O amor “é um acidente à espera de acontecer” e o desejo “um estranho que tu pensas que conheces”, dizia uma das personagens do filme Perto Demais, um clássico sobre a distância e a angústia que separa os seres humanos na sua incessante busca da intimidade.
Em Lost in Translation, questiona-se a noção idealizada de monogamia. Em Her, de Spike Jonze onde apenas a voz da atriz Scarlett Johansson dá corpo ao sistema operativo que arrebata o protagonista a reflexão é sobre o que é, ou pode ser, a realização sexual e amorosa atual.
A revolução tecnológica e a sociedade do conhecimento trocaram as voltas aos códigos da era industrial. Os nossos avós e bisavós desconheciam a internet, a banda larga e o mercado global financeiro e dos afetos. O casamento era uma instituição que garantia a sobrevivência económica e de pertença ou estatuto. A norma da exclusividade e o modelo reprodutivo caminhavam a par e passo, quando ainda não havia a pílula (a contracetiva e a do desejo masculino) nem medicina sexual, nem estudos sobre as leis da atração e de género.
Talvez a vida parecesse menos complexa e existissem menos opções, sobretudo para as mulheres ou todos aqueles que não encaixavam na organização social dominante, nem se reviam nas histórias da Cinderela e do Príncipe que eram felizes para sempre ou, no seu antípoda, a de Romeu & Julieta (e, já agora, Pedro & Inês). Para sempre? Ora aí está uma expressão que perdeu a validade, destronada pela modernidade líquida de que fala o sociólogo polaco Zygmunt Bauman, censurado e afastado da Universidade de Varsóvia, nos anos sessenta, por antever o impacto da sociedade em rede na esfera íntima. O primado é o do presente, transitório, o que “dura enquanto dura”. Porém, esse navegar no mar de possibilidades interativas e laços tão diversos quanto frágeis, é assim tão preocupante, ou será prenúncio de um novo paradigma?
VARIAÇÕES SEM ‘PECADO’
Nunca se falou tanto de amor como agora. A Cision, empresa de consultoria em media, contabilizou o número de vezes que a palavra “Amor” era referida em artigos de publicações nacionais e, à semelhança dos 30 países onde a tecnologia de análise de textos foi usada, o “amor” bateu o “sexo” em toda a linha (72% contra 28% de menções). Curiosidade: o amor surge primeiramente associado à mulher, à música e, só depois, à família.
A mulher ocupa igualmente o primeiro lugar nas referências ao sexo, seguida dos estudos (pesquisas) e do corpo, ex aequo com as relações (5%). Especulando um pouco, é de admitir que o sexo deixou de ter uma função estritamente reprodutora e “colada” a uma ligação afetiva estável.
Em Portugal, nos 1970, o elogio do prazer e o caráter experimentalista da sexualidade começaram a ganhar forma na vida de cada um, embora tenha persistido um duplo padrão ao nível das práticas: as delas, ainda ancoradas em relações afetivas e duráveis; as deles, como fonte de experiência, aprendizagem individual (História da Vida Privada em Portugal, vol. 4).
Falar de amor hoje significa falar da ambivalência entre o desejo de fusão e o culto da individualidade.
Pelo meio, muitas variações são possíveis. Casar é cada vez menos frequente e um ritual mais tardio.
Mesmo que a instituição não esteja fora de moda, ela tem sido sujeita a uma desregulamentação progressiva, criando espaço para outras organizações de família, como confirmam as estatísticas demográficas (ver infografia): democratizaram-se o divórcio e a guarda partilhada, aumentaram as uniões de facto, as famílias recompostas e as monoparentais.
E já se casa com alguém do mesmo sexo. Há mais gente solteira e a viver sozinha e Portugal, onde os cidadãos são muito ativos nas redes sociais, é também o que tem menos nascimentos em toda a União Europeia.
