Para chegar ao Vimeiro Goddess Temple é preciso mais que um GPS. Há que ter informação privilegiada, recebendo as coordenadas por mensagem escrita. O templo, inaugurado há um ano e meio, fica perto da terra de águas abençoadas, como o nome indica. Mas suficientemente escondido nos matos do Oeste para que possamos passar por ele, sem dar conta. Percorrido o labirinto de estradas de terra batida, seguindo as indicações fornecidas, chegamos ao portão de ferro vermelho que marca a entrada da Quinta das Irmãs. Uma figura feminina esculpida em mármore branco guarda a entrada e aponta o caminho para uma casa de madeira escura, assente sobre estacas, com vista para um vale uterino onde, ao longe, o recorte do horizonte se esbate na neblina do mar.
À porta alinham-se vários pares de sapatos. Sabrinas, chinelos, sandálias. Todos de mulheres que ali buscam o reencontro com o sagrado feminino. Os pés descalços encontram conforto na alcatifa violeta que forra as duas salas do rústico templo de madeira, com as paredes interiores pintadas em tons de rosa. Mas, no ciclo presente da Roda do Ano (o calendário pagão que seguem, divido em períodos de 6 semanas), é o azul que ganha terreno. É a cor de Litha, marcando o solstício do verão, e preenche as telas expostas nas paredes, reveste os elementos do culto, surge nas vestes das mulheres e destaca-se até nas flores que embelezam o espaço.
A matrona da casa recebe as visitas à porta, com um vestido de alças que teimam em cair pelos ombros, onde assentam os seus longos cabelos castanhos, em desalinho. Tem um ar de menina, nos seus 39 anos. Cláudia de Jesus é a proprietária da Quinta das Irmãs, o espaço onde se ergue o primeiro templo físico em honra da Deusa em Portugal, seguindo a tradição de Glastonbury, em Inglaterra – o local que muitos acreditam ser o mesmo onde um dia existiu a ilha de Avalon, o reino mítico onde a espada do Rei Artur foi criada e a sua irmã, Morgana le Fey, rainha das fadas e senhora do lago, lhe deu guarida, afastando-o do mundo e tornando-o imortal.
Neste pedaço de Oeste português pretende-se também criar um mundo à parte. Um mundo novo em que, nas palavras da sua fundadora, se possa «retornar aos cultos, rituais e magias na natureza» e investir «na descoberta e exploração do corpo, mente e espírito», honrando a Deusa, ou a Mãe, «aquela que nos nutre e sustenta a todos, diariamente».
O templo é um espaço de comunhão mas também um local para descobrir e meditar com a «Grande Criadora». É ainda «um centro de estudos teórico-práticos, em investigação artística e espiritual sobre o sagrado feminino».
Entregar a dor ao mar
Para a celebração de Litha chegam três mulheres; Margarida Marcelino, pintora que tem desempenhado um papel importante nas atividades do templo, Dália Ferreira e Elsa Ferreira. Esta última visita o templo pela primeira vez e emociona-se ao cruzar o portão vermelho: sonhava com aquela casa de madeira há mais de um ano, assegura, mas não sabia onde ficava.
Pouco depois, a meio do primeiro ritual, acaba por desfalecer. As outras mulheres deitam-na no chão, amparam-na, mimam-na, e Cláudia sussurra-lhe palavras de conforto, tranquilizando-a. No final, ela diz sentir-se «livre e em paz». E ganha energia para apanhar flores no campo, que serão depois oferecidas à Deusa, no mar.
Cláudia pede a todas que a sigam até à praia. Elas seguem a alma mater do templo, cantando louvores à Deusa ao som das batidas de um tambor. Cruzam as ruas do povoado de Santa Rita, a caminho da praia, indiferentes aos olhares estranhos. Cláudia desenha um círculo na areia e todas entram nesse espaço feito templo, sentando-se em seu redor. Ela abre os braços, ergue-os ao céu, fecha os olhos e inspira a maresia. «Maraaaa…», começa a entoar, pedindo que todas repitam o som, subindo e descendo tons, seguindo a cadência das ondas do mar.
«Nós te pedimos, amada Deusa, que ouças as nossas preces», diz, enquanto as mulheres são instruídas a buscarem no seu interior tudo o que as preocupa e atormenta. Essas dores serão depois, simbolicamente, libertadas no mar. Uma a uma, são levadas à beira da água e ali fazem as suas confidências, os seus pedidos, e regressam ao círculo seguro, de alma lavada.
