao Brasil para ser operado, quando ficou a saber que não precisava de atravessar o oceano para resolver os dois problemas que mais o afligiam: o excesso de peso e, sobretudo, a diabetes. Na Cuf Infante Santo, em Lisboa, podia fazer a mesma operação – redução do estômago com bypass ao intestino.
Já com o paciente anestesiado, é altura de chamar o quinto elemento. Abrem-se os quatro braços do robô, que vão entrando à vez através dos orifícios na barriga do doente, insuflada de dióxido de carbono. Hoje é um dia especial no bloco, dia de espetáculo. Carlos Vaz vai operar para o mundo assistir, através do canal AIS, dedicado a procedimentos médicos inovadores. No bloco também há pessoas a assistir. Depois de analisar o doente, o cirurgião vai para um cantinho da sala, enfia a cabeça num visor e com os dedos das duas mãos comanda a máquina. Os movimentos são rápidos, a lembrar uma artesã da renda de bilros. Com as pinças vai atalhando caminho por entre a gordura, para encontrar estômago e intestino. Num corte certeiro, separa uma pequena parte do estômago e liga-o diretamente à parte final do intestino delgado. Enquanto manobra os braços robóticos, Carlos Vaz vai respondendo, através de um auricular, às questões que vão surgindo no site.
Na sala, um ecrã mostra o interior do paciente. Não somos bonitos por dentro. Mas os médicos e enfermeiros presentes vão vibrando com a perícia do cirurgião. Bem como a plateia que assiste a tudo pelo computador. Os olhos também estão postos no anestesista. Um doente obeso representa sempre um risco acrescido, e para esta cirurgia é obrigatório um bom nível de relaxamento muscular. Também se vai controlando a diabetes, além dos habituais parâmetros como o batimento cardíaco, ou os níveis de oxigénio no sangue.
É particularmente impressionante a forma como Carlos Vaz usa as tenazes do da Vinci para fazer uma sutura precisa e à prova de apetites vorazes. Numa bariátrica, como esta, para controlo da obesidade, é impensável fazê-lo de forma tradicional, de barriga aberta – o risco de infeção e de outras complicações é demasiado elevado. O mais comum é fazer-se por laparoscopia, onde as mãos do cirurgião são substituídas por instrumentos. O recurso a um robô é a evolução natural do método. “Permite-nos colocar um interface digital – um computador – entre o cirurgião e o doente”, especifica o médico.
Menos erros
“Fazíamos cirurgia aberta, com as mãos; na laparoscopia deixámos de pôr as mãos e passámos a usar instrumentos mecânicos, simples. É como passar da escrita à mão para a máquina de escrever”, ilustra. Com a entrada em ação do robô ganhou-se destreza, rotação e a possibilidade de anular o tremor. “Consigo ter lá dentro instrumentos que têm um punho; eu mexo o meu e ele mexe exatamente da mesma forma.”
Ao fim de quatro horas, está o caso resolvido. Fecham-se o braços do robô, os colegas dão os parabéns à equipa cirúrgica, o paciente acorda, bem-disposto e consciente.
Carlos Vaz sente necessidade de precisar: “Na verdade não temos aqui um autómato, o aparelho não está a operar sozinho. O que temos é cirurgia assistida por computador, não é ainda robótica. Isto é o computador a chegar à cirurgia. Já o usávamos para fazer cálculos, por exemplo. Agora chegou à execução.”
Nas vantagens, o médico refere a diminuição do erro. E acredita que a curto prazo será demonstrada a mais-valia a nível da cirurgia oncológica. “Já se provou na cirurgia da próstata e, a curto prazo, irá provar-se na cirurgia do reto que o robô é melhor para preservar a continência anal e urinária e a função sexual. Também ficará demonstrada a vantagem a nível oncológico, defende.
“Antes escrevíamos à máquina, depois veio o processador de texto, que nos permitia escrever e apagar, voltar atrás e formatar o texto. A seguir permitiu pôr tabelas, cores”, compara. No futuro, não muito longínquo, será possível construir mapas tridimensionais da cavidade abdominal do paciente, para não haver surpresas na hora de cortar. E sim, Carlos Vaz não descarta a hipótese de a máquina substituir o homem, “pelo menos em alguns dos passos cirúrgicos”, concede. Joaquim Frade já lá está, no futuro. E sente-se como novo.
A evolução da máquina
2000 – A empresa americana Intuitive Surgical recebeu o aval da FDA (organismo que regula os medicamentos e dispositivos eletrónicos) para a venda da versão primitiva do da Vinci
2010 – Chega o primeiro destes equipamentos a Portugal, para o Hospital da Luz, onde começou por ser usado em urologia e cirurgia geral (bariátrica, ou de controlo de peso, e cirurgia colorretal)
2016 – No mundo, já foram operados mais de dois milhões de pacientes com a ajuda do robô (a maioria nos EUA, França, Bélgica e Espanha). Em Portugal, três centros estão equipados com este equipamento: Hospital da Luz, Cuf Infante Santo e Fundação Champalimaud