Era uma romântica, achava que ia ser tudo como numa “história da Disney”, relembra a atual estudante em Coimbra. Na altura tinha 16 anos e a ideia do “namorado perfeito, que dava prendinhas e miminhos e mandava muitas mensagens” fê-la sentir-se como uma princesa. As amigas todas já tinham namorado, ela, no 11º ano, sentia-se pressionada. Tudo a fascinava naquele rapaz “misterioso”, “engraçado”, “bem vestido”, achava-lhe piada ao estilo, até à maneira de andar… “Pensei ‘chegou a minha hora de ser feliz’”. E teve a felicidade à maneira da Disney – durante dois meses. Depois começou a notar pequenos sinais, que se calhar até estavam lá desde o início, mas ela, inebriada, não lhes deu relevância. A maneira ríspida de falar, as exigências, queria saber com quem estava, questionava tudo, as saídas com amigas, com os pais… Passado algum tempo, o príncipe encantado só não se transformou em sapo porque iria tornar-se algo mais feroz. O rapaz, outrora “caladinho”, fazia ameaças: se ela não fizesse o que ele queria, estragava-lhe a vida… E depois a obsessão com o telemóvel e o Facebook. Exigia saber tudo, quem eram os amigos, que pesquisas fazia, com quem comunicava… “E eu, inocente, explicava tudo, tentava acalmá-lo. Pensava que eram ciúmes, que isso significava que ele gostava de mim, que talvez ele estivesse a exagerar um bocadinho, mas ia passar”…
As amigas começavam a notá-la retraída nas mensagens, os pais a dar conta das nódoas negras nos braços. Negava tudo. Quando o namorado começava a insultá-la, quando vinham as ameaças e chantagens, os pulsos a serem apertados, torcidos, ela gelava: “Como é que ninguém vê, ninguém percebe?” Não tinha coragem de contar, mas “estava esperançosa de que alguém percebesse e pusesse um ponto final naquilo”. A autoestima desabou como num terramoto. A confiança ficou em destroços. Deixou de sair, de estar com amigos, para evitar as ameaças do namorado. Achava-se feia, vulgar, “ele fazia-me sentir a pior pessoa do mundo”. O namorado passou à fase dos apertões no pescoço, dos murros dissimulados, dos encontrões contra muros, uma cabeçada deixou-lhe um hematoma no nariz. A agressão mais violenta aconteceu num sítio público, mas ninguém viu, ninguém quis saber, ninguém a ajudou. Tentou pegar no telemóvel, mas ele sacou-lho da mão. Tentou fugir, ele agarrou-a. Queria gritar mas a voz não lhe saía. Olhou em vão para as janelas dos prédios, talvez alguém a estivesse a ver, mas nada. Estava encurralada num namoro de pesadelo, tão longe do seu sonho de princesa. “O que mais me custava nem era a agressão física nem a chapada, mas o insulto constante nos meus ouvidos.” Foi a mãe que, mesmo sem perceber nada de computadores, acedeu à conta dela do Facebook, viu aquelas mensagens cheias de fúria e ameaça e a convenceu a terminar o namoro. “Senti-me terrivelmente mal por a minha mãe ter descoberto e estar a confrontar-me, mas era um alívio.” A primeira medida da mãe foi apreender-lhe o telemóvel – recebia dezenas de mensagens por dia do namorado. Em seguida, ao fim de meses de perseguição, chamadas anónimas, e até de invasão da casa, apresentaram queixa à polícia. Durante dez meses, não pôde sair sem estar acompanhada, as mensagens que o ex-namorado insistia em enviar-lhe, “às duas da manhã com ameaças de morte”, eram reencaminhadas para a polícia. Aos poucos, tudo se foi atenuando. Não tudo. As nódoas negras na pele, sim. As outras continuam lá. Ela, a vítima, foi quem teve de viver escondida e de andar escoltada. Acabou-se o romantismo das histórias de princesas: “Fiquei cética em relação ao amor… Os miminhos e as prendinhas tinham um reverso… por detrás dos ‘adoro-te e amo-te’ havia sempre a chantagem e a violência… Estou sempre em estado de alerta, não voltei a ser a mesma.”