Uma hora depois de risos e lágrimas, partilhas e segredos revelados, juntam-se na rebentação das ondas, oferecendo flores à sereia Mara, cujas energias invocaram para ajudar a ultrapassar obstáculos emocionais. Abraçam-se a batem palmas. Está concluída a cerimónia.
A água tem sempre um papel importante nos rituais em que se venera a Deusa. O templo do Vimeiro é, aliás, dedicado às águas pois, como lembra Cláudia, «é ela que tudo leva, limpa, transforma e faz renascer». O local está carregado de simbolismo. Foi escolhido por estar perto da fonte onde a rainha Santa Isabel terá descoberto as propriedades curativas das águas termais, e na zona de Maceira, nome derivado da maçã, o símbolo de Avalon, por ser uma terra abundante nesta fruta, tal como o Oeste português.
Cláudia não ignorou as coincidências e decidiu que seria ali o local onde investiria as suas poupanças, erguendo um sonho que não a largava desde o momento em que foi mãe pela primeira vez, há seis anos. A gravidez, e depois o parto, operaram transformações profundas no seu corpo mas, sobretudo, na sua alma. Vivia em Lisboa, estava a terminar um mestrado, andava na corrida normal dos dias de hoje, sem grande tempo para reflectir sobre questões existenciais. A força que descobriu para superar as dificuldades do parto, e o amor que sentiu durante toda a experiência, levou-a a querer saber mais sobre o sagrado feminino. Quando o primeiro filho saiu das suas entranhas, também ela renasceu.
O aconchego da mãe
Na maioria das civilizações pagãs, adorava-se a Deusa como criadora de tudo, associada à ideia da mãe natureza. Esse conceito foi sendo substituído pelo de um Deus-pai, numa sociedade cada vez mais dominada pelos homens, em que a mulher acabou relegada para um plano inferior. Lendo sobre as tradições celtas, Cláudia chegou a Avalon. E, em 2013, decidiu viajar até Glastonbury, como quem segue um chamamento. «Fui servir a conferência anual sobre a Deusa como melissa (ajudante) e soube logo que teria de prosseguir aquele trabalho em Portugal», conta.
Sentiu que não podia esperar três anos, até ser ordenada sacerdotisa, para abrir um espaço de culto. Partilhou a sua inquietação com Kathy Jones, a «papisa» de Avalon, responsável pela abertura do primeiro templo de louvor à Deusa na Europa, após 1 500 anos, e pelo renascimento do fenómeno em todo o mundo. Kathy Jones já acompanhou a formação de outras portuguesas em Inglaterra. O caminho da Deusa foi-se abrindo com a dedicação de algumas mulheres, como Luíza Frazão (que viveu dois anos em Glastonbury), fundadora do Jardim das Hespérides, na zona da Praia das Maçãs (sempre as maçãs). Esta sacerdotisa, a primeira de nacionalidade portuguesa (ver caixa), lançou o livro A Deusa no Jardim das Hespérides – Desvelando a dimensão encoberta do sagrado feminino no nosso território e criou uma Roda do Ano adaptada ao nosso país, a Roda de Cale. «Cale é a Deusa tutelar de Portugal, que deriva do seu nome, e, nos nossos mitos e narrativas populares, é lembrada como a Velha, muito velha, que se transforma numa cabaça, cuja forma evoca as antigas representações da Deusa», explica.
Kathy Jones autorizou que Cláudia de Jesus criasse um templo em Portugal, em dezembro de 2014, tendo este sido inaugurado pela sacerdotisa belga Lieveke Volcke, que realizou ainda outras cerimónias de «chamamento de sereias» e formação de sacerdotisas no Vimeiro Goddess Temple, nos meses seguintes. Cláudia de Jesus assumiu a direção do local de culto e hoje preside também às cerimónias da Roda do Ano, embora não seja oficialmente uma sacerdotisa. Iniciou a primeira fase do curso mas depois parou. «Não senti necessidade de formalizar a formação, talvez um dia…», explica, lembrando que tem dois filhos pequenos e não podia, neste momento, retirar-se do mundo durante meses a fio. «Não sinto que precise do ‘aval’ de ninguém para ter este templo da Terra Deusa, que é de todos. Sinto que noutros tempos já fui uma sacerdotisa e desejo viver de forma simples e livre, sem qualquer condicionamento externo de elites, e cultivar as minhas vivências num círculo de mulheres, em perfeita irmandade, sem hierarquias.»