A NOVA ECONOMIA AMOROSA
No mercado liberalizado do século XXI, o divórcio e a vida sem parceiro deixou de ser um estigma e até a noção de património ganhou um estatuto imaterial. Basta pensar em como deixou de ser constrangedor ter um cargo com visibilidade pública sem um marido ou até uma primeira-dama. “Quando o contexto muda, a fidelização altera-se”, comenta o economista Paulo Reis Mourão. Ele defende que num cenário competitivo e menos monopolista, tendemos a equacionar “o capital social que são amigos sem laços de sangue nem fronteiras geográficas, o capital humano, associado à capacidade de aprender na sociedade do conhecimento, e o capital relacional, ligado à troca de valores”. Conclusão: “O último desmaterializou-se.” Ou seja, numa relação afetiva, os agentes económicos fazem uma análise de custos e benefícios, podendo optar por investimentos mais lucrativos. Por exemplo, uma mulher pode trocar o marido pela melhor amiga. Um homem não se sente limitado ao papel de único ganha-pão da casa.
E qualquer dos cônjuges “sente-se livre para ter outros parceiros virtuais, que dificilmente assumiria se tivesse que mantê-los no plano físico, com outros custos”. O autor de Economia sem Gravata adianta que os menos familiarizados com o registo da vida virtual, geralmente em faixas etárias mais avançadas, “tendem a iludir-se mais, confundindo estas duas dimensões, a concreta e a digital”.
O que pode acontecer quando estes dois mundos se cruzam? Na economia comportamental, estamos perante casos de infidelidade financeira. Os resultados de inquéritos online divulgados em jornais americanos são reveladores: entre um terço e metade dos inquiridos admitiu mentir à cara-metade sobre o quanto ganha e ocultar compras realizadas com dinheiro de contas comuns, devido a affairs.
ESCAPADELAS SEM DRAMAS
O que há de comum entre Noel Biderman e Anabela Santos? Ambos são casados e gestores de sites de encontros extraconjugais.
O que os diferencia? O holandês, fundador e CEO do gigante Ashley Madison (mais de 30 milhões de membros em todo o mundo, dos quais 120 mil são portugueses) viu–se recentemente em maus lençóis à conta do crime digital perpetrado por piratas informáticos, que se traduziu na exposição de milhares de dados pessoais dos usuários.
A gestora portuguesa do Second Love, frequentado por uma faixa etária entre os 30 e os 49 anos, orgulha-se da credibilidade e da adesão conseguida em apenas quatro anos de vida. “Transformámos a necessidade de suprir carências num negócio”, assegura Anabela Santos. Dos cerca de 190 mil inscritos, 75% são homens interessados em quebrar a monotonia e ter alguém extra para sexo. As conclusões do primeiro inquérito feito a 1 239 mulheres usuárias, durante o verão, permitiram apurar as motivações delas: “Queixam-se do egoísmo deles na cama (78%) e da falta de atenção (87%) e usam a sedução virtual para reforçar a autoestima.” Muitas não chegam a passar do digital ao concreto, raramente confessam a amigos que têm um caso (86%) e sabem “separar as águas entre a casa e o amante (59%)”. Se ter um extra fora de portas, tacitamente consentido, é o novo normal entre casais estáveis (27%) e com filhos (52%), a incómoda sensação de estar a ‘engolir sapos’ não deveria existir. Mas é isso que acontece, de acordo com as conclusões do megainquérito da universidade americana de Chapman, coordenada por David Frederick: socializados para serem conquistadores, são os homens que mais sofrem com a traição sexual, por sentirem a sua masculinidade ameaçada. Elas, educadas a investir nos afetos, ressentem-se com a infidelidade emocional.
A FÓRMULA GGG
A canção de Ney Matogrosso, Debaixo dos Panos, pode manter-se atual, mas. só para saudosistas. O conceito de ‘mono’ foi derrubado pelos universos ‘estereo’, ‘hi-fi’ e ‘HD’. O mundo da interconectividade tornou possível que os outros saibam muito mais de nós do que alguma vez julgámos possível, e nós acerca deles. Saltando da tecnologia e da economia para as ciências sociais, abundam pesquisas que validam a monogamia e outras que a refutam.
Aqui chegados, vale a pena indagar: até que ponto os destroços das relações monogâmicas (contabilizados em divórcios) as coloca num patamar de ilusão maior do que as abertas? A socióloga Ana Cristina Santos coordena o projeto INTIMATE “Cidadania, Cuidado e Escolha: A Micropolítica da Intimidade na Europa do Sul”, centrado na conjugalidade, parentalidade e amizade na comunidade gay, lésbica e transgénero. A investigadora admite que temos “mais capacidade de participar ativamente no nosso bem-estar relacional”. Tal passa pela reciprocidade e o consenso face à não monogamia, negociada no casal. Os dados recolhidos e os estudos de campo que estão em curso levam-na a afirmar que a reconfiguração dos laços íntimos deixou de centrar-se na pergunta “a que é que isto nos leva?” e, de certa forma, ainda bem.
