O talento negocial já levou a jurista portuguesa a múltiplas conquistas na área dos direitos humanos. Depois de se tornar a primeira relatora especial da ONU para a água e saneamento, Catarina Albuquerque, 46 anos, doutorada em Direito Internacional, não parou enquanto não viu reconhecido o direito de todos ao acesso a estes bens vitais para o desenvolvimento. Agora presidente executiva da Parceria Saneamento e Água para Todos, acaba de ser distinguida com o Prémio Água Global, que receberá na Austrália, em outubro.
Porque nasceu esta parceria, a que preside?
As Nações Unidas sozinhas, com a composição clássica, não chegam para resolver os maiores desafios do desenvolvimento.
Que papel tem tido nas negociações?
Trabalhei no gabinete jurídico que fazia assessoria para o Ministério dos Negócios Estrangeiros para os direitos humanos. Fazia pareceres e defendia as posições de Portugal nas Nações Unidas. Em 2003, fui eleita para presidir às negociações do tratado internacional na área dos direitos humanos. Esse tratado, que foi aprovado por consenso, permite a qualquer pessoa apresentar queixas na ONU relativas a violações de direitos sociais.
Foi uma grande conquista?
Chorei quando consegui isto. Os direitos sociais são a grande inovação. Investi muito nestas negociações. Eram precisos dez países para entrar em vigor e já foi ratificada por 21 Estados.
Qual foi o resultado dessa conquista?
De Portugal, ninguém apresentou queixa. Há várias queixas contra Espanha por causa das medidas de austeridade, argumentando que significou um retrocesso social. E os Estados devem justificar-se. É importante uma realização progressiva, plena destes direitos.
E para si, foi uma conquista decisiva?
Quando acabaram as negociações desse tratado, em abril de 2008, fui incentivada por vários diplomatas a candidatar-me a relatora especial para a água. Eu não sabia nada sobre o tema e vários amigos meus aconselharam-me a não me meter nisso porque era um tema complicado. Mas foi exatamente isso que me fez candidatar.
Qual foi o resultado dessa ‘teimosia’?
Entre 2008 e 2014 apresentei 30 relatórios às Nações Unidas, fruto das minhas investigações. Visitei 15 países, um dos quais, Tuvalu, que será dos primeiros países do mundo a ficar submerso por causa das alterações climáticas.
Como é que os vários países do mundo aceitam a sua missão?
Alguns não aceitam. Angola e Moçambique, por exemplo, nunca me deixaram lá ir.
Porquê?
A nível mundial, trabalha-se sobretudo com médias. Muitas vezes até são boas, mas escondem outras realidades.
Por exemplo?
O Egito tem uma taxa de acesso de 90%, mas, além de não ser água potável, não conta com as habitações informais, como os bairros de lata. Antes pensava-se muito nos canos e condutas. Quando vou aos sítios pergunto o que se passa com os 5% que não têm acesso a água. Isso obrigou as equipas a pensar de outra maneira.
O que significou este prémio para si?
Significa que tenho de ir buscá-lo à Austrália (risos). Mas continuo a ter de pôr o despertador para as 6h30 todos os dias para poder levar os meus filhos à escola. Ando sempre a correr para vir para casa para os meus dois filhos, de 15 e 13 anos. Normalmente estou em Portugal e viajo uma vez por mês. Mas de muitos dos sítios onde vou só conheço os hotéis. Antes do verão estive 24 horas na Austrália. Foi mais o tempo em viagem do que no país.
Pode fazer a diferença com este prémio?
Até agora, quem o recebeu foram engenheiros, homens, em fim de carreira. Mas a água é demasiado importante para ser tratada por engenheiros. É uma questão política, de direitos humanos e de igualdade. O prémio ajuda-me a ter força política nas negociações. Neste momento, o essencial é mudar as mentalidades para que os Estados comecem a investir nos que não têm nada.