“Toda a gente faz isso”
Na escola secundária de Carlos Amarante, em Braga, a equipa da SIC prepara-se para discutir a violência no namoro com alunos entre o 10º e o 12º anos. No auditório é projetado o testemunho de uma jovem a quem o namorado fez passar tormentas físicas e psicológicas e a seguir figuras públicas vão deixando alertas sobre o que é violência numa relação a dois. Mesmo com a mensagem da campanha da APAV “Quem te ama não te agride”, percebe-se que há ainda alunos pouco despertos para a gravidade. Em relação ao agressor, mostram-se unânimes e condenam. Mas rapidamente, à medida que a jornalista da SIC vai fazendo perguntas, percebe-se que estão bastante familiarizados com situações de abuso, encaradas com uma certa naturalidade: “mexer no telemóvel sem autorização”; “fazer reparos ou proibir de vestir determinado tipo de roupa”; “forçar o beijo ou ter relações de afeto contra vontade”… Alguns exprimem opiniões desculpabilizantes: “se o rapaz diz à rapariga para não se vestir de determinada maneira não é proibi-la, é abrir-lhe os olhos”, ou “aconselhar-me outra roupa é ser protetor, para que outros rapazes não olhem para mim e me assediem…” Quanto a partilhar com os namorados a password do Facebook e ler as mensagens, parece ser comum entre eles: “toda a gente faz isso”. Uma rapariga do 12º ano comenta que os agressores são manipuladores, “aproveitam-se da dependência emocional do outro”. Como os ditadores, acrescenta. E parece ser consensual a ideia de que “quem ama tem medo de perder”.
Há duas décadas que a violência no namoro tem sido alvo de atenção especial por parte de psicólogos e sociólogos: “Ocorre numa fase tão crítica que pode moldar comportamentos para relações futuras”, observa Marta Reis, psicóloga clínica, sexóloga e investigadora da equipa Aventura Social, da Universidade de Lisboa. Acrescenta, como preocupação agravante, o facto de os adolescentes raramente procurarem ajuda. Ou porque a imaturidade ainda não lhes permite distinguir um comportamento violento de um gesto de amor, ou por terem medo de serem culpabilizados, pressionados a terminar a relação, não obterem ajuda ou mesmo por recearem consequências. O abuso pode ter envolvido comportamentos ilegais, como consumo de droga ou álcool. A adolescência, explica a psicóloga, é o “período de maior vulnerabilidade para a ocorrência de abuso na intimidade”. E também a idade em que se “começam a formar as crenças e atitudes sobre os relacionamentos interpessoais e de abuso, de poder e controlo”. O namoro é uma espécie de exercício prático para o relacionamento adulto, se as primeiras experiências forem violentas, continua Marta Reis, há fortes probabilidades de a violência se perpetuar.
Investigações na área demonstram que a violência nas relações dos jovens é demasiado recorrente e provoca danos a nível físico, social, emocional e sexual. “Casais e jovens namorados não consideram que seja violência partilharem a password do Facebook. Permitem comportamentos que demonstram pouca autonomia e independência, aceitando-os como provas de amor. E não o que realmente são: falta de respeito e invasão”, nota ainda a investigadora. Os sentimentos de paixão e amor já não são fáceis de definir e “muito rapidamente um jovem vai confundir o outro como algo de seu, de posse total”. Na adolescência é tudo 8 ou 80, muitos não conseguem autocontrolar as emoções sem perceber que estão a agredir. Nem percebem muitas vezes onde está a fronteira entre o consentimento nas relações sexuais e a negação. “É normal haver ciúmes, provas de amor, pequenos arrufos de namorados, alerta a psicóloga, mas não comportamentos invasivos recorrentes, com medo, ameaça e represália. Isso não é um relacionamento saudável.
Os ‘chats’ nas redes sociais têm-se tornado o modo favorito de os jovens namorarem. A janela dos seus bisavós è hoje a dos ecrãs. Comunicam, de forma instantânea, a toda a hora, com fotos e vídeos. Mas, lamenta a professora, “as novas tecnologias podem potenciar relacionamentos mais frios, ansiedades e, paradoxalmente, falta de comunicação entre os namorados”. Os adolescentes estão muito pressionados para responderem de forma instantânea às mensagens dos parceiros, quer estejam na escola, a fazer um teste ou no hospital. Se isso não acontece, de imediato surgem dúvidas, ansiedade, desconfiança. “Os jovens tornam-se vulneráveis na sua privacidade.” É também na esfera online que decorrem comportamentos mais arriscados, diz Marta Reis, como cyberbullying e cyberstalking (assédio) entre namorados e ex-namorados. Ou mesmo sexting ou cybersex (usar conteúdos sexuais para chantagear e subjugar, controlando o outro, através da ameaça de mostrar no mundo virtual o que o casal fez na privacidade).