Cláudia de Jesus prossegue a sua missão com uma alegria desmedida, enquanto a sua cabeça fervilha com planos. Depois de abrir o templo ao público (pode ser visitado todas as quartas-feiras e nos dias de celebração da Roda do Ano, de seis em seis semanas), continua a promover dezenas de atividades, sobretudo na área da dança, e conseguiu concretizar mais um sonho: inaugurar a «tenda vermelha», onde as mulheres se podem recolher durante o seu ciclo menstrual, «para trabalhar a força dessas energias». Gostaria ainda de ajudar a reabilitar as instalações das termas antigas do Vimeiro, perfeitas para os rituais. E, no próximo ano, espera avançar com as obras de um templo definitivo, que prevê lagos e espaços de meditação em socalcos, ao longo do terreno que adquiriu. A semente está lançada – e dali, acredita, haverá de nascer uma imensa floresta. O que a move? Apenas a certeza de que, nestes tempos tão sombrios, «todos precisamos muito do colo da nossa Mãe».
A PRIMEIRA SACERDOTISA PORTUGUESA
Maria Luíza Frazão regressou em 2016 ao seu Jardim das Hespérides, em Sintra, depois de dois anos de quase-reclusão” em Glastonbury, em Inglaterra, onde se formou como sacerdotisa de Avalon. Nos últimos dias de julho voltou ao «reino das brumas», para a grande festa anual em honra da Deusa.
“Iniciei a minha busca espiritual, por um maior sentido na vida, no final dos anos 1990, e assim descobri o livro As Deusas em cada Mulher, da psiquiatra junguiana Jean Shinoda Bolen, uma análise da alma feminina com base nos arquétipos representados pelas deusas gregas. Outra obra da mesma autora foi também decisiva, Travessia para Avalon, neste caso, por referir Glastonbury, no Reino Unido, como o lugar na Europa onde o culto da Deusa está particularmente ativo hoje em dia, um lugar cheio de ressonâncias míticas, associado à lenda arturiana. Foi assim que a Deusa entrou na minha vida.
A minha primeira visita aconteceu em 2009. Foi uma enorme emoção ter participado numa cerimónia oficiada por uma sacerdotisa de Avalon, ressurgida das brumas do tempo, desafiando interdições que impedem as mulheres de lidar diretamente com o sagrado, como se algo de errado houvesse com elas, connosco. Tudo nesse templo e nessa cerimónia estava imbuído de profunda beleza e significado, tudo fazia sentido, era uma sensação de finalmente ter chegado a casa.
Essa peregrinação a Glastonbury foi um ponto de viragem na minha vida. Além do templo, fiquei a saber que todos os anos, no final do mês de julho, é organizada a Conferência da Deusa, que congrega mulheres, e homens também, de todo o mundo, um evento extraordinário onde recebemos inspiração para o ano inteiro, uma celebração dos Mistérios da Deusa. Tomei ainda consciência do poder e do impacto do Movimento da Deusa para despertar a consciência da humanidade, repondo o equilíbrio que se perdeu entre o sagrado masculino e o sagrado feminino. Fiquei ainda a saber que era possível seguir uma formação de sacerdotisa e foi o que tratei de fazer logo que me foi possível.
Iniciei a formação em 2011 e em 2013 tornei-me sacerdotisa da Deusa. Fiz a minha autodedicação à Senhora de Avalon em 2014. Depois de mim, duas outras portuguesas tornaram-se sacerdotisas da Deusa através do Templo de Glastonbury, mas, pelo menos por enquanto, sou a única sacerdotisa de Avalon em Portugal.
Foi uma formação que implicou muitas deslocações a Inglaterra, onde vivi em permanência entre o final de 2013 e o final de 2015. A formação de uma sacerdotisa de Avalon implica uma profunda ligação com a terra sagrada de Glastonbury, contraparte física da dimensão de Avalon. E implica, além da prática espiritual, investigação e estudo das grandes culturas esquecidas, e destruídas, que cultuaram a Deusa no passado, o desenvolvimento da criatividade, dos ofícios e da expressão artística em geral, sendo outro aspeto importante a condução de cerimónias, tanto privadas como públicas, até porque pública vai ser a função para a qual se prepara. Uma sacerdotisa, de resto, está associada a um templo e a uma comunidade de sacerdotisas, que já existem, como no caso de Glastonbury, fazendo parte duma linhagem (não de uma hierarquia), ou que ela própria, enquanto iniciadora do projeto de um templo, vai formar – como será o meu caso, no início no próximo ano.”