“O guião do amor romântico, assente no paradigma da propriedade, exclusividade e da linearidade, é uma violência”, acrescenta, por não garantir direitos nem contemplar, antes oprimir, a liberdade humana.
Há duas décadas a aconselhar os americanos a viverem abertamente a sua sexualidade, o popular colunista Dan Savage, 46 anos e numa relação com um homem sete anos mais novo, coloca as cartas na mesa: “A monogamia funciona em alguns casais mas, para uma maioria expressiva, pode ser uma obsessão e mesmo uma prática desonesta.” Numa entrevista ao The New York Times, Savage lança o que considera ser o cerne da questão: “Conhecemos realmente bem os relacionamentos que temos para ir além deles?” No limite, só uma união suficientemente forte comporta a honestidade radical. Nota: uma relação forte é aquela que se pauta pelo que o colunista de sexo designa por triplo G, ou GGG: “Good, Giving, Game” (Bom na cama; Generoso com o parceiro, dando-lhe igual dose de tempo e prazer; e Jogo, ou seja, estar disposto a tudo, mas com bom senso).
O acrónimo serviu de inspiração a um cocktail e ao teste “Quanto GGG é você?”, no popular site OK Cupid.
‘EU AMO-TE’. ‘EU TAMBÉM NÃO’
Vistos à lupa clínica, os encontros românticos revelam fragilidades nem sempre óbvias, que levam tantos a sentir atração pelas pessoas erradas ou a não conseguirem a tão almejada reciprocidade. Isabel Mesquita, psicanalista e com um doutoramento sobre relacionamentos amorosos e vulnerabilidade narcísica, tese publicada em livro, afirma que a dificuldade em estabelecer vínculos duradouros esconde uma sexualidade imatura e a incapacidade de conjugar fantasias, medos e aspetos menos conscientes de si, em particular num contexto que promove o egocentrismo e o prazer imediato. Não raras vezes, o outro serve de estímulo e alimento para o ego, sem que haja um verdadeiro envolvimento emocional ou a possibilidade de transcender-se: “Podem ter várias pessoas a quem despertam interesse, mas ficam num registo superficial sem lhes dar muito valor, apenas querem ser reconhecidos ou contabilizar ‘likes’ no mundo virtual.” No passado mês de setembro, uma edição da TIME questionava se a intimidade era alcançada pelo sexo sem constrangimento ou através da exclusividade. A hipótese da legalização da poligamia era uma das vias propostas para fomentar a igualdade de género e o aumento do poder (de escolha) por parte das mulheres.
Voltando à ideia da capitalização do sexo e do amor, ela já não é de agora. Daniel Cardoso, ativista e investigador em estudos de género e sexualidades, lembra que o casamento heterossexual monogâmico foi uma peça-chave no estabelecimento do Estado Nação ocidental e do sistema capitalista. E que as plataformas tecnológicas, que criaram novas possibilidades de encontro e espaços seguros para a diferenciação individual, não alteram o que já existia antes.
O modelo antigo prevalece, “porque a nossa população tem uma literacia baixa, apesar da estrutura de acesso às tecnologias ser invejável” e ainda devido à coexistência de duas pressões contraditórias, entre ser livre para se relacionar com mais do que uma pessoa e seguir a norma socialmente valorizada: “Aceita-se a não monogamia sexual, o ter amantes, praticando ao mesmo tempo a monogamia social, uma família nuclear.” Daí que a revolução de mentalidades continue a acontecer, sobretudo, entre os cidadãos digitais economicamente privilegiados, maioritariamente de raça branca, escolarizada e urbana. Quem dispõe de mais recursos para fugir à norma pode fazer escolhas individualizadas e cultivar a não monogamia, onde cabem o swing, o poliamor e as relações abertas.
Houve um tempo em que lhe chamavam promiscuidade ou loucura.
