– António Costa inaugura exposição da VISÃO sobre violência doméstica
VEJA OS VÍDEOS
– O drama da violência doméstica: relações que matam
– Aqui morreu uma mulher
Homem mata mulher. Homem mata mulher e suicida-se. Mata mulher e faz explodir o corpo. Criança de 4 anos assiste a tudo. Adolescente sai de casa a pedir ajuda na noite de Natal: “Acudam que o meu pai matou a minha mãe.” Todos os meses, ao longo do ano, foram saindo noticias destas, a fazer primeiras páginas e nós, qual ratos do crime, a colecioná-las, a lê-las com detalhe, a procurar pormenores que nos conduzissem à rua, à casa, à vida daquelas pessoas, a quem pudesse ajudar a explicar o que levava a que, neste século XXI, se continuem a propagar crimes destes – e, o pior, sem provocar a indignação geral.
O jornalismo de causas pode ser enganador, é certo, mas neste caso tinha poucas dúvidas: não há nada que qualquer uma destas mulheres possa ter feito que justificasse morrer assim. Aos tiros, asfixiadas com lençóis, amarradas a um carro que depois se atira ao rio. Ou atadas a uma cadeira numa casa que depois se punha a arder, ou com facas, duas e três facadas. Atos da maior violência desferidos em quem é mais fraco, em grávidas, à frente de crianças, pior, dos próprios filhos.
Para mim, o jornalismo continua a ser aquilo que alguém não quer que se publique, e tudo o mais é publicidade. Falar de um país onde as mulheres são mortas por quem lhes fez juras de amor será sempre sublinhar que não há nisto qualquer normalidade, que não é um mal menor. Quando se começou a esboçar o trabalho, tinham morrido mais de 40 mulheres num só ano. Indignamo-nos quando há atentados que matam dezenas de pessoas. Afligimo-nos quando um desastre ceifa as vidas de inocentes, sem aviso. Então como continuamos a aceitar que, todos os meses, uma, duas mulheres, sejam noticia de jornal pelo facto de quererem ter vida própria?
“Sabes, a Cláudia [Cláudia Lobo, então diretora-adjunta da VISÃO] acha que devíamos ir fotografar todos estes locais onde ocorreram as mortes”, dizia-me a Patrícia Fonseca, minha editora, no final desse annus horribilis que foi 2014. O calendário preparava-se para assinalar década e meia desde que a violência doméstica tomara na lei o caráter de crime público. Mas nada parecia mudar comportamentos – nem se notavam quaisquer reações extraordinárias às notícias que, volta e meia, faziam capa nos jornais diários.
Fui fazer esse levantamento. Era um projeto louco: ir àqueles 42 locais e conseguir reunir material para contar as histórias, de uma só vez, podia acabar por se revelar uma casa inacabada – e entretanto, até tudo estar pronto, muitas outras mulheres acabariam por morrer. Era ainda janeiro e já a contabilidade recomeçara: quatro mortes só naquele primeiro mês doano.
“E se fizéssemos o trabalho a par dos acontecimentos? E se, durante 2015, fossemos fotografar e recolher a história de quem morresse, preparando tudo para publicar no final do ano?” As duas, Patrícia e Cláudia,concordaram. Em seguida pensei que só um fotógrafo extraordinário poderia fazer um trabalho destes – e o José Carlos Carvalho também não hesitou.
Não foi fácil.
Estivemos em frente à campa de uma mulher com menos de 30 anos, morta em frente ao filho de 4 anos – os vizinhos relataram à polícia que a ouviram gritar: “Por favor, em frente do menino não!”. O homem deixou ali o miúdo, na casa do Feijó, Seixal,e guiou até à ponte 25 de abril para depois se atirar ao rio.
Passámos uma tarde num lar onde trabalhava uma mulher tão querida por todos os colegas que a diretora nos caiu nos braços em lágrimas. Tudo porque o recente ex-namorado da Zé a esfaqueou ali mesmo, quando ela acabou o turno. A irmã dele, acrescentou a diretora do lar de Delgada, no Bombarral, ligou-lhe no dia seguinte:o homem até já tinha estado preso antes por ter tentado matar outra mulher com um fio de pesca.
Fomos ainda ao café do massacre, como lhe chamam os vizinhos da localidade de Estela, na Póvoa do Varzim – onde o filho do Monstro do Cacém, esse mesmo que nos anos 80 matou a mulher e a enterrou no jardim, acabou por repetir o gesto do pai, atirando a matar sobre a mulher, o enteado e os sogros.
A assistir a tudo no local, o filho de ambos.
Demos por nós em bairros novos, como aquele de Setúbal,onde uma porta num vidro escurecido apregoava: “A sua segurança começa aqui”– mas afinal não, a própria policia acompanhou a mulher a casa e considerou que o risco era mínimo.
Meia hora depois, ela era esfaqueada até à morte.
Chegámos aos lugares mais recônditos, daqueles que não aparecem no mapa nem no GPS. Sem rede de telemóvel. “Ele passava a vida a mandá-la para casa da mãe e ela não ia”, contou-nos a vizinha da mulher que acabou por aparecer morta com uma faca espetada no peito, no lugar de Reboreda, Rio de Moinhos, Arcos de Valdevez.
Nem a noite de Natal escapou a esta contagem – numa terra chamada Santa Cruz, em Armamar, cheia de cruzes na rua. Na porta da junta de freguesia, uma rapariga não conseguia esconder os olhos cheios de lágrimas quando lhe perguntámos pela morte que agitara a terra naquele 25 de dezembro. A miúda que saiu à rua a gritar: “Acudam que o meu pai matou a minha mãe” era a sua prima de 15 anos.
O último caso do ano ainda foi mais gritante. A mulher não só foi alvejada com tiros de caçadeira como ainda se desfez em pedaços ao ser atingida com uma granada, em Sacavém, às portas de Lisboa. Alguém consegue imaginar tal cenário de guerra? Também ela já desabafara no café mais próximo que qualquer dia era ela aserprimeira página.
Não foi fácil não perder o fio à meada, não foi fácil não desanimar ao longo do tempo, não foi fácil encaixar um ou dois dias de reportagem pelo meio do resto do trabalho ao longo do ano.
No meio deste processo, a direção da VISÃO mudou mas quem chegou não só acolheu de bom grado esta herança como a fez crescer.
A exposição que vê hoje a luz do dia é o resultado de tudo isto – e também, claro, do apoio da Secretaria de Estado da Igualdade, da Presidência do Conselho de Ministros e da Câmara Municipal de Lisboa.
E possa agora ser o princípio de outra aventura, que é essa ideia destas histórias e estas imagens correrem o país, para que nunca mais haja alguém a olhar para o lado quando se falar de violência doméstica, nem quando se disser: Aqui Morreu uma Mulher.