Jaak Fremault volta atrás para nos perguntar quando poderá ler esta reportagem. Aos 78 anos, o antigo engenheiro de estradas belga pensa que os dez netos hão-de ficar orgulhosos ao ler a história do avô que largou a sua vida confortável para, ao longo de 12 dias, dormir meia dúzia de horas e trabalhar nas tarefas diárias do navio. A maior recordação desta viagem? “Chegar à noite e ver as estrelas e constelações. Um céu limpo como há uns 20 anos não me lembro de observar. Na Bélgica, onde vivo, a poluição visual é tanta que mal conseguimos olhar em condições para o céu. Estas noites aqui foram maravilhosas”, descreve Jaak Fremault.
O belga é o segundo passageiro mais idoso do veleiro norueguês que partiu dia 10 de julho do porto de Antuérpia em direção a Lisboa para cumprir a primeira etapa da corrida dos maiores veleiros do mundo e que este ano junta 50 embarcações. À semelhança de uma parte dos 130 cadetes que pagaram para viajar e participar nesta prova, termina a experiência em Lisboa e, esta segunda-feira, 25, regressa de avião a casa. “Os meus quatro filhos ficaram eufóricos quando lhes contei que ía embarcar. Só soube que ainda me aceitavam com esta idade seis dias antes do navio partir. A minha mulher é que ficou triste, vamos ver como reage quando regressar a casa”, conta.
Velejar todas estas milhas a bordo de um veleiro construído em 1914, com quase 100 metros de comprimento e que serviu de base de treino da marinha alemã durante a Primeira Guerra Mundial não é, afinal, uma experiência que se tenha com facilidade. Depois de ter sido aprisionado pelo exército inglês, o Statsraad Lehmkuhl foi comprado em 1921 pelo governo norueguês e, desde 1978 que passou a fazer parte da fundação com o mesmo nome. A bordo sente-se o peso da história. Tem três mastros e o brilho dos dourados contrasta com a madeira nórdica. Cadetes e tripulantes circulam de um lado para o outro, esfregam o convés ou preparam as velas.
“Este veleiro já participou em 15 corridas mas nunca com um trajeto tão longo como esta vez. O nosso maior desafio tem sido as alturas em que apanhamos pouco vento. Temos de esperar e ser muito pacientes”, conta Marcus Seidl, o capitão que há 30 anos se mantém ao leme do Statsraad Lehmkuhl. Desta vez, a viagem traz ainda duas atrações adicionais: participa na The Tall Ships Race e que acaba de vencer a primeira etapa entre o porto de Antuérpia, na Bélgica, e Lisboa e traz desde a Noruega o bacalhau 500 milhões comprado pelos portugueses aos noruegueses em 70 anos de relações comerciais.
Para entrar a bordo, cada passageiro desembolsou próximo de 1 400 euros, que deram direito a participar nesta viagem histórica e dormir e comer durante 12 dias. Nas próximas etapas, os valores são diferentes e cada turista pode escolher entre percorrer toda a prova ou viajar apenas uma etapa. A que arranca hoje já está esgotada mas a seguinte, que arranca de Cadiz para a Coruna dia 31 de julho ainda tem lugares disponíveis.
Para Luis Monteiro, 40 anos, a viagem em alto mar num veleiro não é novidade. Esta é a quinta vez que repete a proeza mas reconhece que esta tem um sabor especial, não só porque está integrada na corrida mítica como ainda por cima tem a responsabilidade acrescida de transportar o bacalhau 500 milhões, que os portugueses tanto apreciam. “O isolamento face ao quotidiano durante estes dias é quase total. Gosto de fazer estas viagens sozinho, a componente humana que se cria ao longo destas viagens é muito forte, há um espírito de camaradagem muito grande. É uma experiência muito intensa, que exige muito fisicamente, até porque dormimos muito pouco”, conta o analista de informática, a viver em Lisboa.
Entre as 162 pessoas que navegam a bordo do veleiro, encontram-se 17 nacionalidades diferentes e pessoas com idades entre os 15 e os 85 anos. Apesar da maioria ser jovem, até porque o regulamento da corrida que pretende promover o treino da vela, a paixão pelo mar acaba por criar laços entre todos. Arne Nakling, 48 anos é o médico de serviço do veleiro mas vem também com duas outras missões: gozar a sua paixão pelo mar e trazer a filha mais nova, de 15 anos, e a sobrinha de 18, para participarem nesta experiência.
“Trouxe-as porque esta acaba por ser uma boa experiência de educação, onde aprendem a socializar, ganham novos amigos e aprendem a ultrapassar os desafios”, assegura este norueguês que trabalha em Bergen com idosos e é investigador na área da doença de Alzheimer. Sempre que tem uns dias livres, pega no barco e viaja com a filha ou oferece-se como médico de bordo noutros navios. Há dois anos atrás, já tinha levado a filha numa outra viagem a bordo de um cruzeiro mas esta é a experiência mais longa que os dois fazem. Em setembro, já tem mais uma volta marcada, desta vez pelo Mar do Norte. Antes disso, prossegue viagem até Málaga, onde se reúne com o resto da família para aí gozarem uns dias de férias. Daqui por quatro anos, talvez regresse a bordo do veleiro se participar na The Tall Ships. Por agora, é tempo de prosseguir viagem à semelhança dos 50 veleiros que zarparam esta tarde de Lisboa em direção a Espanha.