Amar perdidamente valia tan- to como não amar ninguém. Em exclusivo, acrescente-se. Aos olhos de uma imensa minoria (cerca de 5% dos casais americanos consideram-se não monogâmicos), o “perdidamente” e o “exclusivo” são conceitos mais que ultrapassados.
Uma reportagem da CNN recolheu testemunhos na área de São Francisco, onde os sub-35 estão ambientados à ideia de partilha e experimentação sexual, compatível, de resto, como o espírito de inovação e risco associados à cultura high-tech. O maior grau de complexidade não os assusta, já a falta de tempo sim: na vertigem das solicitações diárias, conciliar e aprofundar várias ligações íntimas (a namorada, o noivo, o amigo com benefícios e outras combinações possíveis) afigura-se um verdadeiro puzzle.
AMOR EM VALSA LENTA
Fora deste nicho, a tendência é priorizar o lado experimental dos relacionamentos, que tendem a começar pelo sexo, com um ou mais parceiros, satisfazendo cada um deles necessidades distintas. Para Ana Alexandra Carvalheira, sexóloga e investigadora, “a grande novidade dos tempos modernos é a emergência do amor lento, não há pressa em chegar ao compromisso”.
Desfruta-se do presente.
Conhecem-se novas pessoas, não apenas através de amigos (casamenteiros é outro termo em desuso) e colegas de trabalho, ou ainda no ginásio, no bar ou na discoteca, mas antes nos “bairros do amor” virtuais, que funcionam em tempo real. Nas redes sociais. Nos sites de encontros. E nas app, o boom do momento, onde tanto se procuram amigos, companhia para quando se está em viagem, partilha de interesses, sexo ou algo mais sério.
O Tinder é o projeto mais bem sucedido de sempre neste campo, à escala global, com utilizadores em 196 países e disponível em 30 línguas. À VISÃO, os responsáveis pela aplicação (detida pelo Match Group) revelaram que “cerca de 85% tem entre 18 e 34 anos” e que “Portugal está no Top 20 dos mercados europeus, com uma média de 160 milhões de visualizações mensais”.
Para os mais céticos, a facilidade com que se descartam amigos nas redes, se desfazem matches nas app ou se deixam relacionamentos indefinidos em banho-maria (para mais tarde retomar, se for o caso) não prenuncia nada de bom, mas quem já cresceu com a web 2.0 não parece ver nisso um problema e adapta-se aos novos formatos, na economia onde está, a dos flirts e namoros incluída.
O FUTURO DO AMOR
A antropóloga e investigadora americana Helen Fisher, da universidade de Rutgers, em Nova Jérsia, e igualmente consultora do site de encontros Match.com, surpreendeu-se com os resultados do inquérito anual feito aos frequentadores (com idades entre os 18 e 70 ou mais anos). O estudo Singles in America revelou que nem a cultura hook up (de engates) corresponde ao real nem o romantismo parece ter os dias contados, já que a grande maioria dos inquiridos tem a motivação de casar quando procura encontros online e metade da amostra considera que um primeiro encontro é bom quando acaba com um beijo e menos de 10% espera ter sexo (ver infografia): “Uns e outros querem sobretudo alguém atraente, em quem possam confiar, que as respeite e as faça rir.” A realidade portuguesa terá alguma similitude com a americana neste ponto. Baseando-se na prática clínica, nas palestras que faz pelo País, a psicóloga e sexóloga Marta Crawford admite que “as pessoas não deixam de ser seletivas nos encontros que têm nas redes ou nos sites, raras são as que fazem fugas para a frente, o chamado sexo estatístico”.
O que é, então, a realização amorosa e o futuro do amor? Helen Fisher, que tem dedicado a vida a estudar a atração romântica interpessoal, mostra-se esperançosa.
Nas palestras TED e em programas de rádio online, a sua mensagem é esta: hoje, mais do que há um século, procuramos a intimidade num parceiro, até por não termos a lógica da comunidade local. E remata: “Os estudos que fiz sugerem que os jovens solteiros não querem falhar como os pais.
A maioria teme a falência pessoal, económica e social de um divórcio e isso pode traduzir-se no retorno da ideia do bom casamento.” Mesmo que o conceito de casamento tenha novas representações, que incluam formas de estar tão diversas e voláteis como as da sociedade mutante em que vivemos.
Mas onde todos continuamos a desejar amar e ser amados.