Estudos recentes da OMS indicam que as adolescentes europeias têm pior saúde mental do que os rapazes. No que respeita à agressão no namoro, a tendência crescente é para as vítimas serem também do sexo masculino. Muitas vezes, “o agressor também é vítima. Existe violência mútua, o que vai legitimar um contínuo ciclo de violência. As redes sociais são usadas para pedir desculpa e continuar o ciclo”, conclui a psicóloga.
Infância perdida
Nicole Pereira foi vítima de agressões graves quando ainda era menina, quando ainda queria a mãe, brincava com bonecas e tinha medo das trovoadas. Vive em Rabo de Peixe (S. Miguel, Açores) e aos 12 anos apaixonou-se por um rapaz, “estava cega, só o via a ele. Não sabia o que era amar, tinha uma mente de criança”. Aos 13 engravidou e foi viver para casa do namorado. Ele e os pais não a deixavam sair, nem para ir à escola. Até de uma ida ao supermercado estava privada. Passava os dias a chorar e a fazer a lida da casa, sem falar com ninguém. Ele batia-lhe, queimava-a com o cigarro, mesmo grávida atirou-a das escadas. “Eu tentava fazer tudo bem para não ter problemas, mas ele arranjava sempre motivos para me bater. E eu só tinha amor por ele, como se ele fosse o único homem, como se não houvesse amanhã, sentia ciúmes, só o queria a ele.” Não tinha liberdade para nada, nem telemóvel para falar com as amigas ou com a família. Não podia pintar o cabelo, não se podia maquilhar nem vestir o que quisesse. “Ali só podia estar calada e obedecer.” Uma vez, o namorado bateu-lhe tanto que ficou desmaiada, caída no chão. Fugiu, descalça, de pijama, correu pelas ruas até casa dos pais, e deixou a sua menina, com três meses. “Senti tanto a falta da minha filha, ouvia o choro dela…” Depois de um processo judicial, o namorado foi obrigado a devolver a criança à mãe e a manter uma distância de segurança. “Não tive infância”, lamenta Nicole.
Os Açores estão referenciados como uma região onde a violência assume proporções alarmantes. Entre 2007 e 2014, 12 mulheres foram mortas no arquipélago às mãos dos parceiros. Segundo explica Maria José Raposo, presidente da Umar (União de Mulheres Alternativa e Resposta) em S. Miguel, os namoros nos Açores começam muito cedo. Se uma rapariga de 17 anos ainda não tem namorado, diz-se que “está encalhada”. É logo alvo de comentários depreciativos, acusada de não ter atrativos físicos. E coagida a ter relações sexuais, ainda que não esteja preparada. Esta pressão para ter namorado talvez explique a forma passiva como as raparigas reagem a atitudes de violência sexual e psicológica por parte dos rapazes. Há situações de humilhação, de perseguição, de coação, com pais coniventes. Recorda a de uma miúda de 16 anos que era coagida pelo namorado a assistir com ele a filmes pornográficos. Ou o caso de um rapaz que mantém a namorada refém de fotografias em posições eróticas que ameaça divulgar no Facebook. “O exercício de qualquer tipo de controlo, o ‘não podes vestir isto, não podes sair, não podes falar com aquele’ é o primeiro sinal de uma relação não saudável”. Muitas aceitam, não veem mal em entregar ao namorado as passwords. “Digo-lhes: ‘a password é algo que é teu, ver a tua caixa de mensagens é invasão da privacidade, como mexer na tua mala ou nas gavetas’.”
Namoro em risco
Num jardim público, um rapaz maltrata e insulta a namorada em público, à frente de quem passa. A cena é protagonizada por dois atores da ACT – Escola de Atores de Lisboa, mas podia ser real, como tantas vezes acontece. Quem está disposto a intervir? É o ponto de partida do programa da SIC sobre violência no namoro, segunda-feira às 20h50, em simultâneo na SIC e na SIC Notícias, seguido de debate na SIC Notícias.